A Guerra no Bom Fim, o romance de estreia de Moacyr Scliar publicado em 1972, é uma obra seminal na literatura brasileira contemporânea. Lançado em plena ditadura militar, o livro não apenas marcou o início da brilhante carreira do autor judeu-brasileiro, mas também solidificou temas que se tornariam recorrentes em sua vasta produção: a questão judaica, a imigração, o desenraizamento e a mistura única de realismo e fantasia, frequentemente descrita como realismo fantástico.
O livro transcende a simples narrativa de infância ao utilizar o microcosmo de um bairro de Porto Alegre para refletir sobre os grandes dramas históricos da humanidade, em especial a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. A experiência da criança judia brasileira, exposta à distância às atrocidades europeias, é o cerne desta narrativa poderosa e delicada.
Se você está buscando uma análise aprofundada do enredo, dos personagens centrais e dos temas que tornam A Guerra no Bom Fim um clássico obrigatório, continue a leitura.
O Enredo de A Guerra no Bom Fim: A Miniatura da Guerra em um Bairro Gaúcho
A narrativa de A Guerra no Bom Fim é tecida a partir da relembrança de Joel, o protagonista, que evoca sua infância no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, durante os anos 1940. Este bairro era o coração da comunidade judaica da capital gaúcha, um verdadeiro “shtetl” (pequena aldeia judaica da Europa Oriental) brasileiro, onde imigrantes tentavam reconstruir suas vidas após fugir das perseguições na Europa.
O Protagonista e o Cenário
Joel é um menino judeu cuja imaginação é constantemente alimentada pelas notícias da Segunda Guerra Mundial que chegam através dos adultos, das conversas em iídiche, dos jornais e, de forma particularmente intensa, dos filmes e cartazes exibidos no cinema local, como o famoso Baltimore.
A distância geográfica do Brasil em relação aos campos de batalha europeus é subvertida na mente de Joel e de seus amigos, que recriam o conflito em suas brincadeiras e aventuras pelas calçadas do Bom Fim. O bairro se transforma em um "pequeno país" sitiado, e Joel, em certos momentos, assume o papel de Rei Joel, liderando a resistência contra a ameaça nazista, que se manifesta, em sua fantasia, em batalhas épicas travadas em terrenos baldios e garagens. Essa fusão de realidade e fantasia é uma das marcas estilísticas mais fortes do romance.
Estrutura e Linhas Temporais
Embora o foco principal seja a infância de Joel, a narrativa de A Guerra no Bom Fim é um romance de rememoração, estruturado em duas grandes linhas temporais, que se cruzam:
A Infância (Anos 40-50): O período em que Joel e seus amigos vivem suas aventuras bélicas no Bom Fim, tentando processar, através do brincar e da imaginação, o drama da guerra na Europa e o peso da história de sua comunidade imigrante.
A Vida Adulta de Joel: A segunda parte, mais breve, mostra Joel já adulto, trabalhando com vendas de joias. O trauma da guerra, no entanto, persiste, não apenas em sua memória, mas na de seu pai, Samuel, que, já idoso e perdendo a noção da realidade, volta a reviver os dias da guerra e o medo de encontrar alemães, chegando a se isolar em sua velha casa no Bom Fim. A presença de um ex-soldado alemão que se instala no bairro e abre um comércio é um ponto de tensão que ilustra o difícil processo de convivência e superação dos traumas históricos.
O livro é, portanto, um romance de formação (Bildungsroman), que acompanha o crescimento e o amadurecimento (ou a dificuldade em fazê-lo) de Joel diante da história e da sua identidade judaico-brasileira.
Temas Centrais e Análise Profunda
A maestria de Moacyr Scliar em A Guerra no Bom Fim reside na forma como ele aborda questões profundas e universais a partir de uma perspectiva local e íntima.
A Questão Judaica e a Identidade do Imigrante
O tema judaico é a espinha dorsal da obra. O bairro Bom Fim funciona como um "shtetl brasileiro", um refúgio cultural e social para a comunidade judaica de Porto Alegre. No entanto, o livro expõe a dupla condição dos imigrantes:
Desenraizamento: A dor da perda da terra natal e a luta para se adaptar a uma nova cultura, mantendo, ao mesmo tempo, as tradições de seus antepassados.
Antissemitismo: O preconceito e o estigma social não desaparecem mesmo no Brasil, o que força a comunidade a buscar refúgio e solidariedade mútua.
A Miniaturização da Guerra e o Realismo Fantástico
A forma como a Segunda Guerra Mundial é "encenada" no Bom Fim pelos meninos é a chave para a análise do livro.
Guerra Interior: A guerra externa se torna um conflito interno, existencial, na mente de Joel. A fantasia é um mecanismo de defesa psíquico que a criança usa para lidar com a brutalidade do mundo real.
Realismo Fantástico: A mescla de elementos cotidianos (o bairro, a vida familiar) com o universo bélico mágico criado por Joel (o Bom Fim como país sitiado, Joel como rei) é característica do realismo fantástico de Scliar, onde o maravilhoso se insere sutilmente na realidade.
O Romance de Formação e a Crise
A Guerra no Bom Fim é um romance de formação que não se encerra em um final de integração plena. A obra testemunha a dificuldade de construir uma identidade judaico-brasileira em um contexto de trauma histórico (o Holocausto) e de incertezas culturais.
Recepção Crítica e Legado
Lançado em 1972, o primeiro romance de Scliar foi reconhecido como um importante marco na literatura brasileira. Sua publicação ocorreu durante a ditadura militar, e o livro, ao lado de outros da mesma geração, expressa a necessidade de revisitar o passado e a identidade nacional.
