sábado, 1 de junho de 2024

A questão monárquica de Ricardo Reis

Ricardo Reis

Por G.Ã.P.

1. Narrativa: questões formais

Antes de entrar no assunto propriamente dito, cabe a nós realizar alguns apontamentos sobre a narrativa do romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago. Isso se justifica porque é praticamente impossível passar indiferente ao estilo narrativo único das obras de Saramago. Sem se aprofundar muito, no entanto, no aspecto puramente formal, percebe-se de imediato uma ruptura de cunho sintático com a diacrítica, principalmente, no que diz respeito à construção de períodos muito longos das orações, que obriga o leitor a se deter em cada vírgula, em cada ponto final, sem o que perderia toda a compreensão do texto e o efeito vertiginoso provocado pela leitura dos parágrafos. Nenhuma palavra, nenhuma sinalização é por acaso ou é desperdiçada. Outro recurso muito interessante é a introdução do diálogo dos personagens dentro destes longos períodos apenas marcando o início da fala com uma letra maiúscula, dispensando, portanto, as formas tradicionais de discurso direto e indireto e do uso do travessão para distinguir os personagens. Assim, o diálogo dos personagens parece se destacar do texto qual relevo na planície, isto é, sem apresentar ruptura no desenvolvimento da escrita. Muitas vezes, este diálogo se confunde com a própria descrição do narrador, que parece, tal como um personagem, presenciar as cenas descritas por ele mesmo; como se o narrador ora se apresentasse como um dos personagens, ora como um anônimo que vivencia a trama do livro. Isto cria um efeito de familiaridade muito grande entre o narrador e coisa narrada, que se percebe através da estruturação sintática, e que implode com a noção de tempo passado e presente. Outro dado que vale a pena ressaltar é a ausência de pontos de exclamação e interrogação, os quais estão subtendidos a partir da construção da fala dos personagens e do contexto. Além destes aspectos apontados, caberia alguma observação também com relação à disposição dos capítulos, que não recebem título ou numeração. Esse desenvolvimento estilístico da narrativa produz, paradoxalmente, uma atmosfera misteriosa e, às vezes, irremediavelmente sarcástica, que emerge da própria complexidade da criação literária. Quanto ao narrador, como já se afirmou, ele próprio um personagem, às vezes, oculto, às vezes, presente; é um narrador onisciente. Porém, não é um narrador neutro, mas, engajado. Este estilo literário inovador e, muitas vezes, difícil, caracteriza inexoravelmente a obra de Saramago. Tal estilo poderia ser definido como uma polifonia de múltiplas vozes apreendidas pelo autor que transcreve tudo aquilo que ouve num fluxo narrativo indeterminado. Todas estas características narrativas da obra de Saramago estão presentes no romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, porém, chama atenção, aqui, a quantidade de citações de autores e obras consagradas da literatura universal, denotando imenso eruditismo do autor.

Resumo

Em fins de 1935, Ricardo Reis retorna a Portugal depois de uma estada de 17 anos no Brasil. Em Lisboa, hospeda-se no Hotel Bragança, onde trava relações com hóspedes, em particular, a jovem Marcenda, e funcionários do hotel, inclusive, a camareira Lídia, com quem mantém um caso amoroso. Paralelamente, Ricardo Reis é vigiado pela polícia política (PVDE/PIDE).  A certa altura, Ricardo Reis reencontra Fernando Pessoa como um fantasma. O encontro entre os dois dá ensejo para uma reflexão sobre muitos aspectos políticos envolvendo Portugal, tanto em relação a questões internas como internacionais. A partir disso, Saramago desenvolve um romance histórico e, ao mesmo tempo, fantástico, no qual transparece como pano de fundo uma contundente crítica política e social do contexto de Portugal da época salazarista.

Ricardo Reis e Fernando Pessoa: monarquistas?

