quarta-feira, 1 de maio de 2024

Análise do poema "Balada de Ouro Preto", de Cecília Meireles

 Cecília Meireles


Por G. Ã. P.

Introdução

O ciclo do ouro no Brasil no século XVIII só pode ser entendido a partir da decadência da produção açucareira na região nordeste, diante da concorrência estabelecida por outros centros produtores, notadamente as Antilhas, dos Holandeses, e, graças a isso, da decorrente dependência de Portugal em relação à Inglaterra, estabelecida pelo Tratado de Methuen ou, como também foi conhecido, Panos e Vinho.

Diante deste quadro, a metrópole portuguesa viu-se empobrecida de uma hora para outra e endividada e, por conseguinte, passou a estimular os colonos do Brasil à procura de metais preciosos. As sucessivas incursões dos bandeirantes pelo sertão do vasto território colonial acabaram por resultar na descoberta de outro e prata na região de Minas Gerais. Com isso, Portugal passou a uma situação contraria e pôde a Coroa novamente reequilibrar suas contas e saldar as dívidas com a Inglaterra. Paralelamente, a mineração trouxe um surto de prosperidade para a região das minas ao mesmo tempo em que dinamizava a economia de outras regiões através de um desenvolvimento de um mercado interno incipiente. Todavia, a extrema dependência pela Coroa portuguesa de metais preciosos para manter seu fausto e luxo, intensificou a vigilância e o controle sobre os colonos, gerando conflitos permanentes diante da cobrança de impostos e das famigeradas derramas. O esgotamento das minas redundou em movimentos insurrecionais, como o da Inconfidência Mineira, e também gerou o fim do pacto colonial.

Neste período, Minas Gerais viveu um intenso desenvolvimento econômico, baseado na riqueza móvel e circulante, isto é, dinheiro, e também de mobilidade social, ocasionando, no coração da colônia, um grande florescimento cultural na arquitetura, escultura, literatura e música. É neste contexto que surge o barroco brasileiro, tendo em seu expoente máximo a figura de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e uma intelectualidade sintonizada com as ideias do Iluminismo europeu, apesar da proibição pela metrópole de bibliotecas na colônia. Estas eram clandestinas e coleções de particulares, tornando-se difusores culturais da sociedade mineira.

O campo da literatura também foi bastante fecundo, com inúmeros poetas e a escola da Arcádia Mineira. Alguns poetas se destacam, como Basílio da Gama, e seu épico “O Uruguai”; frei Santa Rita Durão, com “Caramuru”; Cláudio Manuel da Costa, “Vila Rica”; e Tomás Antônio Gonzaga, com “Marília de Dirceu”. Segundo o professor Augusto Massi, em depoimento dado em sala de aula, embora a literatura árcade soasse um tanto artificial para o contexto colonial das minas, pelas suas referências clássicas bucólica e pastoral da antiguidade, na prática era uma forma de engajamento político daqueles literatos, que se posicionavam contra a dominação exercida pela metrópole. De fato, os poetas Tomas Antonio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa participaram, juntamente com Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, da Inconfidência Mineira.

Este engajamento também influenciaram outras escolas literárias no Brasil. Conforme Massi, em aula, muito embora o arcadismo seja compreendido na academia como literatura luso-colonial, os românticos, como Castro Alves, leram os árcades numa chave nacionalista, às vezes, para justificar pautas políticas como a abolição da escravatura. Ainda com Massi, na mesma linha, os Modernistas também se apropriaram do contexto histórico das cidades mineiras, transformando-o numa referência obrigatória quase ritualística da literatura brasileira.

Em o “Romanceiro da Inconfidência”, Cecília Meireles tratou do ciclo do ouro nos termos históricos descritos acima, ressaltando o movimento insurgente liderado por Tiradentes. Para o trabalho, no entanto, a sugestão para a análise será o poema “Balada de Ouro Preto”.

Aspectos gerais do poema

A estrutura formal do poema é composta de redondilhas de sete silabas poéticas e cinco sextilhas. Ao contrário de um poema histórico de viés nacionalista, a temática do poema “Balada de Ouro Preto” é bastante banal ou, melhor dizendo, refere-se a um acontecimento relativo ao cotidiano de Ouro Preto em uma determinada situação que pode ter ocorrido durante uma visita de Cecília Meireles à cidade. Assim sendo, o poema narra um encontro, diante de uma casa antiga de Ouro Preto, do Eu lírico com um homem acometido pela lepra. O leproso se dirige sorrindo para a poeta; então o Eu lírico realiza uma digressão a respeito do sorriso daquele homem que subverte completamente a superfície da realidade aparente. Aliás, em cada estrofe, o poema apresenta um jogo de oposições, entre claro-escuro, que parece repercutir a arquitetura e a escultura barroca de Aleijadinho. A referência entre o leproso e o Aleijadinho também é óbvia. O poema fecha com um desejo catártico do Eu lírico, possível apenas na fantasia imagética, para que santos da Idade Média curem o leproso, restaurando assim a harmonia daquele mundo.

