terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

O Quixotesco Miguel de Cervantes

“De feições aquilinas, cabelos castanho, testa lisa e serena, de olhos alegres, nariz torto, mas bem proporcionado, barba prateada – há apenas 20 anos, era cor de ouro – grandes bigodes, boca pequena, restaram apenas seis dentes e esses mesmos em mau estado e pior colocação, pele clara, compleição um tanto pesada e andar um pouco lento”. Assim Miguel de Cervantes Saavedra descrevia a si mesmo, talvez, com bom humor e voz risonha.

Miguel de Cervantes Saavedra

O autor do magistral romance Dom Quixote nasceu numa antiga e bela cidade próxima de Madri, Alcalá de Henares, em 1547. Filho de Rodrigo e de Leonor de Cortinas, seu pai era um boticário cirurgião, profissão que mal proporcionava uns poucos rendimentos para o sustento da família. Em suas memórias, Miguel se lembrava de seu pai juntando quinquilharias domésticas para quitar débitos e, depois, sendo levado preso pela polícia por não pagar as dívidas acumuladas.

Aos 22 anos, Cervantes não possuía nada além de sonhos de glória. Muito pouco se sabe como o jovem obteve instrução e é possível que tenha frequentado a Universidade de Salamanca, trabalhando nas horas vagas como pajem de estudantes ricos. Mas sua formação como romancista se deu nas ruas da cidade, em ambiente rude, repleto de infortúnios e provações. No teatro, Cervantes gastava todo o seu dinheiro, algo que não foi em vão, pois os palcos foram a grande escola onde aprimorou seu espírito artístico e descobriu o poder da fantasia.

No ano de 1569, após um duelo, foge para Itália e se alista no exército espanhol. Pela primeira vez come com regularidade e veste roupas limpas e bonitas: um vistoso uniforme militar.

Em 1571, a poderosa esquadra turca avança para o Ocidente. O Sultão Selim II pretendia arrancar a Cruz da Igreja de São Pedro, em Roma, e erguer, no lugar, o Crescente islâmico. Para deter o avanço turco pelo Mar Mediterrâneo, o rei Filipe II da Espanha, país que figurava como a grande potência europeia da época, envia navios comandados pelo seu meio-irmão Dom João da Áustria para unir forças com os Estados Pontifícios e Veneza. 

Miguel de Cervantes servia na frota e foi para a guerra.

Na Batalha de Lepanto, os aliados enfrentaram a esquadra turca na mais sangrenta batalha naval de que já se teve notícia. Os navios afundam um depois do outro e os soldados se enfrentam em encarniçada luta corpo a corpo. Pelo menos 8.000 cristãos e 25.000 turcos morreram em combate. Durante a escaramuça, Cervantes, que, para piorar, sofria com os males da malária, é atingido por dois tiros que o acertam o peito e um outro que o perfura o braço esquerdo. Ao final da luta, os turcos saem derrotados.

Em 1575, Cervantes vai para a Espanha, portando consigo uma carta de recomendação de Dom João ao rei Filipe II, o que lhe rendia a expectativa de garantir um bom emprego público. Mas os viajantes foram atacados por piratas mouros e levados como escravos para a Argélia. Muito embora a deficiência de sua mão causada pela ferida de guerra o salvasse de uma vida infortunada nas galés, Cervantes não escapou de um destino sombrio, tornando-se escravo de Dali Mami, um cristão renegado. Ao ler a carta de recomendação de Cervantes, Mami imaginou obter um lucro vultoso com um prisioneiro tão valioso e exigiu um bom resgate.

Os meses se passaram e por mais de uma vez Cervantes organizou tentativas de fuga. Capturado todas as vezes, assumiu audaciosamente a responsabilidade pelas conspirações. Foi condenado à morte, mas sua coragem o salvara, pois os muçulmanos nutriam especial admiração pela bravura de um guerreiro.

Após cinco anos de cativeiro, sua família, na Espanha, conseguiu pagar o resgate. Libertado em 1580, passou dois anos em Portugal, antes de retornar à Espanha. No solo da terra natal, descobriu a indiferença com que os ex-combatentes de guerra eram tratados. Então Cervantes se dedica a escrever.

Em 1585, publica uma “pastoral” chamada Galatea, na qual retrata a vida de pastores sobranceiros e pastorinhas ardilosas. O estilo elegante, mas artificial, do livro rendeu apenas o suficiente para o autor comprar um terno de casamento e alguns ducados de dote para a noiva, Catalina de Palácios Salazar y Vozmediano, moça quase duas vezes mais nova.