O personagem Ricardo Reis, heterônimo do poeta Fernando Pessoa, retorna a Portugal por ocasião do falecimento de seu autor, Fernando Pessoa. “Houve ainda uma outra razão para este meu regresso, essa mais egoísta, é que em Novembro rebentou no Brasil uma revolução, muitas mortes, muita gente presa, temi que a situação viesse a piorar, estava indeciso, parto, não parto, mas depois chegou o telegrama, aí decidi-me, pronunciei-me, como disse o outro”. Trata-se do levante revolucionário, em solo brasileiro, ocorrido no ano de 1935, denominado Intentona Comunista.  Essa explicação é dada pelo próprio Ricardo Reis a Fernando Pessoa quando de seu primeiro encontro no Hotel de Bragança. Evidentemente, não o Fernando Pessoa de carne e osso e, sim, o fantasma de Fernando Pessoa (“É uma impressão estranha, esta de me olhar num espelho e não me ver nele”). Neste estranho encontro, Fernando Pessoa parece consentir com a última explicação de Ricardo Reis: “Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de uma que falhou, agora foge do Brasil por causa de outra que, provavelmente, falhou também”. Fernando Pessoa se refere ao conturbado período das primeiras décadas do século XX por que passava Portugal e que levou, em 1908, ao regicídio do rei D. Carlos, atentado cometido pela organização revolucionária Carbonária, além da instauração da República Portuguesa, em 1910. No ano de 1919, entretanto, ocorre uma contrarrevolução monarquista que redundou em fracasso: “Parti para o Brasil em mil novecentos e dezanove, no ano em que se restaurou a monarquia no Norte” (Ricardo Reis). Tal pretexto, em se tratando de Ricardo Reis, é bastante concernente, já que na biografia deste heterônimo Fernando Pessoa o descreve como médico e monarquista. Sobre a Intentona Comunista, Fernando Pessoa teria se interado do episódio pelos jornais e indaga: “Lembro-me de ler, nos meus últimos dias, umas notícias sobre essa revolução, foi uma coisa de bolchevistas, creio”. Aqui então se trava um interessante diálogo entre os dois personagens na qual a Intentona Comunista serve de mote para Fernando Pessoa introduz en passant a situação política em Portugal:

Sim, foi coisa de bolchevistas, uns sargentos, uns soldados, mas os que não morreram foram presos, em dois ou três dias acabou-se tudo, O susto foi grande, Foi, Aqui em Portugal também tem havido umas revoluções, Chegaram-me lá as notícias, Você continua monárquico, Continuo, Sem rei, Pode-se ser monárquico e não querer um rei, É esse o seu caso, É, Boa contradição, Não é pior que outras em que tenho vivido, Querer pelo desejo o que sabe não poder querer pela vontade, Precisamente, Ainda me lembro de quem você é, É natural.

Os antecedentes que levaram a queda da monarquia em Portugal têm início na humilhante aceitação do governo português ao ultimato inglês envolvendo a questão do episódio conhecido como mapa cor-de-rosa de 1890. Questão essa que envolvia a retirada imediata de tropas portuguesas das colônias africanas Angola e Moçambique. Tal episódio vexatório, somando-se à proclamação da república no Brasil, desatando o último e tênue laço de Portugal com a ex-colônia americana, marcava a decadência da expansão ultramarina que fora cantada por Luis Vaz de Camões no século XVI.

Em 1933, Hitler chega ao poder e, em 1939, tem inicio a Segunda Guerra Mundial, quando os nazistas intentaram expandir seu império através de um projeto colonial justificado pela necessidade do espaço vital. Mas ainda estamos, no romance, nos anos 1936, início da Guerra Civil Espanhola, que levaria o general Franco ao poder e seria um balão de ensaio para a segunda guerra.

Neste contexto, é evidente que Portugal há muito perdera toda importância no cenário geopolítico que marcou o neocolonialismo do século XIX e meados do XX. Do ponto de vista do nacionalismo lusitano, um possível Império Português deveria assumir novos contornos, ainda que simbólicos.  O Império Português devia assumir novos contornos, ainda que simbólicos.

A questão da monarquia então era um tema caro aos poetas Fernando Pessoa e Ricardo Reis. Pois, embora Fernando Pessoa não se notabilize por ser um monarquista declarado, sua missão poética, que visava suplantar o até então maior poeta português, Camões, e sua obra monumental Os Lusíadas, é um “megalomaníaco” projeto monarquista.

