Por G.Ã.P.
1. Narrativa: questões formais
Antes
de entrar no assunto propriamente dito, cabe a nós realizar alguns apontamentos
sobre a narrativa do romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José
Saramago. Isso se justifica porque é praticamente impossível passar indiferente
ao estilo narrativo único das obras de Saramago. Sem se aprofundar muito, no
entanto, no aspecto puramente formal, percebe-se de imediato uma ruptura de
cunho sintático com a diacrítica, principalmente, no que diz respeito à
construção de períodos muito longos das orações, que obriga o leitor a se deter
em cada vírgula, em cada ponto final, sem o que perderia toda a compreensão do
texto e o efeito vertiginoso provocado pela leitura dos parágrafos. Nenhuma palavra,
nenhuma sinalização é por acaso ou é desperdiçada. Outro recurso muito
interessante é a introdução do diálogo dos personagens dentro destes longos
períodos apenas marcando o início da fala com uma letra maiúscula, dispensando,
portanto, as formas tradicionais de discurso direto e indireto e do uso do
travessão para distinguir os personagens. Assim, o diálogo dos personagens
parece se destacar do texto qual relevo na planície, isto é, sem apresentar
ruptura no desenvolvimento da escrita. Muitas vezes, este diálogo se confunde
com a própria descrição do narrador, que parece, tal como um personagem,
presenciar as cenas descritas por ele mesmo; como se o narrador ora se
apresentasse como um dos personagens, ora como um anônimo que vivencia a trama
do livro. Isto cria um efeito de familiaridade muito grande entre o narrador e
coisa narrada, que se percebe através da estruturação sintática, e que implode
com a noção de tempo passado e presente. Outro dado que vale a pena ressaltar é
a ausência de pontos de exclamação e interrogação, os quais estão subtendidos a
partir da construção da fala dos personagens e do contexto. Além destes
aspectos apontados, caberia alguma observação também com relação à disposição
dos capítulos, que não recebem título ou numeração. Esse desenvolvimento
estilístico da narrativa produz, paradoxalmente, uma atmosfera misteriosa e, às
vezes, irremediavelmente sarcástica, que emerge da própria complexidade da
criação literária. Quanto ao narrador, como já se afirmou, ele próprio um personagem,
às vezes, oculto, às vezes, presente; é um narrador onisciente. Porém, não é um
narrador neutro, mas, engajado. Este estilo literário inovador e, muitas vezes,
difícil, caracteriza inexoravelmente a obra de Saramago. Tal estilo poderia ser
definido como uma polifonia de múltiplas vozes apreendidas pelo autor que
transcreve tudo aquilo que ouve num fluxo narrativo indeterminado. Todas estas
características narrativas da obra de Saramago estão presentes no romance “O
Ano da Morte de Ricardo Reis”, porém, chama atenção, aqui, a quantidade de
citações de autores e obras consagradas da literatura universal, denotando
imenso eruditismo do autor.
Resumo
Em
fins de 1935, Ricardo Reis retorna a Portugal depois de uma estada de 17 anos
no Brasil. Em Lisboa, hospeda-se no Hotel Bragança, onde trava relações com
hóspedes, em particular, a jovem Marcenda, e funcionários do hotel, inclusive,
a camareira Lídia, com quem mantém um caso amoroso. Paralelamente, Ricardo Reis
é vigiado pela polícia política (PVDE/PIDE). A certa altura, Ricardo Reis reencontra
Fernando Pessoa como um fantasma. O encontro entre os dois dá ensejo para uma
reflexão sobre muitos aspectos políticos envolvendo Portugal, tanto em relação
a questões internas como internacionais. A partir disso, Saramago desenvolve um
romance histórico e, ao mesmo tempo, fantástico, no qual transparece como pano
de fundo uma contundente crítica política e social do contexto de Portugal da
época salazarista.
Ricardo Reis e Fernando Pessoa:
monarquistas?
