Sete teses sobre a arte e a crítica da vida cotidiana, por Henri Lefebvre
Prólogo
Aforismo:
A sociedade urbana cria etéreo-aço, intangível metal arranha o céu, desvelando, de Maya, excelso véu, a produção volátil do frio espaço. No infinito, terrível cascavel, devorando voraz, de cabo a rabo, o imensurável tempo, com seu abraço: Ouroboros, sublime áureo-anel! Possível-impossível utopia, remate da triunfante humanidade, transformada na vil mercadoria. Autômatos escravos na cidade, formigas produzindo mais-valia, o Capital roubou-lhes liberdade.
Soneto:
A
sociedade urbana cria etéreo-aço,
Intangível
metal arranha o céu,
Desvelando,
de Maya, excelso véu,
A
produção volátil do frio espaço.
No
infinito, terrível cascavel,
Devorando
voraz, de cabo a rabo,
O
Imensurável tempo, com seu abraço:
Ouroboros,
sublime áureo-anel!
Possível-impossível
utopia,
Remate
da triunfante humanidade,
Transformada
na vil mercadoria.
Autômatos
escravos na cidade,
Formigas
produzindo mais-valia,
O
Capital roubou-lhes liberdade.
(Jean
Pires de Azevedo Gonçalves)
(Leia
também: “A produção do espaço: de Henri Lefebvre à geografia” e “Fragmentos de O fim da história”).
SETE TESES
Primeira tese
A
vida cotidiana se constitui e se estabelece no mundo moderno; se situa cada vez
mais como um nível de realidade dentro do real. Resulta por sua vez funcional e
estrutural; se dissolve porque se refere cada vez mais à vida do trabalho, privada,
no lar, no tempo livre, no lazer (entretenimento). Ao mesmo tempo, ela se
dissolve em monotonia, porque em todos esses aspectos existem uma passividade,
uma não-participação, um espetáculo generalizado, uma impotência para
participar tanto da vida privada quanto da vida recreativa. Esta cotidianidade
é cada vez mais inaceitável. A crítica do cotidiano é a única na atualidade que
põe em tela de juízo a cultura, o conhecimento, a política; e é a única que
abarca a totalidade e que desempenha o papel da negatividade tal e qual no
pensamento de Hegel e Marx.
Segunda tese
Uma
vez que a vida cotidiana estava integrada na arte, no sagrado, na religião, ou
seja, se se preferirmos assim, a arte fazia parte do cotidiano, penetrava o seu
interior. Os objetos mais humildes carregavam a marca da totalidade social e
artística. No passado, com todas as reservas que podem ser feitas sobre esta
nostalgia (e suplico que não me acusem de "pedantismo"), os objetos
mais humildes, como uma colher, um armário, um cofre, enfim, traziam a marca de
algo muito mais geral do que a mão do artesão.
Terceira tese
Este
estilo que penetrava na vida cotidiana se diferencia da cultura (do que hoje
nós chamamos de cultura).
Quarta tese
A
cultura tem todos os seus aspectos, a arte e o esteticismo, a moralidade e o
moralismo, ideologias como tais, acompanham a cristalização da vida cotidiana
no mundo moderno.
Quinta tese
Sob
essas condições, a cultura é dividida em duas partes: a cultura de massa e a
cultura da elite. A primeira é entendida ao nível do cotidiano, penetra-o,
através do rádio, da televisão, dos discos, mas não o transforma, não o
transfigura; em suma, deixa suas características de monotonia e passividade,
não o englobando numa unidade, não lhe conferindo um estilo. Quanto à cultura
da elite, é uma arte experimental, de vanguarda, como a literatura de
vanguarda, inacessível, irredutível à cultura de massa, mas não relacionada à
vida cotidiana.
Sexta tese
A
arte, como tal, passa por uma crise e por uma transformação radical, por causa
dessa divisão a que acabo de aludir e que é destrutiva para a arte.
Sétima tese
A
arte que não está no cotidiano desaparecerá, pois a arte estará a serviço da
vida cotidiana, para transformá-la, para mudá-la realmente e nunca apenas para
transfigurá-la idealmente. Neste sentido, a arte permitirá criar vida e,
portanto, vivê-la, ao invés de descrevê-la ou representá-la; a arte, então, vai
se dispor de todos os meios da estética, incluindo a música, a pintura e, acima
de tudo, a arquitetura.