A crítica literária destaca:
Inauguração de Temas: O livro é visto como a gênese da temática predominante na obra de Scliar: o judaísmo, a imigração e o diálogo entre história e ficção.
Poder de Síntese: A capacidade de Scliar de conferir peso e força dramática de um romance mais longo em um texto conciso e elegante é frequentemente elogiada.
Repercussão Internacional: A qualidade da escrita de Scliar, evidenciada já neste romance de estreia, garantiu que suas obras fossem publicadas em diversos países, solidificando sua reputação para além do Brasil.
O livro se consolidou como um texto fundamental para a compreensão da experiência judaica no Brasil e do desenvolvimento da literatura contemporânea brasileira.
Perguntas Frequentes Sobre A Guerra no Bom Fim
1. Quem é o protagonista de A Guerra no Bom Fim?
O protagonista é Joel, um menino judeu que vive no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, durante os anos 1940. É através de suas lembranças e de sua rica imaginação que a história da Segunda Guerra Mundial é reencenada e processada no microcosmo do bairro.
2. Qual é a principal característica do estilo de Moacyr Scliar na obra?
A principal característica é a fusão de realidade e fantasia, enquadrada no que se chama de realismo fantástico. Scliar utiliza a imaginação de Joel (e, mais amplamente, elementos alegóricos e mitológicos) para dar corpo e sentido aos traumas históricos, como a guerra e o antissemitismo.
3. O que é o "Bom Fim" no contexto do livro?
O Bom Fim é um bairro real de Porto Alegre, que funcionou como o coração da comunidade judaica na capital gaúcha. No romance, ele é transformado em um símbolo e em uma metáfora para o shtetl (a aldeia judaica da Europa Oriental), representando o refúgio, mas também o palco das batalhas internas e imaginárias de Joel. O bairro torna-se, na mente do menino, um "pequeno país" que precisa ser defendido.
4. Qual é a importância de Franz Kafka na narrativa?
A imagem e as angústias do escritor Franz Kafka pairam sobre o romance, sendo mencionadas como um espectro que afeta Joel e sua família. Kafka, ele próprio um judeu com problemas de pertencimento e comunicação, simboliza o estranhamento no mundo, a luta pela adaptação e a sensação de que a sociedade em que se vive não é totalmente sua – um sentimento central para a comunidade imigrante retratada no livro.
5. Qual o gênero literário predominante em A Guerra no Bom Fim?
O livro é um romance de formação (Bildungsroman), pois narra a trajetória de aprendizado e desenvolvimento de Joel, desde a infância até a vida adulta. Além disso, é um importante exemplar da literatura judaico-brasileira e do realismo fantástico.
Conclusão: O Legado de A Guerra no Bom Fim
A Guerra no Bom Fim, de Moacyr Scliar, é mais do que um romance de estreia: é uma obra-prima que lança as bases para toda a produção do autor. Ao conjugar a inocência da infância com o horror da história, e a realidade de um bairro gaúcho com a tragédia da Europa, Scliar oferece ao leitor uma reflexão pungente sobre a identidade, o trauma e o poder da imaginação como refúgio e ferramenta de luta.
A leitura deste clássico é essencial para entender a complexidade da formação cultural e social brasileira e a contribuição da comunidade judaica para a nossa literatura. A obra permanece atual, ressoando a universalidade dos temas do pertencimento, da migração e da resistência humana.
(*) Notas sobre a ilustração:
A cena se passa em uma rua de paralelepípedos que remete ao bairro Bom Fim de Porto Alegre, com edifícios antigos de arquitetura europeia. No centro, o título "A Guerra no Bom Fim" está escrito em um banner suspenso, anunciando o conflito.
Os "Guerreiros"
A linha de frente é composta por cinco homens idosos, tipicamente intelectuais e de ascendência judaica (barbas grisalhas, óculos), vestidos com uniformes militares de tom verde-oliva. Essa disparidade entre a seriedade do uniforme e a idade e postura dos personagens cria o tom de sátira e comédia de costumes do livro:
O Líder: No centro, um homem de gorro vermelho dirige-se à frente em uma bicicleta infantil, com uma postura determinada, mas cômica.
Armamento Inusitado: Os outros soldados carregam "armas" que são, na verdade, objetos do cotidiano ou instrumentos de trabalho intelectual: um porta um guarda-chuva como se fosse uma arma longa, outro empunha um rolo de macarrão (ou um objeto cilíndrico) e um terceiro carrega uma vassoura e uma pá de lixo como se fossem um rifle e um escudo.
A "Máquina de Guerra"
Atrás dos soldados, um tanque de guerra domina o centro da rua, mas não é um veículo comum. Ele é feito de pilhas de livros empilhados e robustos, simbolizando que a verdadeira "guerra" do livro é um conflito de ideias, cultura, e memória, e não de armamento militar.
O Cenário do Conflito
Acima do tanque, no céu, ocorre uma explosão que não lança estilhaços de metal, mas sim livros, partituras musicais, e uma máquina de escrever. Isso reforça o tema da "guerra cultural" ou da turbulência intelectual e social que os personagens enfrentam em sua comunidade. O cenário urbano ao fundo adiciona autenticidade ao bairro, sugerindo a tensão entre a vida pacata e o grande conflito que eles imaginam ou vivem.
Em resumo, a ilustração capta perfeitamente a essência da obra de Scliar: a mistura de humor, absurdo e melancolia ao retratar a vida e os conflitos da comunidade judaica do Bom Fim através da lente da guerra imaginária.
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