O personagem
Ricardo Reis, heterônimo do poeta Fernando Pessoa, retorna a Portugal por
ocasião do falecimento de seu autor, Fernando Pessoa. “Houve ainda uma outra
razão para este meu regresso, essa mais egoísta, é que em Novembro rebentou no
Brasil uma revolução, muitas mortes, muita gente presa, temi que a situação
viesse a piorar, estava indeciso, parto, não parto, mas depois chegou o
telegrama, aí decidi-me, pronunciei-me, como disse o outro”. Trata-se do
levante revolucionário, em solo brasileiro, ocorrido no ano de 1935, denominado
Intentona Comunista. Essa explicação é
dada pelo próprio Ricardo Reis a Fernando Pessoa quando de seu primeiro
encontro no Hotel de Bragança. Evidentemente, não o Fernando Pessoa de carne e
osso e, sim, o fantasma de Fernando Pessoa (“É uma impressão estranha, esta de
me olhar num espelho e não me ver nele”). Neste estranho encontro, Fernando
Pessoa parece consentir com a última explicação de Ricardo Reis: “Você, Reis,
tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil novecentos e dezanove foi para
o Brasil por causa de uma que falhou, agora foge do Brasil por causa de outra
que, provavelmente, falhou também”. Fernando Pessoa se refere ao conturbado
período das primeiras décadas do século XX por que passava Portugal e que
levou, em 1908, ao regicídio do rei D. Carlos, atentado cometido pela
organização revolucionária Carbonária, além da instauração da República
Portuguesa, em 1910. No ano de 1919, entretanto, ocorre uma contrarrevolução
monarquista que redundou em fracasso: “Parti para o Brasil em mil novecentos e
dezanove, no ano em que se restaurou a monarquia no Norte” (Ricardo Reis). Tal
pretexto, em se tratando de Ricardo Reis, é bastante concernente, já que na
biografia deste heterônimo Fernando Pessoa o descreve como médico e
monarquista. Sobre a Intentona Comunista, Fernando Pessoa teria se interado do
episódio pelos jornais e indaga: “Lembro-me de ler, nos meus últimos dias, umas
notícias sobre essa revolução, foi uma coisa de bolchevistas, creio”. Aqui
então se trava um interessante diálogo entre os dois personagens na qual a
Intentona Comunista serve de mote para Fernando Pessoa introduz en passant a
situação política em Portugal:
Sim,
foi coisa de bolchevistas, uns sargentos, uns soldados, mas os que não morreram
foram presos, em dois ou três dias acabou-se tudo, O susto foi grande, Foi,
Aqui em Portugal também tem havido umas revoluções, Chegaram-me lá as notícias,
Você continua monárquico, Continuo, Sem rei, Pode-se ser monárquico e não
querer um rei, É esse o seu caso, É, Boa contradição, Não é pior que outras em
que tenho vivido, Querer pelo desejo o que sabe não poder querer pela vontade,
Precisamente, Ainda me lembro de quem você é, É natural.
Os
antecedentes que levaram a queda da monarquia em Portugal têm início na
humilhante aceitação do governo português ao ultimato inglês envolvendo a
questão do episódio conhecido como mapa cor-de-rosa
de 1890. Questão essa que envolvia a retirada imediata de tropas portuguesas
das colônias africanas Angola e Moçambique. Tal episódio vexatório, somando-se
à proclamação da república no Brasil, desatando o último e tênue laço de
Portugal com a ex-colônia americana, marcava a decadência da expansão
ultramarina que fora cantada por Luis Vaz de Camões no século XVI.
Em
1933, Hitler chega ao poder e, em 1939, tem inicio a Segunda Guerra Mundial,
quando os nazistas intentaram expandir seu império através de um projeto
colonial justificado pela necessidade do espaço
vital. Mas ainda estamos, no romance, nos anos 1936, início da Guerra Civil
Espanhola, que levaria o general Franco ao poder e seria um balão de ensaio
para a segunda guerra.
Neste
contexto, é evidente que Portugal há muito perdera toda importância no cenário
geopolítico que marcou o neocolonialismo do século XIX e meados do XX. Do ponto
de vista do nacionalismo lusitano, um possível Império Português deveria
assumir novos contornos, ainda que simbólicos. O Império Português devia assumir novos contornos,
ainda que simbólicos.
