quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Henri Lefebvre e a produção do espaço na Geografia

Vivemos em um mundo marcado pela incerteza. A quase 30 anos atrás, ante a queda do Muro de Berlim e do colapso soviético, a imprensa e a opinião pública esclarecida bradavam aos quatro ventos o fim das utopias. Não era um grito de desforra, afinal. Era, no fundo, um lamento, oculto e pessimista. Pois a experiência histórica não revelava apenas o fracasso do socialismo real (este, sim, festejado), mas o que havia de mais positivo nele: o devaneio iluminista de um futuro melhor, mais justo e igualitário. 


Um mundo, enfim, em que os seres humanos, através da razão, comandariam sua própria história. Naquela ocasião, um teórico hegeliano do capitalismo, Francis Fukuyama, não se fez por esperar e publicou o livro “O fim da história e o último homem”. Segundo o autor, a história coroava por fim o triunfo da sociedade de mercado, enquanto escopo racional da humanidade. Vã ilusão; o capitalismo não solucionou o mais grave de todos os problemas humanos, presente desde tempos antediluvianos: a fome. De fato, ao invés de universalizar o american way of life (hoje, em decadência também), sob a égide do neoliberalismo, a desigualdade e extrema concentração de riqueza vêm aumentando ano a ano. Fato incontestável: a utopia capitalista também malogrou e sucumbe na queda tendencial da taxa de lucro.

Na atual crise em que mergulhou a sociedade brasileira – reverberando uma crise mundial, – duas tendências estão em choque: o futuro e o passado.

A sociedade urbana, ainda em estado embrionário, virtualidade que não se fez presença, com sua reivindicação plena na diversidade, germina à sombra de poderosas forças conservadoras, resíduos de categorias históricas. Luta encarniçada, violenta, em um cenário no qual nenhuma contradição foi superada. Ao contrário, novas contradições emergem e juntam-se às antigas, persistentemente históricas. À escassez do “pão” (miséria, fome, doença), soma-se, agora, a escassez de espaço (devastação, poluição, aquecimento global, déficit habitacional, crise hídrica, superpopulação).

Eis a grande problemática da geografia atual e que permeia toda a questão da produção do espaço. Aliás, a geografia só voltará a ser uma ciência prestigiada se colocar em primeiro plano as considerações acima, formuladas pelo filósofo francês Henri Lefebvre.

(Jean Pires de Azevedo Gonçalves)

Veja também nossos artigos "Sete teses sobre a arte e a crítica vida cotidiana, por Henri Lefebvre" e A produção do espaço: de Henri Lefebvre à Geografia e o resumo e comentário, feito por nós, de O Nascimento da Tragédia (Nietzsche).

Muito antes de Fukuyama, em 1970, para ser mais exato, Lefebvre já havia escrito um fim da história muito mais profícuo, em termos intelectuais, e que, além disso, parece retratar o mundo atual em cores muito mais vibrantes. Trata-se de La fin de l'histoire: arguments (O fim da história, Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1971), no qual transcrevo aqui alguns fragmentos abaixo:

*****

O FIM DA HISTÓRIA
(fragmentos)

Fim da história. Fim do sentido da história. Sentido do fim da história. Estes três temas entrelaçam-se. Aqui, o terceiro tema domina os outros.

Para os seus fundadores (Hegel e Marx), a história unia indissoluvelmente verdade e sentido. A verdade falhou. A história que comporta a verdade de todas as coisas? A história que oferecia a sua própria verdade? Tais afirmações volveram-se em interrogações e a dúvida sucedeu o questionamento. O sentido separa-se da história e vira-se contra ela. Qual era então, qual é o seu sentido? Na falta de verdade, que ela declare a sua direção. Ora, o seu sentido era o seu fim. E os fundadores sabiam-no. E o fim continha também a verdade. Mas então, se a história tem de acabar, se esse fim é ao mesmo tempo a sua verdade e o sentido, tal fim não será um fato em vias de realização ou já realizado? Nietzsche terá razão (terá por ele a razão, e não só a sua interpretação). Deste modo, a questão do sentido do fim passa ao primeiro plano. (...)

Durante muito tempo, a noção de “histórico-mundial” é admitida sem exame. Hoje essa unidade já se impõe. O histórico e o mundial já se não coincidem. O mundial ergue-se sobre as ruínas da historicidade como não histórico, pós-histórico, trans-histórico.

