Por J. P. A. Gonçalves
O
que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem
sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto
a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir,
não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas no ano em que
o chão é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho,
em lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no
chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples
natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último
fim. Não é tal o caso do trigo, que ainda com alguma vida é cortado. Nem do
sobreiro, que vivíssimo, embora por sua gravidade o não pareça, se lhe arranca
a pele. Aos gritos. (José Saramago, Levantado do chão: romance)
A paisagem de que fala Saramago é a terra
reduzida à condição de latifúndio, orbitado por pequenas aldeias camponesas,
como Monte Lavre, na região do Alentejo - uma das mais atrasadas de Portugal. O
período compreendido pelo romance é extremamente largo e ocupa o espaço de três
gerações, indo do final da monarquia até a Revolução dos Cravos. É neste
contexto que se desenrola a história da família de lavradores Mau-Tempo.
Apesar de o latifúndio ocupar o epicentro da
narrativa do romance, devido a sua própria condição provinciana, os
acontecimentos cruciais da política portuguesa chegam-lhe residualmente,
através de fatos que repercutem indiretamente e em “pequenas ondas”, que são,
afinal, percebidas no cotidiano dos personagens. Este distanciamento poder ser
percebido, por exemplo, quando o autor narra a proclamação da república, do
seguinte modo: “Então chegou a república”. Tudo se passa como se esses
acontecimentos viessem de muito longe e quase fossem indiferentes à estrutura
social do latifúndio.
No latifúndio nada muda, há séculos. O
latifúndio parece mesmo ser Portugal. No filme “Capitães de Abril”, num dado
momento, um personagem tem a seguinte fala: “Portugal será sempre uma nação
pluri-continental e plurirracial”. Se nós lembrarmos do início de “Casa Grande
& Senzala”, veremos que Gilberto Freyre gasta não poucas linhas para
descrever, não apenas o Brasil, mas, também, Portugal enquanto nação multi-ética,
desde suas origens. Mas não precisamos ir tão longe. A frase em questão
trata-se de uma alusão e, de certa forma, uma apologia à gênese do império
colonial Português. Breve história de glória que seria insistentemente
rememorada messianicamente por toda história de Portugal.
Já
não mais como um império, no século XX, Portugal perdia suas últimas colônias
na África, com o movimento de independência das nações africanas pós-Segunda
Guerra Mundial. Mas a questão multirracial ficou arraigada em solo português. O
tema é também tratado metaforicamente em “Levantado do chão”. João Mau-Tempo e,
posteriormente, sua filha Amélia, chamam atenção por terem olhos azuis, característica
física pouco comum entre os camponeses do Alentejo, descrita numa passagem em
que Antônio Mau-Tempo, filho de João, e um amigo passam uma temporada na França
a trabalho: “Saíam para a rua, corridos por um linguajar rápido que não
entendiam, alê, négres, é o que acontece a estas raças morenas, tudo são pretos
para quem nasceu na Normandia e presuma de raça apurada, mesmo puta” (SARAMAGO,
1982, p. 290). A origem dos olhos azuis de João e Amélia é remontada ao DNA dos
povos germânicos que enfeudaram Portugal e é representado no romance pela
figura de Lamberto Horques Alemão, que, séculos atrás, violara uma camponesa.
Sobre o episódio, o narrador descreve:
“Já
de vontade não fora aquela outra rapariga, quase quinhentos anos antes, que
estando um dia sozinha na fonte a encher sua infusa, viu chegar-se um daqueles
estrangeiros que viera com Lamberto Horques Alemão, alcaide-mor de Monte Lavre
por mercê do rei Dom João o primeiro, gente de falar desentendido, e que,
desatendendo aos gritos e rogos da donzela, a levou para uma espessura de fetos
onde, a seu prazer, a forçou. Era um galhardo homem de pele branca e olhos
azuis, que não tinha outra culpa que o atiçado do sangue, mas ela não foi capaz
de lhe querer bem e sozinha pariu como pôde ao fim do tempo. Assim, durante
quatro séculos estes olhos azuis vindos da Germânia apareceram e desapareceram,
tal como os cometas que se perdem no caminho e regressam quando com eles já se
não conta, ou simplesmente porque ninguém cuidou de registar as passagens e
descobrir a sua regularidade” (Idem, p. 24).