A
questão da monarquia então era um tema caro aos poetas Fernando Pessoa e
Ricardo Reis. Pois, embora Fernando Pessoa não se notabilize por ser um
monarquista declarado, sua missão poética, que visava suplantar o até então maior
poeta português, Camões, e sua obra monumental Os Lusíadas, é um “megalomaníaco” projeto monarquista.
No
romance esta questão, a questão é posta por Saramago nos seguintes termos:
...haja
em vista o mapa cor-de-rosa, tivesse ele vingado, como era de justiça, e hoje
ninguém nos poria o pé adiante, de Angola à Contra-Costa tudo seria caminho
chão e bandeira portuguesa. E foram os ingleses que nos rasteiraram, pérfida
Albion, como é costume deles, duvida-se mesmo que sejam capazes doutros
comportamentos, está-lhes no vício, não há povo no mundo que não tenha razões
de queixa. Quando Fernando Pessoa aí vier, não há-de Ricardo Reis esquecer-se
de lhe apresentar o interessante problema que é o da necessidade ou não
necessidade das colônias, não do ponto de vista do Lloyd George, tão preocupado
com a maneira de calar a Alemanha dando-lhe o que a outros custou tanto a
ganhar, mas do seu próprio, dele, Pessoa, profético, sobre o advento do Quinto
Império para que estamos fadados, e como resolverá, por um lado, a contradição,
que é sua, de não precisar Portugal de colônias para aquele imperial destino,
mas de sem elas se diminuir perante si mesmo e ante o mundo, material como
moralmente, e, por outro lado, a hipótese de virem a ser entregues à Alemanha
colônias nossas, e à Itália, como anda a propor Lloyd George, que Quinto Império
será então esse, esbulhados, enganados, quem nos irá reconhecer como imperadores,
se estamos feitos Senhor da Cana Verde, povo de dores, estendendo as mãos, que
bastou atar frouxamente, verdadeira prisão é aceitar estar preso, as mãos
humilhadas para o bodo do século, que por enquanto ainda não nos deixou morrer.
Portanto,
o projeto político, inspirador de Mensagem,
de Fernando Pessoa ele mesmo, é o “Quinto Império”. Este império não seria um
reino material, de grande extensão geográfica, colonial, etc., mas um Império Espiritual, moral. Para tanto,
Fernando Pessoa lançaria mão do sebastianismo, a espera messiânica por um D.
Sebastião:
D. SEBASTIÃO
REI
DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver
adiado que procria?
Todavia,
este projeto é posto em dúvida por Saramago, quando lança a hipótese de que
Fernando Pessoa titubearia na sua sustentação política do Quinto Império:
Talvez
Fernando Pessoa lhe responda, como outras vezes, Você bem sabe que eu não tenho
princípios, hoje defendo uma coisa, amanhã outra, não creio no que defendo
hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei, talvez acrescente, porventura
justificando-se, Para mim deixou de haver hoje e amanhã, como é que quer que eu
ainda acredite, ou espere que os outros possam acreditar, e se acreditarem,
pergunto eu, saberão verdadeiramente em que acreditam, saberão, se o Quinto
Império foi em mim vaguidade, como pode ter-se transformado em certeza vossa,
afinal, acreditaram tão facilmente no que eu disse, e mais sou esta dúvida que
nunca disfarcei, melhor teria feito afinal se me tivesse calado (...)
O
mesmo se dá com Ricardo Reis.
No
diálogo citado acima, entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis, Pessoa interpela
seu heterônimo: Você continua monárquico,
sem rei? Contradizendo a expectativa de um monarquista autêntico, a
resposta de Ricardo Reis é categórica: Pode-se
ser monárquico e não querer um rei. Ricardo Reis é, talvez, o heterônimo
menos politizado de Fernando Pessoa, ou melhor, aquele que submete a política a
sua visão idiossincrática de mundo e altamente subjetiva. No poema “Sê Rei de
Ti Próprio”, das Odes, de Ricardo
Reis, esta contradição parece ser resolvida no plano do individualismo.