Esta
é a última tese. Durante o colóquio, eu voltarei a ela se vocês assim desejarem,
mas antes eu quero me remeter a um exemplo. Um fragmento musical de Stokhausen
já não significa nada, não exprime nada, mas constrói um tempo e um espaço
pelos quais se atribuem a possibilidade de se tornar espaço e tempo na vida
concreta. É possível, usando a música, a arquitetura ou a pintura, criar algo
que seja mais do que uma simples decoração ou pintura, para realizar a
transfiguração, uma transformação da vida cotidiana. Esse é o destino, a
vocação de uma arte que não será mais o que chamamos de arte simplesmente e
passará por transformações que, de fato, já estão ocorrendo. Nós a viveremos,
ao invés de assistir ou ouvir obras estranhas à vida. A própria noção de obra
de arte está prestes a se transformar diante dos nossos olhos. Nossa obra de
arte será a nossa vida, com todos os meios disponíveis, da técnica, todos os
meios que ainda são atribuídos ao que ainda chamamos de arte.
Vamos
primeiro considerar a cultura de massa. Trata-se de consumo devorador, em
escala gigantesca. Vive-se para comer, para destruir a arte, a literatura
antiga, os estilos; abstraídos, por outro lado, da própria condição e vida. As
massas consomem tudo o que é bonito e grandioso, destruindo e aniquilando. De
fato, na sociedade tal como é hoje organizada, tudo se transforma em
mercadoria. Mas de uma maneira que não é mais aquela mercadoria clássica,
analisada por Marx, mas de uma "forma", a do puro espetáculo.
Trata-se, portanto, de uma alienação diferente da reificação que, por outro
lado, não se suprime, mas se sobrepõe. A forma generalizada da compra e venda
vem aludir algo mais: a forma da contemplação, fantasmal, fantástica, da pura
contemplação do puro espetáculo. No cinema, na televisão, o espectador
puramente passivo não se deleita com música que escuta; apenas contempla, sem
objetivo nem finalidade. Isso produz generalizadamente seres humanos estranhos,
ao mesmo tempo concretos e, terrivelmente, abstratos. Nesta rápida observação
sobre a arte das massas, vemos por fim a arte propriamente dita.
Há
uma literatura na forma do ensaio, de enorme Interesse público e que não
renuncia nunca um auditório, mas que é restrita a parâmetros comerciais. O
exemplo típico é o surrealismo. Poderíamos citar Rimbaud, cuja vida tem sido
exemplar e emblemática: o grito poético e depois o silêncio. Mas o que eu
realmente gostaria de atentar é para o que ocorreu por volta de 1910. Nessa
época, produziu-se um desmantelamento de todos os sistemas de referência. Por
quê? Isso ainda não está muito claro. Todavia, desapareceu, ao mesmo tempo,
tanto a linha do horizonte quanto o espaço perspectivo (é a época das primeiras
obras de Kandinsky, nas quais desapareceram a perspectiva e a linha do
horizonte); ou ainda, o sistema tonal do livro da Harmonia de Schoenberg, que foi publicado em 1913. É o momento em
que a referência ao real e à realidade é estraçalhada e sucumbida (a poesia de Apollinare).