Análise do poema

Para melhor entendimento, os versos do poema serão enumerados.

BALADA DE OURO PRETO

 

1 Parei a uma porta aberta

2 para mirar um ladrilho.

3 Veio de dentro o leproso

4 como quem sai de um jazigo.

5 Caminhava ao meu encontro,

6 sinistramente sorrindo.

 

7 Mas vi-lhe os braços de líquen,

8 e as duas mãos desfolhadas,

9 que cauteloso escondia

10 nos fundos bolsos das calças.

11 Chamas de um secreto inferno

12 em seu sorriso oscilavam.

 

13 Fora menos triste a lepra

14 do que o fogo do sorriso.

15 E era linda aquela casa

16 com o vestíbulo vazio;

17 e era alegre aquela porta

18 de claro azulejo antigo.

 

19 Ó santos da Idade Média,

20 descei por esta ladeira,

21 parai a esta porta suave,

22 que de azul toda se enfeita,

23 tocai estes braços fluídos

24 que vão sendo rosa e areia,

 

25 tornai-os firmes e pulcros,

26 com mãos lisas, dedos novos,

27 para que este homem não fite

28 ninguém mais com os mesmos olhos,

29 e seja outro o seu sorriso

30 per soecula soeculorum.

O poema começa com o Eu lírico narrando um momento em que para diante da porta aberta de uma casa para admirar um ladrilho ali dentro (versos 1 e 2). O título do poema, mencionando a cidade de Ouro Preto e o elemento “ladrilho” nos permitem inferir o estilo da casa em questão. Trata-se de uma casa de estilo colonial, antiga e decorada com ladrilhos portugueses, remetendo, portanto, a arquitetura típica da cidade de Ouro Preto. Em seguida (versos 3 e 4), descreve a aparição de um leproso, saindo de dentro da casa, “como quem sai de um jazigo” (verso 4). A relação entre a casa antiga e jazigo é evidente e sugere um tempo passado, morto e enterrado, do qual a cidade de Ouro Preto não parece ter saído. O leproso reforça ainda mais esta ideia, de um ser semivivo, fantasmático, que saí de sua tumba. Ao mesmo tempo, o leproso é um elemento perturbador, causando uma ruptura entre a beleza do ladrilho e a sua aparição sinistra. Esta é a primeira oposição do poema, um ladrilho bonito e um homem com uma doença que deforma a pele.

Neste cenário, um tanto sublime e tenebroso, o leproso, sorrindo de modo sinistro, vai de encontra ao Eu lírico (versos 5 e 6). O fato do leproso sorrir também implica uma contradição, já que o homem apresenta uma doença grave, o que deveria acarretar tristeza. Mas esta contradição se resolve no advérbio “sinistramente” (verso 6). O sorriso, portanto, não é um sorriso descontraído, mas um sorriso que esconde sua verdadeira intenção. Na estrofe seguinte, o Eu lírico descreve, talvez estarrecido, os braços, de “líquen”, e as mãos “desfolhadas” do leproso (versos 7 e 8). O que enfatiza a metáfora inicial de tempo passado, mas também a figura do leproso, que, como dissemos, assemelha-se a um ser não humano. Aqui, no entanto, a analogia indica algo de vegetal na aparência do homem, ou ainda a putrefação ocasionada pela ação do tempo. Sem dúvida, o leproso representa muito bem um habitante deste mundo que se perdeu no tempo. Porém, o leproso esconde as mãos, sugerindo que Cecília Meireles pode realmente ter presenciado uma cena tal como é descrito no poema quando de sua visita a Ouro Preto (versos 9 e 10). Todavia, dentro da lógica do poema, este gesto indica também uma certa vergonha manifestada pelo doente, pela qual reconstituiria a sua condição humana. E aí novamente um elemento perturbador no desenvolvimento do poema. Novamente, a referência ao sorriso sinistro do leproso, que, segundo o Eu lírico, oscilava “chamas de um secreto inferno” (versos 11 e 12). Tal metáfora remete ao ser fantasmático da primeira estrofe, que sai das trevas infernais da antiga Ouro Preto. Portanto, há um quê de maldade do leproso que transparece no seu sorriso. Ora, o leproso que há pouco demonstrava humanidade quando escondia a mão, ainda assim, mantém o sorriso sinistro. O sorriso ao invés de expressar uma boa recepção a um recém-chegado, expressa um conteúdo oculto, malevolente.