É difícil pensar que uma vida real, passando sob um arco do triunfo gigante, desemboque na mundialidade. Não será necessário transpor um limiar na proximidades do qual se descubra um horizonte de terrores: terror nuclear, terror estatal, terror generalizado pela violência, estranha contrapartida da pouca estranha satisfação dos consumidores? (...)

O fim da história é talvez a sua destruição violenta, a sua autodestruição. A tragédia readquire os seus valores. É o menos que se pode dizer. (...)

Sob vocábulos diversos, socialismo e comunismo, sociedade de abundância, ou ainda “era pós-industrial”, anuncia-se uma sociedade sem violência. Será ela o reino do tédio? É um grande problema. (...) No entanto, nada garante que a sociedade que se anuncia seja de repouso total. Acumula-se novas contradições, enquanto nenhuma contradição antiga está completamente resolvida. Nada prova que a nova época terá superado todos os conflitos, que as contradições ditas históricas terão desaparecido, que a dialética tornará a encontrar a historicidade no reino das sombras. A luta contra a natureza não acaba, nem a luta contra aqueles que apenas se ocupam da luta contra a natureza (sujeição e dominação técnicas, e por conseguinte devastação mortal da natureza). O trajeto que vai das particularidades às diferenças conhecidas e reconhecidas como tais não será falho de animação. A problemática urbana recorre a causas e razões de conflitos; os não-violentos, os seus imensos ajustamentos, não fazem passar à conta da historicidade caduca nem a guerrilha urbana nem a revolta dos guetos. São aspectos contraditórios da era trans-histórica. Nestas condições, que será o indivíduo digno desse nome? Aquele que resolver as contradições à sua volta, em si. Se se aborrecesse não seria digno desse nome. (...)

Na prática social pós-histórica, que se desembaraça das tendências anteriores (isto é, segundo esta perspectivação, na sociedade urbana), há descoberta e invenção de múltiplos códigos em caso de necessidade, há restituição de códigos antigos. O tempo histórico (unitário), enquanto referencial, é abandonado. Se o instante e o presente se sobrepõem ao passado, o atual diversifica-se e distancia-se. O tempo multiplica-se e dês-multiplica-se. A diversidade de mensagens (de codificações e descodificações) acentua-se, dando a impressão duma desordem sem fim. O reino da diferença começa. (...)

A história era a superação (seja por aufheben, seja por uberwinden, cambiante secundário). Loucura breve. O ser humano? (...)

Atenção, as massas agitam-se, as que estão acima das nossas cabeças, as que que nos rodeiam, as que fermentam na terra. O trans-histórico não é talvez o que esperais. (...)

Resta que o período histórico definiu um corpo de necessidades. Definição incompleta, contraditória. As necessidades sociais que só podem alargar-se na sociedade urbana continuam mal apreendidas, mal definidas, rejeitadas sem o “cultural”. Podemos todavia reter esta noção de “corpo históricos”, como resultado e resumo antropológico duma certa historicidade. O esquema dos períodos tornar-se-ia então o seguinte:

a) Período agrário: vitalidade, densa, dura e espontânea: desejo, mal definido e não diferenciado, mas forte;

b) Período industrial: mutação do desejo em necessidades classificadas e catalogadas, manipuladas, submetidas a uma prática homogeneizante em contradição com a diversidade, donde um profundo mal-estar;

c) Período urbano: restituição do desejo, reposição da realidade e da separação das necessidades (esquema economista), não aquém do individualismo (esquema naturalista), mas além, ou seja, reconhecimento da diversidade (da diferença) dos desejos na unidade do desejo. A “corporeidade” suplanta simultaneamente a ontologia e a história! (...)

Seja como for, parece impossível apresentar o período indiscriminado como um simples fim dos redemoinhos históricos, paragem do movimento, e por conseguinte das violências, entrada na estagnação sem fim. Poder-se-ia imaginar uma perpétua violência, acontecimentos sem trégua, mas sem que as mudanças se encadeassem à maneira histórica. Assim, os fenômenos urbanos: guerrilhas, imensas reuniões pacíficas etc. Não passa, porém, duma hipótese extrema, que não leva em conta certos elementos: a luta de classes levada a cabo, a intervenção do pensamento do pensamento teórico etc.

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