O
narrador descreve Lamberto como um típico senhor feudal que se perpetua até
chegar no latifúndio. É interessante como o narrador atribui às classes
dominantes, pelo menos no Alentejo, uma ascendência germânica. Os descendentes
de Lamberto, enquanto senhores e donos do latifúndio, são distintos pelo étimo
germânico “Berto”, como Norberto, Adalberto, Floriberto, Alberto, Humberto,
Sigisberto, Felisberto, Dagoberto, Clariberto, Berto etc. Tudo se passa como se
todos esses Bertos fossem apenas uma metamorfose do primeiro “Berto”, Lamberto
Horques Alemão.
“(...)
já no tempo dos senhores reis assim se dizia, e a república não mudou nada, não
são coisas que se mudem por tirar um rei e pôr um presidente, o mal está
noutras monarquias, de Lamberto nasceu Dagoberto, de Dagoberto nasceu Alberto,
de Alberto nasceu Floriberto, e depois veio Norberto, Berto e Sigisberto, e
Adalberto e Angilberto, Gilberto, Ansberto, Contraberto, que admiração é essa terem
tão parecidos nomes (...)” (Idem, pp. 195 e 196).
Quanto aos camponeses, “estas raças morenas, tudo
são pretos para quem nasceu na Normandia”, são trabalhadores que labutam de sol
a sol, e que em nada diferenciam de servos ou escravos. Neste sentido, Portugal
é o espelho de sua história colonial, da escravidão no Brasil e de seus
domínios na África, algo que se reflete na sua própria estrutura social. Assim, os trabalhadores no latifúndio vivem
uma condição degradante e desumana, não muito diferentes dos escravos no
Brasil, e não sendo mais do que seres rastejantes, diante dos poderosos. Estes
estão completamente a mercê dos donos latifúndios e vivem uma vida
completamente miserável, sem dignidade, sem qualquer direito – sem direito a
greve, inclusive –, e ainda subjugados pela opressão policial.
Era
esta estrutura semifeudal que a república, proclamada em 1910, deveria acabar. Mas
diante da instabilidade política da Primeira República para sanar seus
impasses, tramou-se um golpe militar de cunho fascista corporativista que se
efetivou de fato em 1926 consagrando o Estado Novo e a ditadura salazarista, que
se perduraria até 1974.
“(...)
Viva Portugal, não o entendo, Estamos aqui reunidos, irmanados no mesmo
patriótico ideal, para dizer e mostrar ao governo da nação que somos penhores e
fiéis continuadores da grande gesta lusa e daqueles nossos maiores que deram
novos mundos ao mundo e dilataram a fé e o império, mais dizemos que ao toque
do clarim nos reunimos como um só homem em redor de Salazar, o génio que
consagrou a sua vida, aqui tudo grita salazar salazar salazar, o génio que
consagrou a sua vida ao serviço da pátria, contra a barbárie moscovita, contra
esses comunistas malditos que ameaçam as nossas famílias, que matariam os
vossos pais, que violariam as vossas esposas e filhas, que mandariam os vossos
filhos para a Sibéria a trabalhos forçados, e destruiriam a santa madre igreja,
pois todos eles são uns ateus, uns sem Deus, sem moral nem vergonha, abaixo o
comunismo (...)” (Idem, pp. 93 e 94).