Na terceira estrofe, uma constatação surpreendente e terrível, por parte do Eu lírico; diz ele: “Fora menos triste a lepra do que o fogo do sorriso” (versos 13 e 14). De certa forma, o Eu lírico não sente tanta compaixão pela situação infeliz do doente e se deixa perturbar mais pelo sorriso malévolo daquele homem. Apesar da maldade expressa no sorriso, a situação do homem acometido pela lepra é extremamente penosa. O homem, diante da doença, que o transformou em ser meio vegetal, meio fantasmático, só pode dar ao mundo aquilo que a lepra o permite. E a seguir, outra oposição. O Eu lírico passa a descrever a casa que, sem o leproso (“com o vestíbulo vazio”), é linda e alegre (versos 15, 16, 17 e 18), com azulejos que também reforçam a ideia de tempo parado, que não passou, reforçando o cenário já esboçado acima. Ora, o cenário é alegre e belo, mas o morador é feio, dissimulado e odioso.

Na quarta estrofe, o Eu lírico invoca os santos da Idade Média, clamando para que apareçam em Ouro Preto. Esta invocação é no mínimo curiosa, em se tratando da formação católica de Cecília Meireles. Ao que parece, a poeta se refere aos reis taumaturgos que teriam o poder de curar escrófulas, enfermidade que apresenta um sintoma de inchaço de cor preta na pele. Fenômeno histórico que se iniciou no século XII, na França, e depois se estendeu para a Inglaterra, a taumaturgia consistia no poder de cura através do toque das mãos do rei. Estes santos reis que curam os doentes com o toque são imaginados transpostos, no poema, para a paisagem montanhosa da cidade (verso 19 e 20). Mais uma referência às características físicas da cidade de Ouro Preto, a ladeiras. Nos versos 21 e 22, o Eu lírico não se cansa em descrever a beleza da casa; desta vez nos informa a cor da porta: azul. O azul pode ser uma alusão ao céu e a uma atmosfera sagrada emanada pelas igrejas da cidade. Neste ambiente sacro, os santos da Idade Média poderiam realizar milagres, assim com Jesus Cristo sarava os leprosos.

Em seguida, nos versos 23 e 24, o toque milagroso dos santos no leproso e a transformação desejada dos “braços fluídos”, fantasmagóricos, líquen e desfolhado, em “rosa e areia”, até se tornarem firmes e belos (verso 25), “com mãos lisas, dedos novos” (verso 26). A cura do físico é ao mesmo tempo uma purificação do espírito do leproso, que passaria a não odiar mais (versos 27 e 28) com seu sorriso maligno. Então o sorriso do leproso ao invés de transmitir um sentimento negativo passaria a ser um sorriso alegre, tal como a casa, por toda eternidade (versos 29 e 30).

Conclusão

O poema tem como mote o sorriso do leproso que acaba por centralizar o ambiente da cidade de Ouro Preto e a dinâmica do poema. O sorriso, que é irônico e transmite uma certa maldade oculta, parece contaminar toda a harmonia de um mundo que parou no tempo. Mas, contraditoriamente, o sorriso não é um elemento exógeno do lugar, mas sua consequência necessária e inerente. Diante disso, a solução desta antinomia só pode vir do mundo sobrenatural e mítico da Idade Média, portanto, do passado, algo que parece associar este poema moderno ao romantismo e sua dualidade entre o sublime e o grotesco. Tal estrutura simbólica viria de encontro com o estilo arquitetônico da cidade e das obras de Aleijadinho. O próprio leproso pode ser uma referência indireta ao Aleijadinho, sua reencarnação. De certa forma, ao restabelecer a saúde de Aleijadinho através de seu avatar poético, o poema visa o reconhecimento da obra-prima do mestre Aleijadinho.

Referências

BLOCH, Marc. “Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra”. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

MEIRELES, Cecilia. “Balada de Ouro Preto”, in: Retrato Natural, RJ, Livros de Portugal, 1949.

 


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