No romance esta questão, a questão é posta por Saramago nos seguintes termos:

...haja em vista o mapa cor-de-rosa, tivesse ele vingado, como era de justiça, e hoje ninguém nos poria o pé adiante, de Angola à Contra-Costa tudo seria caminho chão e bandeira portuguesa. E foram os ingleses que nos rasteiraram, pérfida Albion, como é costume deles, duvida-se mesmo que sejam capazes doutros comportamentos, está-lhes no vício, não há povo no mundo que não tenha razões de queixa. Quando Fernando Pessoa aí vier, não há-de Ricardo Reis esquecer-se de lhe apresentar o interessante problema que é o da necessidade ou não necessidade das colônias, não do ponto de vista do Lloyd George, tão preocupado com a maneira de calar a Alemanha dando-lhe o que a outros custou tanto a ganhar, mas do seu próprio, dele, Pessoa, profético, sobre o advento do Quinto Império para que estamos fadados, e como resolverá, por um lado, a contradição, que é sua, de não precisar Portugal de colônias para aquele imperial destino, mas de sem elas se diminuir perante si mesmo e ante o mundo, material como moralmente, e, por outro lado, a hipótese de virem a ser entregues à Alemanha colônias nossas, e à Itália, como anda a propor Lloyd George, que Quinto Império será então esse, esbulhados, enganados, quem nos irá reconhecer como imperadores, se estamos feitos Senhor da Cana Verde, povo de dores, estendendo as mãos, que bastou atar frouxamente, verdadeira prisão é aceitar estar preso, as mãos humilhadas para o bodo do século, que por enquanto ainda não nos deixou morrer.

Portanto, o projeto político, inspirador de Mensagem, de Fernando Pessoa ele mesmo, é o “Quinto Império”. Este império não seria um reino material, de grande extensão geográfica, colonial, etc., mas um Império Espiritual, moral. Para tanto, Fernando Pessoa lançaria mão do sebastianismo, a espera messiânica por um D. Sebastião:

D. SEBASTIÃO

REI DE PORTUGAL

Louco, sim, louco, porque quis grandeza

Qual a Sorte a não dá.

Não coube em mim minha certeza;

Por isso onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem

Com o que nela ia.

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadáver adiado que procria?

Todavia, este projeto é posto em dúvida por Saramago, quando lança a hipótese de que Fernando Pessoa titubearia na sua sustentação política do Quinto Império:

Talvez Fernando Pessoa lhe responda, como outras vezes, Você bem sabe que eu não tenho princípios, hoje defendo uma coisa, amanhã outra, não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei, talvez acrescente, porventura justificando-se, Para mim deixou de haver hoje e amanhã, como é que quer que eu ainda acredite, ou espere que os outros possam acreditar, e se acreditarem, pergunto eu, saberão verdadeiramente em que acreditam, saberão, se o Quinto Império foi em mim vaguidade, como pode ter-se transformado em certeza vossa, afinal, acreditaram tão facilmente no que eu disse, e mais sou esta dúvida que nunca disfarcei, melhor teria feito afinal se me tivesse calado (...)

O mesmo se dá com Ricardo Reis.

No diálogo citado acima, entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, Pessoa interpela seu heterônimo: Você continua monárquico, sem rei? Contradizendo a expectativa de um monarquista autêntico, a resposta de Ricardo Reis é categórica: Pode-se ser monárquico e não querer um rei. Ricardo Reis é, talvez, o heterônimo menos politizado de Fernando Pessoa, ou melhor, aquele que submete a política a sua visão idiossincrática de mundo e altamente subjetiva. No poema “Sê Rei de Ti Próprio”, das Odes, de Ricardo Reis, esta contradição parece ser resolvida no plano do individualismo.

Sê Rei de Ti Próprio

Não tenhas nada nas mãos

Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem

Nas mãos o óbolo último,

Ao abrirem-te as mãos

Nada te cairá.