A ditadura salazarista foi uma reação das
classes dominantes e objetivava manter inalterado o status quo da arcaica sociedade portuguesa, o que significava
garantir e assegurar política, econômica e juridicamente a subsistência do
latifúndio. Para isso montou-se um aparato repressivo que censurava, perseguia,
prendia e torturava seus oponentes. Se no romance “Levantado do chão” o advento
do Estado Novo aparece como um episódio longínquo às aldeias do Alentejo,
festejado pela igreja e os latifundiários, não ocorre o mesmo com seus
tentáculos repressivos, a guarda e a famigerada PIDE, que, diante da silenciosa
propaganda comunista, prende, tortura e mata camponeses que de alguma forma
lutam por condições melhores de salário e trabalho.
Mas
se as condições de trabalho no latifúndio são deploráveis, com carga horária
exaustiva, de sol a sol, isso não significa que não há resistência por parte
dos trabalhadores. Estes são como “formiguinhas que levantam a cabeça feito
cachorro”, ainda que a situação os coloque num impasse: o de serem acossados
pela necessidade diária de “ganhar o pão”, muitas vezes produto de barganha dos
latifundiários que não os convocam os trabalhadores para a colheita como forma
de punição. A certa altura do filme “Capitães de Abril”, o Capitão Salgueiro
Maia diz aos soldados: “Só nós podemos fazer a revolução”. Isso porque só as
forças armadas detinham de armamentos capazes de derrubar o regime. Mas tal
afirmação era apenas a ponta do iceberg. A sociedade portuguesa toda resistia.
No latifúndio, os trabalhadores também se mobilizam em torno das reivindicações
das oito horas e da comemoração do Primeiro de Maio. Em entrevista (disponível
no YouTube em “As últimas palavras de Salgueiro Maia”), o Capitão Salgueiro
comenta: “Quando as pessoas começam a perder o medo, também é contagioso”.
“É
preciso que Abril seja um mês de palavras mil, porque mesmo os certos e
convencidos têm seus momentos de dúvida, suas agonias e desânimos, lá está a
guarda, lá estão os dragões da pide, e a negra sombra que alastra pelo
latifúndio, que nunca o abandona, não há trabalho, e vamos nós, por nossas
mãos, acordar a besta que dorme, sacudi-la e dizer, Amanhã, só trabalharei oito
horas, isto não é o primeiro de Maio, o primeiro de Maio é o menos, ninguém
pode obrigar-me a ir trabalhar, mas se eu disser, Oito horas, só isto e nada
mais, é como açular o cão raivoso. E o amigo diz, aqui sentado no cortiço, ou
ao meu lado no eito, ou no meio de uma noite tão escura que nem posso ver-lhe a
cara, Não se trata só das oito horas, vamos também reclamar quarenta escudos de
salário, se não quisermos morrer de canseira e de fome, são boas coisas de
pedir e de fazer, o difícil é tê-las. O que vale é que sendo as falas muitas,
muitas são as vozes, e do ajuntamento levanta-se uma, não é simples modo de
dizer, é verdade, há vozes que se põem de pé (...)” (Idem, p. 333).
A 25
de abril de 1974, um movimento militar põe fim à ditadura de Antonio Salazar e
de seu sucessor Marcelo Caetano. Surgiu no contexto das guerras coloniais que
Portugal travava na África desde os anos de 1960 e teve como principais
lideranças jovens veteranos dessas campanhas, como o Capitão Salgueiro Maia. Pode-se
dizer que tal episódio foi mais uma implosão do regime ditatorial do que mesmo
uma revolução. Quase não houve derramamento de sangue durante a derrubada do governo
corporativista, extremamente impopular, e, quando da passagem das tropas dos
capitães, a população homenageava os soldados colocando cravos vermelhos e
brancos nos fuzis e tanques de guerra, fato que veio denominar o movimento por
“Revolução dos Cravos”. Portugal pôde enfim representar democraticamente sua
vocação de nação pluri-continental e plurirracial.
REFERÊNCIAS:
SARAMAGO,
JOSÉ, “Levantado do chão: romance”, São Paulo: DIFEL, 1982).
“Capitães
de Abril”, filme de Maria de Medeiros.
“As últimas palavras
de Salgueiro Maia” – Parte 1 e Parte 2 – (YouTube).
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