1 - “Minha viola bonita”
Minha viola bonita,
Bonita minha viola,
Cresci, cresceste comigo
Nas Arábias.
Minha viola namorada,
Namorada viola minha,
Cantei, cantaste comigo
Em Granada.
Minha viola ferida,
Ferida viola minha,
O amor fugiu para o leste
Na borrasca.
Minha viola quebrada,
Raiva, anseios, lutas, vida,
Miséria, tudo passou-se
Em São Paulo.
(Mário de Andrade, Lira paulistana – 1947)
A primeira reação causada no leitor por este poema
é a percepção da musicalidade de seus versos. A reiteração da palavra ‘viola”,
que é o eixo central do poema, reforça ainda mais o seu sentido musical. No seu
aspecto formal, é notável a ocorrência de aliterações fonéticas, marcadamente
pelas letras “i”, “o” e “c”. Nas duas primeiras estrofes, nota-se também uma
ressonância de forma e conteúdo num todo harmônico que se comunica à maneira de
um contra-ponto. Já nas ultimas duas estrofes, ocorre certa dissonância em
relação às duas primeiras, através de, literalmente, um “ferimento” ou uma
“quebra” na tonalidade que o poema vinha desenvolvendo, descompassando-o
totalmente na aspereza do décimo quarto verso (“Raiva, anseios, lutas, vida”).
Então, as duas primeiras estrofes se comunicam enquanto se separam da unidade
desarmônica das duas últimas.
A ressonância na harmonia das duas primeiras
estrofes também reverbera no seu significado. No primeiro verso, há uma ideia
de posse, pelo poeta, de um instrumento musical que é uma viola bonita.
No segundo verso, pode se inferir que a viola é bonita porque é do poeta. Tal
ligação afetiva pode ser explicada no terceiro verso quando o poema indica que
há uma cumplicidade entre o poeta e o instrumento musical que, provavelmente,
surge logo na infância. A viola, de certa forma, não acompanha apenas o
crescimento do poeta, mas cresce com ele, sugerindo uma intimidade que
transcende a relação sujeito e objeto, na personificação (prosopopeia) do
instrumento musical. No quarto e último verso da primeira estrofe, o verso
completa o penúltimo verso situando um local geográfico onde o eu fragmentado
e a viola cresceram e que fica... “Nas Arábias”. No primeiro
verso da segunda estrofe, o grau de intimidade entre o poeta e o instrumento
musical, a viola, intensifica-se ainda mais. A viola não apenas cresce, como um
irmão ou um amigo de infância, mas se torna namorada.
Provavelmente, os versos aqui tratam da adolescência ou da juventude, de suas
descobertas, podendo-se até mesmo interpretar, num desdobramento da leitura,
que a viola passa a ser um instrumento de conquista amorosa e, por isso, único
amor. No segundo verso dessa estrofe, reitera-se a ideia da intimidade com a
viola através da introdução enfática da palavra namorada à frente da viola.
Novamente, no sexto verso do poema, observa-se uma sincronia entre o poeta e o
instrumento musical: “Cantei, cantaste comigo”; que, talvez, remeta a cantar a
beleza da vida que desabrocha e conhece a paixão, e que se passa, como se
refere o oitavo verso do poema, num outro lugar: em Granada.
Segundo Santos (2003), esta geograficidade do poema implica numa referência à
viola como tendo uma ancestralidade no alaúde, instrumento de origem árabe que
se tornou símbolo do trovadorismo e que foi levado à Europa nos séculos XVI e
XVII, tornando-se vulgar na Espanha, e na época em que o Brasil também foi
“descoberto”. Além disso, a viola tornou-se um instrumento muito difundido pelo
Brasil inteiro, podendo ser entendida como símbolo de brasilidade ou
musicalidade indispensável do brasileiro. Aceitando-se as teses de Schwarz
(1987, 2000), a viola pode ser interpretada, por nós, no poema de Mário, como
elo do arcaico e do moderno. Mas também a geografia aqui tem um sentido
utópico, infantil e de rebeldia juvenil, associado às Mil e uma
noites ou à sensualidade da música e dança flamenca. Talvez a utopia
esteja situada num passado (rural) ou de suas lembranças idílicas: um mundo que
se torna obsoleto e fictício.