O que aconteceu? Novas técnicas entram em jogo: a luz elétrica, o motor, o
automóvel, a aviação, a velocidade; e, ao mesmo tempo, novas relações sociais
são impostas: o capitalismo de concorrência, analisado por Marx, desaparece
para dar lugar ao capitalismo monopolista. Neste ponto quero formular uma
hipótese, só uma. (É uma pena que Roland Barthes não esteja mais aqui para
discutir isso). Nós não fomos capazes de produzir muito neste período, de 1910,
por uma razão muito profunda: uma ruptura da antiga relação indissolúvel dos
significados e dos significantes, entre a denotação (o real designado) e a
conotação. Será então que os signos permanecem ligados ao cotidiano enquanto os
significados se demoram ou, ao contrário, modificam-se por causa das transformações
técnicas e sociais? Não se teria sido produzido nesta época um atraso entre
significantes e significados? E a arte e os artistas, poetas e literatos, se
instauram no significante. Seria verdadeiramente curioso seguir, a partir deste
ponto ou ponto de vista, a relação exata entre signos significados-significante
e, por exemplo, o corpo de uma mulher desde, digamos, as primeiras obras de
Picasso até aquelas expostas neste ano. Ver-se-á, ao meu entender, como é
acentuado, no signo, a ruptura entre o significado e significante; como há uma
sobrecarga de significantes e como essa ruptura acompanha uma espécie de crueldade
crescente para com o significado, que se afasta em outra direção, que é
continuamente distante, invocada e usada novamente com habilidade prodigiosa. O
que eu estou querondo dizer é que uma vez que a ruptura é produzida, no signo,
entre significados e significantes, alguns se instalam nos significantes enquanto
os significados fogem. Eles aprofundam a destruição de uma relação que parece
indissolúvel e fundamental. Aí então vem o dadaísmo, surge numa data muito
importante, 1917, através de apenas duas breves palavras "da-da",
quando, ao fim da primeira guerra mundial, se manifestam verdadeiramente a arte
moderna, o pensamento e a literatura. Há uma ruptura. O dadaísmo constitui ao
mesmo tempo uma revolução, uma negação global da literatura e da arte, uma
negação da vida burguesa, uma tentativa de revolução verbal, somente verbal,
mas total, à sua maneira. E, então, segue-se o surrealismo. A linha é contínua:
dadaismo, surrealismo, letrismo. O surrealismo, no começo, significa uma
revolução total contra a linguagem, a literatura e a arte. Não a tudo! Destrua
tudo! Até bem mais tarde, não há nenhum tipo de restituição dos valores (dos
valores clássicos admitidos), que levaram Aragón a se tornar quem é e Breton a
ser, novamente, um homem de letras no sentido usual da palavra, contrastando com
a sua primeira fase.
Mais
tarde, houve outras tentativas de antipoesia, ou antiliteratura, para fazer
literatura em seguida. O êxito veio no momento em que se retorna às formas
usuais e clássicas. Começa com o antiteatro para fazer a continuação do teatro.
O exemplo de lonesco é excepcionalmente interessante, porque ele está prestes a
se tornar um autor oficial e "clássico", e ainda assim ele começou
com o antiteatro. De fato, caminho do êxito é duro para a inspiração!
Isto
é ainda mais verdadeiro no caso das artes plásticas ou da música. Quando
ouvimos um concerto de música concreta, nos perguntamos primeiro o que aconteceu
com a noção de obra, porque o compositor é um técnico, um engenheiro de som.
Não perguntamos onde estão as categorias habituais de expressão e significado,
porque não há mais expressão nem significado. Eu tenho a impressão de que
Boulez faz o que todo mundo faz: ele começou a fazer antimusica e acabou
fazendo música bonita e boa, com grande êxito.
Alguns
heróis da arte querem acreditar positivamente não serem destruidores; o que
acontece é que eles, às vezes, destroem o objeto; às vezes, o sujeito; às
vezes, o equilíbrio; às vezes, o drama. Para citar um exemplo, vamos pensar,
por um lado, em Joyce e Kafka e, por outro, na descrição interminável do
objeto. Alguns dramatizam demais, outros dramatizam exageradamente. Eu me
pergunto (sempre como hipótese) se o divórcio entre os significantes e os
significados, entre o equilíbrio e o drama, entre o objeto e sujeito, não
constituirá um fenômeno sociológico.
Ao
lado dos que se consideram criadores, construtores e, cuja trajetória leva à nouveau roman, existe a linha dos negadores,
que continua. Eu tenho dito já em muitas ocasiões e me permito repetir aqui. A
obra característica de nossa época, ao menos segundo minha interpretação, é a
de Artaud e Robbe-Grillet, e Beckett com essa espécie de autodestruição da obra
mesma. Quem viu Madeleine Renaud saindo de um monte de escombros recitando um
texto, num verdadeiro escárnio de tudo, incluindo o teatro, quem a viu, não se
esquecerá.
Na
linha dos negadores, ocupa um lugar especial Malcolm Lowry com seu romance Au-dessous du volcan, e que me parece
uma das obras mais ricas destes últimos anos. E, neste ponto, farão objeções: e
o socialismo? O realismo socialista? Ocorre tal como se a missão histórica (e
aqui a caracterizo intencionalmente) do socialismo fosse levar a arte até seu
fim mesmo, porque as obras do chamado realismo socialistas têm, talvez, um grande
valor de propaganda, mas nenhum artístico. De tal forma que o grande cenário da
destruição e da autodestruição da arte do realismo socialista me parece ocupar
um dos primeiros lugares.
