domingo, 15 de fevereiro de 2015

Notas de Nietzsche sobre Shakespeare: Hamlet

Segue clássico monólogo de Hamlet e, abaixo, notas de Nietzsche em "O Nascimento da Tragédia". 


Hamlet – Ser ou não ser, eis a questão. Que será mais nobre para o espírito, sofrer as pedradas e as flechas da fortuna ingrata, ou tomar armas contra um mar de aborrecimentos e exterminá-los por oposição? Morrer. Dormir. Não mais. Se dizem que no sono sufocamos a dor do coração e os mil acidentes naturais a que está sujeita a carne, aí está um estado que devemos desejar fervorosamente. Morrer, dormir. Dormir, talvez sonhar. Sim, esta é a dúvida. Que sonhos se podem ter neste sono da morte, depois que escapamos à tormenta da vida, é coisa que nos faz pensar. Essa reflexão é que torna uma calamidade tão longa existência. Quem suportaria o azorrague e o desprezo do tempo, os erros dos déspotas, as afrontas do orgulho, as torturas do amor não correspondido, as delongas da justiça, a insolência do poder, os pontapés que o mérito paciente recebe dos indignos, se pudesse encontrar a paz para si mesmo, na ponta dum punhal? Quem suportaria o fardo, sofrendo e gemendo sob o peso da vida, se não temesse alguma coisa depois da morte, uma região desconhecida de cujos páramos nenhum viajante volta, que dificulta a vontade e nos faz aguentar melhor os males que nos cabem, para não nos precipitarmos noutros que não conhecemos? Essa consciência é que a todos nos torna covardes, e por isso é que o aspecto nativo da nossa resolução muda de orientação sob o reflexo do pensamento, fazendo com que empresas de grande  alcance e de grande oportunidade mudem de rumo sob essa influencia e não cheguem a transformar-se em ação. Mais docemente agora! A linda Ofélia! Ninfa, lembra-te dos meus pecados, nas tuas orações.

 (Trad.: Oliveira Ribeiro Neto).

 

Nietzsche: O homem dionisíaco se assemelha a Hamlet: ambos lançaram alguma vez um olhar verdadeiro à essência das coisas, ambos passaram a conhecer e a ambos enoja atuar; pois sua atuação não pode modificar em nada a eterna essência das coisas, e eles sentem como algo ridículo e humilhante que se lhes exija endireitar de novo o mundo que está desconjuntado. O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão - tal é o ensinamento de Hamlet e não aquela sabedoria barata de João, o Sonhador, que devido ao excesso de reflexão, como se fosse por causa de uma demasia de possibilidades, nunca chega à ação; não é o refletir, não, mas é o verdadeiro conhecimento, o relance interior na horrenda verdade, que sobrepesa todo e qualquer motivo que possa impelir à atuação, quer em Hamlet quer no homem dionisíaco. Agora não há mais consolo que adiante, o anelo vai além de um mundo após a morte, além dos próprios deuses ; a existência, com seu reflexo resplendente nos deuses ou em um além-mundo imortal, é denegada. Na consciência da verdade uma vez contemplada, o homem vê agora, por toda parte, apenas o aspecto horroroso e absurdo do ser, agora ele compreende o que há de simbólico no destino de Ofélia, agora reconhece a sabedoria do deus dos bosques, Sileno: isso o enoja.

Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, qual feiticeira da salvação e da cura, a arte; só ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver: são elas o sublime, enquanto domesticação artística do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da náusea do absurdo. O coro satírico do ditirambo é o ato salvador da arte grega; no mundo intermédio desses acompanhantes dionisíacos esgotam-se aqueles acessos há pouco descritos.

(...)

A articulação das cenas e as imagens perspícuas revelam uma sabedoria mais profunda do que aquela que o próprio poeta pode apreender em palavras e conceitos: o mesmo se observa em Shakespeare, cujo Hamlet, por exemplo, em um sentido semelhante fala mais superficialmente do que age, de modo que não é ; partir das palavras, porém da visão e da revisão aprofundadas do conjunto que se deve inferir aquela doutrina do Hamlet antes mencionada.

(“O nascimento da tragédia”; trad.: J. Guinsburg).




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domingo, 1 de fevereiro de 2015

Poema (de Catulo)

Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
e aos rumores dos velhos severos,
a todos, voz nem vamos das. Sóis
podem morrer ou renascer, mas nós
quando breve morrer a nossa luz,
perpétua noite dormiremos, só.
Dá mil beijos, depois outros em, dá
muitos mil, depois outros sem fim, dá
mais mil ainda e enfim cem - então
quando beijos beijarmos (aos milhares!)
vamos perder a conta, confundir,
pra que infeliz nenhum possa invejar,
se de tanto souber, tão longos beijos.

(Tradução: João Angelo Oliva Neto)


Vivamos, minha Lésbia, amemos sempre,
E os rumores dos velhos rabugentos
Saibamos desprezar, tê-los em nada.
O sol pode morrer, tornar de novo;
Nós, se uma vez a breve luz nos morre,
Uma e perpétua noite dormiremos.
Oh! mil beijos me dá, depois um cento,
E outros mil, e outros cem; e quando ao cabo
Muitos milhares ajuntarmos deles,
Em maga confusão juntá-los-emos.
Que não saibamos nós, que ninguém saiba
Nem maldoso nenhum possa invejar-nos,
Se de tantos souber, tão doces beijos.

(Tradução: Almeida Garrett)


Viuamus, mea Lesbia, atque amemus,
rumoresque senum serueuiorum
omnes unius aestimemus assis,
soles occidere et redire possunt;
nobis curn semel occidit breuis lux,
nox est perpetua uma dormienda.
Da mi basia mille, deinde centum,
dein mille altera, dein secunda centum,
deinde usque altera mille, deinde centum.
Dein, cum millia multa fecerinus,
conturbabinmus illa, ne sciamus,
aut ne quis malus inuidere possit,
cum tantum sciat esse basiorum.


(Catulo, original em latim)

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