As duas últimas estrofes indicam uma ruptura com o
passado, e o presente é um tempo de amargura trazida por desilusões que a
maturidade sublinha quando se presta contas da vida inteira. No primeiro e
segundo versos da terceira estrofe, a viola está ferida. Descobre-se, no décimo
primeiro e décimo segundo versos, que o amor – a própria viola que
em sentido figurado é o fio condutor de sua vida – fugiu para o leste,
com a borrasca. Sem dúvida, a tempestade sugere tempo fechado,
reclusão e tormentas, que na verdade é uma metáfora do estado de espírito do
poeta e que condiz também com uma menção indireta ao desastre da Segunda Guerra
Mundial. No décimo terceiro verso do poema, tem-se a notícia que a viola está
quebrada (pelo tempo, pela guerra ou pelo poeta?). Nos versos seguintes, o
poeta enumera “raiva, anseios, lutas, vida”... “Miséria...” e sentencia numa
revelação surpreendente: “...tudo passou-se” “Em São Paulo.” Na comparação com
“Solidão”, tentaremos desvelar outros desdobramentos do poema.
2 - “Solidão”
Chove chuva choverando
que a cidade de meu bem
está-se toda se lavando
Senhor
que eu não fique nunca
como esse velho inglês
aí do lado
que dorme numa cadeira
à espera de visitas que não vêm
Chove chuva choverando
que o jardim de meu bem
está-se todo se enfeitando
A chuva cai
cai de bruços
A magnólia abre o pára-chuva
pára-sol da cidade
de Mário de Andrade
a chuva cai
escorre das goteiras do domingo
Chove chuva choverando
que a cidade de meu bem
está-se toda se molhando
Anoitece sobre os jardins
Jardim da Luz
Jardim da Praça da República
Jardim das platibandas
Noite
Noite de hotel
Chove chuva choverando
(Oswald de Andrade, Primeiro caderno do aluno de poesia de
Oswald de Andrade - 1927)
O poema “Solidão” de Oswald de Andrade também é
marcado por uma forte melodia, que flerta com cantigas folclóricas e infantis,
e apresenta um grau maior de dificuldade de interpretação, pois o recurso
sonoro parece conduzir o poema para além de seu significado imediato. Portanto
farei uma análise menos pontual que o poema anterior e aceitarei os riscos de
um maior equívoco de interpretação.
O primeiro verso, “Chove chuva choverando”[1], é um desdobramento quase redundante do verbo “chover”,
que exprime fenômeno natural, logo, sintaticamente, prescinde de sujeito; do
substantivo “chuva”, que no verso exerce a função de sujeito; e do neologismo
“choverando”, que não apresenta significado definitivo e por isso se destaca
pela sua sonoridade enigmática. Somando-se a isso, percebe-se a forte presença
da aliteração da consoante fricativa surda “x” (ch), que produz um som de
chiado, remetendo ao barulho de água caindo ou escorrendo. Logo, a primeira
estrofe enfatiza a ideia de chuva, de água, de purificação, de limpeza e, por
extensão, de alma lavada (sentido figurado). Tal ideia é completada pelos
versos dois e três da primeira estrofe, “que a cidade de meu bem”... “está-se
toda se lavando”. Aqui há uma indeterminação do significado (não se sabe quem é
o meu bem; presume-se apenas que seja a pessoa amada ou um ideal dela) e o
efeito sonoro dos significantes dá sentido de que a chuva cai incessantemente
numa cidade, ainda não identificada. Os versos da segunda estrofe aparecem de
modo abrupto e parece não dialogar com o da primeira. A ligação se efetiva de
modo tênue através da rima de “meu bem” com “visitas que não vêm”. Todavia, a
estrofe é a que mais está sintonizada literalmente com o título do poema,
“Solidão”. O poeta, que provavelmente está sozinho e hospedado em um hotel,
imagina um quadro melancólico em seu futuro, que deseja evitar e que
corresponde ao de seu suposto vizinho de quarto, um estrangeiro solitário, de
idade avançada, num país distante, dormindo numa cadeira e numa espera vã por
parentes ou amigos. Novamente, a terceira estrofe o verso abre com “Chove chuva
choverando”, quase como um estribilho da chuva que não cessa. Nos versos
seguintes, a chuva rega e enfeita o jardim de “meu bem”. Curiosamente, a chuva
cai de bruços, causando certo estranhamento no leitor. Talvez o poeta esteja
deitado ou sonhando. Na quarta estrofe, o poema causa ainda mais estranheza
quando descreve uma magnólia que se abre como pára-chuva–pára-sol da
cidade de Mario de Andrade (!!!). Deduz-se (se não for muito arriscada
a minha interpretação) que a copa da magnólia funciona como um guarda-chuva ou
um guarda-sol, objetos semelhantes que são carregados de sentidos só por meio
do contexto (chuva ou praia); contudo, na verdade, a magnólia não é nenhuma
coisa nem outra, mas um natural pára-chuva e pára-sol ao mesmo tempo, ou seja,
uma entidade única, simbólica e soberana que confere sentido ao contexto: a
cidade do poeta Mário de Andrade. Nos versos que indicam “...cidade” e “de
Mário de Andrade”, não resta mais dúvida de que a cidade em questão é o
município de São Paulo. Porém, a chuva é constante, podendo ser uma referência
a garoa da antiga São Paulo e atravessa as folhas da árvore – que talvez lhe
serve de abrigo – em goteiras do domingo. (Curiosamente, há magnólias no Jardim
da Luz e em frente à Biblioteca Municipal). Novamente, o estribilho e a
referência à cidade porosa que é molhada pela chuva. Na sexta estrofe,
anoitece, fato que pode indicar que os momentos anteriores do poema se passavam
de manhã (o inglês) e à tarde (a magnólia). Mas, anoitece-se nos jardins:
Jardim da Luz, Jardim da Praça da República e Jardim das platibandas,
estruturas arquitetônicas comuns nas antigas residências paulistanas. E, na
sétima e última estrofe, é, enfim, noite, e o poeta já esta de volta ao hotel,
enquanto a chuva continua.