Casa-se e vive por algum período em Esquivias, povoado de La Mancha. Então, o casal se muda para Madri, onde Cervantes passa a conviver na companhia de atores e escritores boêmios.

Enquanto o casamento vai afundando, Cervantes escreve uma dezena de peças que mal dão o suficiente para sobreviver. Para piorar, surge em cena um jovem escritor, Félix Lope de Vega, que logo se tornaria um aclamado autor de sucesso. Não havia mais lugar para Cervantes na dramaturgia espanhola.

Então, Cervantes guardou a sua pena e foi trabalhar como cobrador de impostos. Além disso, também se tornou responsável por angariar fundos destinados à Invencível Armada, já que a Espanha se preparava para entrar em guerra contra a Inglaterra. A má administração dos recursos e a quebra do banco em que guardava a arrecadação acabaram o levando para trás das grades.

A convivência com os presos, porém, forneceu material de sobra para Cervantes maturar suas ideias numa futura aventura literária. Olhando através das grades da janela da prisão, remontava em pensamento para as estradas da Andaluzia, onde encontrava atores ambulantes, sacerdotes da igreja, mouros andarilhos, donzelas disfarçadas de rapaz, ciganos vendedores de cavalos, camponeses em fuga para cidade, bêbados etc. Os anos passados na vida militar também darão colorido especial ao enredo das páginas escritas mais tarde, quando o velho soldado lembrava deliciosamente das boas tabernas, do vinho italiano e das belas mulheres. Ao sair da prisão, estava pronto para a grande obra de sua vida.

E não havia momento mais apropriado para o pobre escritor de 58 anos retratar, com base nas reminiscências de sua vida, a figura excêntrica que devia condensar perfeitamente a então conjuntura da Espanha. Humilhada pela Inglaterra, sua Invencível Armada jazia no fundo do mar, arrastando com ela a crença romântica do glorioso reino espanhol fadado a dominar o mundo.

Enfim, Cervantes apresentava o remédio que cicatrizaria, através do riso, as feridas da Espanha: Dom Quixote, o Cavaleiro de La Mancha, e seu fiel escudeiro Sancho Pança.

Publicado pela primeira vez em 1605, a fama de Dom Quixote correu a Espanha. Quando começou a escrever, Cervantes pretendia apenas ridicularizar os tolos romances de cavalaria que estavam tão em moda naquela época. Motivado pelo afã das grandes façanhas, o personagem principal, Dom Quixote, sonha em reviver o esplendor das histórias de cavaleiros medievais. Para isso, recruta o pobre campônio Sancho Pança e parte em busca de aventuras fantásticas, como salvar donzelas sequestradas e lutar com terríveis dragões.

Todavia, o tresloucado cavaleiro começou a conquistar a admiração do público, que amava sua nobreza de caráter, além do desajustado companheiro que o acompanha. A princípio, este parece ser mais um bronco interiorano; ledo engano, Sancho Pança, ao longo do romance, revela um extraordinário senso de realidade e passa a contrapor com extremo bom-senso às insanidades de seu amo.

O ponto de partida da história é a região de La Mancha, no centro da Espanha, caracterizada por planícies, onde, ainda hoje, erguem-se, desgastados pelo tempo, os mesmos moinhos de vento descritos no romance. Habitada por poucas aldeias e alguns pastores com seus rebanhos, Dom Quixote é, no entanto, uma narrativa pujante povoada por mais de 600 personagens que atravessam as páginas desse que é considerado, pela crítica literária, o primeiro grande romance já escrito.

Numa das passagens mais notórias da literatura universal, o cavaleiro andante luta contra moinhos de vento, que acredita serem gigantes, e é desafortunadamente lançado para longe, caindo de cabeça para baixo.

“Lutar contra moinhos de vento” ou ser “quixotesco” se tornaram expressões da cultura humana, incorporadas em todas as línguas. Atualmente, o romance se divide em duas partes que aparecem juntas, em volumes que constituem um dos grandes tesouros da cultura ocidental. Muitos artistas, Goya, Picasso, Dalí, Masson, entre outros, reverenciaram o personagem e Dom Quixote ultrapassou as páginas da literatura para também estrear no palco do teatro, na opera e no cinema.

Mas quem nunca lutou com seus moinhos de vento? Eis a força e a magia de Dom Quixote.

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