Sê Rei de Ti Próprio
Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê
rei de ti próprio.
O monarquista
Ricardo Reis é um monarquista às avessas, ou ainda, um inimigo do rei, um
anarquista individualista. Nota-se que até mesmo no nome do heterônimo, além da
aliteração do fonema “r”, o substantivo “rei” está no plural, o que dá margem a
muitas interpretações. Há alguma coisa de shakespeariano no nome deste
heterônimo. O Rei Ricardo III se transforma em Ricardo Reis; não apenas um rei,
mas muitos. Ora, o que caracteriza o regime monárquico é o poder político
personificado em uma única pessoa, o rei ou a rainha. O poder de muitos é a
chamada democracia. Mas uma democracia não comporta, teoricamente, um governo
de muitos reis e, sim, de cidadãos que delegam sua participação política a
representantes. Um governo de muitos reis é uma contradição e só pode ser
suposto no plano da fantasia. Tal como Fernando Pessoa, o projeto político de
Ricardo Reis também só se realiza na estância da espiritualidade. Ou seja, é
muito mais uma crítica do que um projeto real.
Conclusão
Saramago
geralmente utiliza-se de uma estratégia em seus romances em que aparentemente
desvia o foco de sua visão pessoal de mundo, principalmente no que tange
questões políticas, para sub-repticiamente emergi-la no contexto de sua obra.
Neste sentido, o autor constrói um enredo, sobre a vida cotidiana, muitas vezes
de caráter sobrenatural e aparentemente descompromissado politicamente, para
trafegar na superfície de um fundo realista, de onde, no entrecruzamento destes
planos, emerge uma denúncia contundente realidade social.
No
romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, Saramago cria dois personagens que
são baseados na figura real do poeta Fernando Pessoa e de seu heterônimo
Ricardo Reis. Curiosamente, há um movimento de despersonalização, através da
narrativa polifônica de Saramago, em que personagem e autor se misturam num
incessante jogo de heteronímia. Ou seja, a autoria é totalmente alienada,
ficando implícito se, no romance, o autor é um heterônimo dos personagens ou
vice-versa. O grau de impessoalidade, que se desdobra em múltiplas
personalidades, característica da obra pessoana, é levado ao extremo e
explorado por Saramago com precisão no romance. Neste sentido, Saramago cria um
ardil através da figura do fantasma de Fernando Pessoa, que bem poderia ser uma
alucinação de Ricardo Reis (“Terá sido um sonho”), transformado Fernando Pessoa
em heterônimo de seu heterônimo Ricardo Reis. No fundo, Saramago encarna, em
sua crítica social, tanto Fernando Pessoa como Ricardo Reis, ao dar voz dissonante
aos dois poetas. Tal estratégia induz uma questão: por que Saramago se serve
justamente de Fernando Pessoa e Ricardo Reis para denunciar o regime fascista
salazarista? Afinal, ambos acreditavam em um projeto monarquista, anacrônico e
utópico. Eis a ironia de Saramago. Ao criar dois heterônimos com concepções
políticas completamente distintas da do autor, Saramago passa a ter um álibi
para defender, em tom de denúncia, suas convicções políticas, acima de qualquer
suspeita. Daí não ser por acaso a fuga de Ricardo Reis do Brasil. A certa
altura do romance, Saramago escreve: “Fernando Pessoa explicou, É o comunismo,
não tarda”.
Para
concluir, é por meio da ficção que Saramago demonstra todo seu engajamento
político e sua percepção social. O projeto utópico de Fernando Pessoa e a
indiferença de Ricardo Reis, monarquista contemplativo e diletante, converte-se,
na obra de Saramago, em uma dura crítica aos estados totalitários, dentre eles
Portugal, que levariam o mundo à catástrofe da segunda grande guerra.
Bibliografia
PESSOA,
Fernando, “Mensagem”, Editora 7 Letras: Rio de Janeiro, 2008.
PESSOA,
Fernando, “Odes de Ricardo Reis”, Coleção L&PM Pocket: São Paulo, 2006.
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