3 - Comparação dos poemas “Minha viola
bonita” e “Solidão”
Tendo em vista as análises acima, tentarei realizar
a comparação crítica dos poemas “Minha viola bonita” e “Solidão”. O primeiro
aspecto que chama a atenção em ambos os poemas, como já ficou claro, é que
estão unidos pela forte musicalidade que apresentam. Tanto um como outro,
apostam numa estrutura de assonâncias cujas palavras se repetem produzindo
efeitos que ecoam nos versos e produzem uma imagem de indeterminação em seus
conteúdos, os quais devem ser desvelados. Quanto à métrica, o poema de Mário de
Andrade é mais rigoroso e é composto de quatros estrofes, sendo que os três
primeiros versos de cada uma são formados por sete sílabas poéticas (redondilha
maior) e o quarto de apenas três sílabas poéticas. Também apresenta uma
estrutura de rimas que se alternam de modo mais simétrico. Já o poema “Solidão”
é composto por versos livres, excetuando às estrofes que corresponderiam ao
refrão (“Chove chuva choverando...”) também em redondilhas, e apresenta rimas
mais esparsas e esporádicas. Neste particular formal, da métrica, os versos de
“Minha viola bonita” ganham maior cadência rítmica durante uma leitura
sincopada, mas também são mais conservadores. A melodia que se extrai da
leitura de “Solidão” é mais difícil de perceber, dada a forma livre que os
versos são escrito. Sua musicalidade deriva, entretanto, justamente da
liberdade com que as palavras são arranjadas nos versos. Neste sentido, este
poema se enquadra muito melhor no ideal dos poetas modernistas que tanto Mário
de Andrade como Oswald de Andrade foram expoentes. É notório que Oswald levou
às últimas consequências e explorou muito mais o experimentalismo radical dos
primeiros anos da poesia modernista brasileira. Porém, é bem verdade que a
simplicidade formal de “Minha viola bonita”, livre da retórica rebuscada da
poesia tradicional (no caso, o parnasianismo e o simbolismo), também lhe
confere um grau de experimentalismo, próprio da obra pioneira de Mário de
Andrade, e de radicalidade que caracterizam todo o movimento artístico de 22.
Esta ruptura formal e corajosa, do movimento modernista, com o aspecto um tanto
pernóstico expresso pela oratória e a retórica da cultura dos bacharéis e dos
ilustrados, de um Brasil ainda marcado pelo domínio em todos os setores das
oligarquias rural, patriarcal, de herança colonialista e aristocraticamente
europeia, é num certo sentido reflexo da modernização por que passa o país nas
primeiras décadas do século XX. Esse processo tem como cenário a cidade de São
Paulo, que, já em fins do século XIX, inicia um período de rápida
industrialização. A abolição da escravatura e, por conseguinte, a chegada de
grandes levas de imigrantes para trabalhar, primeiramente, na lavoura cafeeira
e, depois, na indústria, ainda incipiente e sem o impulso estatal dos anos 30,
alavancam exponencialmente a urbanização de São Paulo, operando assim
transformações fundamentais no seio da sociedade do antigo status quo,
tanto no nível das relações de trabalho como no simbólico e da linguagem. É a
cidade caótica, das multidões anônimas, do imigrante, que surge, num ritmo
alucinante e desvairado, e que seria palco da Semana de Arte Moderna de 22. Na
efervescência dessas mudanças estruturais, de uma economia rural que se
urbaniza pela industrialização, evidentemente o campo da cultura não ficaria
incólume. Assim, os poemas “Minha viola bonita” e “Solidão” situam-se na cidade
de São Paulo, epicentro dessas transformações e da revolução da arte
modernista. “Esta cidade que não reflete o rosto de seus habitantes é – disse
Oswald – a ‘cidade de Mário de Andrade’. Sua duvidosa poesia é áspera,
tortuosa, fragmentada; difícil mesmo de encontrá-la, exprimi-la ou entendê-la”
(LAFETÁ, p.18). Reflexo dessa ebulição, o conteúdo significativo dos poemas
“Minha viola bonita” e “Solidão” também apresentam uma perturbação
correspondente ao contexto em questão. A cidade de São Paulo é a cidade do
“velho inglês” solitário, dos amores fugazes, das lembranças, das utopias – nas