O
último ponto crucial (ao qual creio não esgotarem os meus quarentas minutos,
tanto assim que resumi, por medo de ser interrupido), o último ponto importante
é o seguinte: eu me recuso a tomar uma posição acerca da linguagem, o seu lugar
na ciência e no conhecimento. Seria a linguagem o protótipo da
inteligibilidade? A linguagem é um reflexo mais ou menos verdadeiro da história
e sociedade? Recuso-me a tomar uma posição aqui nesta discussão. O importante é
que estamos participando, em síntese, de uma espécie de fetichização da
linguagem e de sua dissolução. A linguagem é fetichizada. Ela é considerada uma
espécie de absoluto, fonte não só de inteligibilidade mas também de condutor
social. Tudo se consistiu em linguagem. Neste sentido, eu teria de recorrer à
linguagem para resolver todos os problemas. Este fetichismo não é obra destes
últimos anos, do trabalho de Lévi-Strauss ou Saussure. Remonta a Alquimia do verbo, através do qual os
poetas se imaginavam transfigurar poeticamente e metamorfosear o real, ou seja,
a vida cotidiana. O fetichismo é, portanto, antigo. Acompanha, precisamente, a
ruptura entre os significantes e os significados, dos quais acabamos de falar.
Quem assistiu a exposição de Roland Barthes, em sua aula inaugural no Collège de France, sobre a história da literatura,
teria mencionado (não sei se ele assim o fez) um texto de Paul Valéry. No
texto, Valéry diz abertamente que é necessário reabilitar e reinterpretar
figuras retóricas.
Existe,
portanto, um fetichismo da linguagem e, ao mesmo tempo, uma extraordinária linguagem
para ser dissolvida sob os mais diferentes aspectos: meios audiovisuais,
utilização virtuosa e acrobática da linguagem. Às vezes, são os mesmos que
fetichizam e os que destroem a linguagem, de tal forma que esse homem
extraordinariamente inteligente, que é Raymon Queneau, diretor do grupo
"Oulipo", faz arte combinatória. Vocês conhecem os milhões e milhões
de sonetos escritos com a combinação de alexandrinos que podem ser agrupados de
forma arbitrária. É o mesmo que Zazie
dans le métro. A primeira linha: Doucékipudonktan
já é um assassinato de linguagem.
Simultaneamente,
há o fetiche da comunicação. Ah! que maneira de se lidar com a comunicação
quando se percebe que se está só e não há comunicação! Que estranha é essa
simultaneidade entre a solidão e o estudo das comunicações! Uma revista chamada
Aléthéia editada por um grupo de jovens,
na qual podemos ler o seguinte sobre os filmes de Resnais (se eu pudesse me estender
sobre os filmes de Resnais, correria o risco de discutir acaloradamente com
Lucien Goldmann): "Muriel é o lírico e irônico em uma cidade, em sua
inquietude, no momento do referendum.
Essa preocupação? Um universo da palavra em ruínas, um monte de insucessos e de
lugares comuns sobre os que murmuravam mil palavras justificadoras e não
nomeadas, mentiras de jogadores, um universo da palavra no que já não se pode contar
nada... no qual cada frase tem acentos de disputas (o que põe de manifesto
Resnais mediante mudanças bruscas de planos depois de uma frase mediante ao
silêncio), dos seres desarraigados por esta linguagem de deriva”. Esta análise de
um filme por um grupo de jovens é muito oportuna. Destruição. Mas destruição de
quê? Da vida burguesa por não saber ter sido outra coisa. Autodestruição. Mas
autodestruição da arte, posto ante à alternativa de se criar outra coisa, isto
é, de transfigurar a vida cotidiana. Estes dois aspectos da autodestruição e
destruição me parecem complementários e solidários, dentro do quadro que os tem
oferecido sob o signo da negatividade.
(LEFEBVRE,
H., “De la literatura y el arte modernos considerados como procesos de
destrucción y autodestrucción del arte”, in:
LITERATURA Y SOCIEDAD: PROBLEMAS DE METODOLOGÍA EN SOCIOLOGÍA DE LA LITERATURA –
Roland Barthes, Henri Lefebvre e Lucien Goldmann, Ediciones Martínez Roca, S.
A.: Barcelona, 1969).