Que trono te querem dar

Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem

Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem

Da estatura da sombra

Que serás quando fores

Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores mas larga-as,

Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica

E sê rei de ti próprio.

O monarquista Ricardo Reis é um monarquista às avessas, ou ainda, um inimigo do rei, um anarquista individualista. Nota-se que até mesmo no nome do heterônimo, além da aliteração do fonema “r”, o substantivo “rei” está no plural, o que dá margem a muitas interpretações. Há alguma coisa de shakespeariano no nome deste heterônimo. O Rei Ricardo III se transforma em Ricardo Reis; não apenas um rei, mas muitos. Ora, o que caracteriza o regime monárquico é o poder político personificado em uma única pessoa, o rei ou a rainha. O poder de muitos é a chamada democracia. Mas uma democracia não comporta, teoricamente, um governo de muitos reis e, sim, de cidadãos que delegam sua participação política a representantes. Um governo de muitos reis é uma contradição e só pode ser suposto no plano da fantasia. Tal como Fernando Pessoa, o projeto político de Ricardo Reis também só se realiza na estância da espiritualidade. Ou seja, é muito mais uma crítica do que um projeto real.

Conclusão

Saramago geralmente utiliza-se de uma estratégia em seus romances em que aparentemente desvia o foco de sua visão pessoal de mundo, principalmente no que tange questões políticas, para sub-repticiamente emergi-la no contexto de sua obra. Neste sentido, o autor constrói um enredo, sobre a vida cotidiana, muitas vezes de caráter sobrenatural e aparentemente descompromissado politicamente, para trafegar na superfície de um fundo realista, de onde, no entrecruzamento destes planos, emerge uma denúncia contundente realidade social.

No romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, Saramago cria dois personagens que são baseados na figura real do poeta Fernando Pessoa e de seu heterônimo Ricardo Reis. Curiosamente, há um movimento de despersonalização, através da narrativa polifônica de Saramago, em que personagem e autor se misturam num incessante jogo de heteronímia. Ou seja, a autoria é totalmente alienada, ficando implícito se, no romance, o autor é um heterônimo dos personagens ou vice-versa. O grau de impessoalidade, que se desdobra em múltiplas personalidades, característica da obra pessoana, é levado ao extremo e explorado por Saramago com precisão no romance. Neste sentido, Saramago cria um ardil através da figura do fantasma de Fernando Pessoa, que bem poderia ser uma alucinação de Ricardo Reis (“Terá sido um sonho”), transformado Fernando Pessoa em heterônimo de seu heterônimo Ricardo Reis. No fundo, Saramago encarna, em sua crítica social, tanto Fernando Pessoa como Ricardo Reis, ao dar voz dissonante aos dois poetas. Tal estratégia induz uma questão: por que Saramago se serve justamente de Fernando Pessoa e Ricardo Reis para denunciar o regime fascista salazarista? Afinal, ambos acreditavam em um projeto monarquista, anacrônico e utópico. Eis a ironia de Saramago. Ao criar dois heterônimos com concepções políticas completamente distintas da do autor, Saramago passa a ter um álibi para defender, em tom de denúncia, suas convicções políticas, acima de qualquer suspeita. Daí não ser por acaso a fuga de Ricardo Reis do Brasil. A certa altura do romance, Saramago escreve: “Fernando Pessoa explicou, É o comunismo, não tarda”.

Para concluir, é por meio da ficção que Saramago demonstra todo seu engajamento político e sua percepção social. O projeto utópico de Fernando Pessoa e a indiferença de Ricardo Reis, monarquista contemplativo e diletante, converte-se, na obra de Saramago, em uma dura crítica aos estados totalitários, dentre eles Portugal, que levariam o mundo à catástrofe da segunda grande guerra.

Bibliografia

PESSOA, Fernando, “Mensagem”, Editora 7 Letras: Rio de Janeiro, 2008.

PESSOA, Fernando, “Odes de Ricardo Reis”, Coleção L&PM Pocket: São Paulo, 2006.

SARAMAGO, José, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, Editorial Caminho: Lisboa, 1985.

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