Arábias ou em Granada, da chuva que não cessa, da borrasca, da “raiva, anseios,
lutas, vida”, miséria e da solidão na multidão de seus transeuntes
desconhecidos. Nos dois poemas é a vida no cotidiano (manhã, noite e dia ou
infância, juventude e maturidade) de uma metrópole que está em formação e que é
o alvo que se pretende acertar, no qual, conforme o caráter específico da
sociedade brasileira, o arcaico, com suas relações pessoais e clientelísticas,
ainda convive “harmonicamente” (as aspas aqui tem evidentemente um sentido de
ironia) com o moderno. Mas no mundo moderno, onde tudo é transitório e incerto,
o resultado, tanto num poema analisado como no outro, parece redundar sempre em
solidão. Porém, no poema “Minha viola bonita” há uma descendência das esferas
de um mundo imaginário, de fantasia, que encontra respaldo na infância e na
juventude, até a constatação sombria e devastadora das desilusões da vida e que
coincidem com a guerra, representadas aqui na fuga do amor durante a tempestade
e na trágica destruição da viola. Talvez, o otimismo ingênuo e provinciano dos
primeiros anos da modernização se mostra, para uma fase madura, desencantado e
aterrador. A nova sociedade – ou civilização – não erradicou a guerra e os
males do mundo. Este pessimismo como resultado, não é percebido no poema
“Solidão”, pois este parece, do começo ao fim, já permeado pelos sinais do
desencanto com o mundo espantosamente urbano, mesmo tendo sido escrito antes
das atrocidades nazistas. Talvez, Oswald não se deixou seduzir tão facilmente
pelas promessas da modernidade. Em “Solidão”, não há esperanças, ilusões ou
utopias, a cidade já está maculada, suja talvez, e a chuva é conclamada como
componente essencial deste mundo sombrio e, ao mesmo tempo, agente purificador.
Sem dúvida, o ambiente é de uma beleza (a magnólia) desesperadora, permeável, e
é cinzento, sem sol, e tremendamente desolador ou solitário. Mas não é uma
tempestade (borrasca) que chega assustadoramente, com rajadas de ventos, raios
e trovões, destruindo tudo como uma artilharia de guerra, mas uma garoa
intermitente, que se arrasta repetidamente, descrita nos versos que parecem
nunca acabar: “Chove chuva choverando”. A chuva não para do começo ao fim do
poema. Neste sentido, talvez, Oswald sentia muito mais desconfiança do
progresso do que Mário. Talvez, foi preciso o holocausto e a bomba atômica para
que o poema “Minha viola bonita” descobrir os males trazidos pelo mundo moderno
e o fim da harmonia do mundo rural. A viola é o símbolo do antigo, do regional,
do sertanejo, lócus da harmonia perdida, para sempre partida, como uma taça de
cristal quebrada. Neste caso, a poesia modernista também aparece cindida
fundamentalmente também no caminhar triste e solitário, sob a chuva, do poema
“Solidão” pela cidade de São Paulo, ao passar pelo Jardim da Luz, a Praça da
República, pelas platibandas, ou o jardim distante de meu bem, e que encontra
eco na solidão tenebrosa da viola ferida de morte, no amor que foge. Para
encerrar a análise comparativa, não seria forçado parafrasear os poetas e dizer
com eles que “Minha viola bonita” e “Solidão” passaram-se em São Paulo.
Bibliografia
AMADO, J., “Seara Vermelha”, São Paulo: Record, 1982.
ANDRADE, M., “Lira paulistana”, in: Poesias completas, Belo
Horizonte: Itatiaia-São Paulo: Edusp, 1987.
ANDRADE, O., “Pau Brasil”, Rio de Janeiro, Globo, 2003.
ANDRADE, O., “Primeiro caderno do aluno de poesia de Oswald de Andrade”,
Rio de Janeiro, Globo, 2006.
LAFETÁ, J. L., “Figuração da intimidade: imagens na poesia de Mário de
Andrade”, São Paulo, Martins Fontes, pp. 1-34.
SANTOS, P. S. M., “Musico, doce músico”, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003.
SCHWARZ, R., “Que horas são?”, São Paulo: Cia das Letras, 1987, pp.
11-28.
SCHWARZ, R., “Ao vencedor as batatas”, São Paulo: Editora 34, 2000.
[1] No livro Seara vermelha de Jorge Amado, este
verso aparece como “Chove, chuva chuverando, lava a rua de meu bem” e é cantado
por crianças que brincam de roda.
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