Por
G. Ã. P.
Introdução
O
ciclo do ouro no Brasil no século XVIII só pode ser entendido a partir da
decadência da produção açucareira na região nordeste, diante da concorrência
estabelecida por outros centros produtores, notadamente as Antilhas, dos
Holandeses, e, graças a isso, da decorrente dependência de Portugal em relação
à Inglaterra, estabelecida pelo Tratado de Methuen ou, como também foi
conhecido, Panos e Vinho.
Diante
deste quadro, a metrópole portuguesa viu-se empobrecida de uma hora para outra
e endividada e, por conseguinte, passou a estimular os colonos do Brasil à
procura de metais preciosos. As sucessivas incursões dos bandeirantes pelo
sertão do vasto território colonial acabaram por resultar na descoberta de
outro e prata na região de Minas Gerais. Com isso, Portugal passou a uma
situação contraria e pôde a Coroa novamente reequilibrar suas contas e saldar
as dívidas com a Inglaterra. Paralelamente, a mineração trouxe um surto de
prosperidade para a região das minas ao mesmo tempo em que dinamizava a
economia de outras regiões através de um desenvolvimento de um mercado interno
incipiente. Todavia, a extrema dependência pela Coroa portuguesa de metais
preciosos para manter seu fausto e luxo, intensificou a vigilância e o controle
sobre os colonos, gerando conflitos permanentes diante da cobrança de impostos
e das famigeradas derramas. O esgotamento das minas redundou em movimentos
insurrecionais, como o da Inconfidência Mineira, e também gerou o fim do pacto
colonial.
Neste
período, Minas Gerais viveu um intenso desenvolvimento econômico, baseado na
riqueza móvel e circulante, isto é, dinheiro, e também de mobilidade social,
ocasionando, no coração da colônia, um grande florescimento cultural na
arquitetura, escultura, literatura e música. É neste contexto que surge o
barroco brasileiro, tendo em seu expoente máximo a figura de Antônio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho, e uma intelectualidade sintonizada com as ideias do
Iluminismo europeu, apesar da proibição pela metrópole de bibliotecas na
colônia. Estas eram clandestinas e coleções de particulares, tornando-se
difusores culturais da sociedade mineira.
O
campo da literatura também foi bastante fecundo, com inúmeros poetas e a escola
da Arcádia Mineira. Alguns poetas se destacam, como Basílio da Gama, e seu
épico “O Uruguai”; frei Santa Rita Durão, com “Caramuru”; Cláudio Manuel da
Costa, “Vila Rica”; e Tomás Antônio Gonzaga, com “Marília de Dirceu”. Segundo o
professor Augusto Massi, em depoimento dado em sala de aula, embora a
literatura árcade soasse um tanto artificial para o contexto colonial das
minas, pelas suas referências clássicas bucólica e pastoral da antiguidade, na
prática era uma forma de engajamento político daqueles literatos, que se
posicionavam contra a dominação exercida pela metrópole. De fato, os poetas
Tomas Antonio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa participaram, juntamente com
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, da Inconfidência Mineira.
Este
engajamento também influenciaram outras escolas literárias no Brasil. Conforme
Massi, em aula, muito embora o arcadismo seja compreendido na academia como
literatura luso-colonial, os românticos, como Castro Alves, leram os árcades
numa chave nacionalista, às vezes, para justificar pautas políticas como a
abolição da escravatura. Ainda com Massi, na mesma linha, os Modernistas também
se apropriaram do contexto histórico das cidades mineiras, transformando-o numa
referência obrigatória quase ritualística da literatura brasileira.
Em o
“Romanceiro da Inconfidência”, Cecília Meireles tratou do ciclo do ouro nos
termos históricos descritos acima, ressaltando o movimento insurgente liderado
por Tiradentes. Para o trabalho, no entanto, a sugestão para a análise será o
poema “Balada de Ouro Preto”.
Aspectos
gerais do poema
A
estrutura formal do poema é composta de redondilhas de sete silabas poéticas e
cinco sextilhas. Ao contrário de um poema histórico de viés nacionalista, a
temática do poema “Balada de Ouro Preto” é bastante banal ou, melhor dizendo,
refere-se a um acontecimento relativo ao cotidiano de Ouro Preto em uma
determinada situação que pode ter ocorrido durante uma visita de Cecília
Meireles à cidade. Assim sendo, o poema narra um encontro, diante de uma casa
antiga de Ouro Preto, do Eu lírico com um homem acometido pela lepra. O leproso
se dirige sorrindo para a poeta; então o Eu lírico realiza uma digressão a
respeito do sorriso daquele homem que subverte completamente a superfície da
realidade aparente. Aliás, em cada estrofe, o poema apresenta um jogo de
oposições, entre claro-escuro, que parece repercutir a arquitetura e a
escultura barroca de Aleijadinho. A referência entre o leproso e o Aleijadinho
também é óbvia. O poema fecha com um desejo catártico do Eu lírico, possível
apenas na fantasia imagética, para que santos da Idade Média curem o leproso,
restaurando assim a harmonia daquele mundo.
Análise do poema
Para
melhor entendimento, os versos do poema serão enumerados.
BALADA DE OURO PRETO
1
Parei a uma porta aberta
2
para mirar um ladrilho.
3
Veio de dentro o leproso
4
como quem sai de um jazigo.
5
Caminhava ao meu encontro,
6
sinistramente sorrindo.
7
Mas vi-lhe os braços de líquen,
8 e
as duas mãos desfolhadas,
9
que cauteloso escondia
10
nos fundos bolsos das calças.
11
Chamas de um secreto inferno
12
em seu sorriso oscilavam.
13
Fora menos triste a lepra
14
do que o fogo do sorriso.
15 E
era linda aquela casa
16
com o vestíbulo vazio;
17 e
era alegre aquela porta
18
de claro azulejo antigo.
19 Ó
santos da Idade Média,
20
descei por esta ladeira,
21
parai a esta porta suave,
22
que de azul toda se enfeita,
23
tocai estes braços fluídos
24
que vão sendo rosa e areia,
25
tornai-os firmes e pulcros,
26
com mãos lisas, dedos novos,
27
para que este homem não fite
28
ninguém mais com os mesmos olhos,
29 e
seja outro o seu sorriso
30
per soecula soeculorum.
O
poema começa com o Eu lírico narrando um momento em que para diante da porta
aberta de uma casa para admirar um ladrilho ali dentro (versos 1 e 2). O título
do poema, mencionando a cidade de Ouro Preto e o elemento “ladrilho” nos
permitem inferir o estilo da casa em questão. Trata-se de uma casa de estilo
colonial, antiga e decorada com ladrilhos portugueses, remetendo, portanto, a
arquitetura típica da cidade de Ouro Preto. Em seguida (versos 3 e 4), descreve
a aparição de um leproso, saindo de dentro da casa, “como quem sai de um
jazigo” (verso 4). A relação entre a casa antiga e jazigo é evidente e sugere
um tempo passado, morto e enterrado, do qual a cidade de Ouro Preto não parece
ter saído. O leproso reforça ainda mais esta ideia, de um ser semivivo,
fantasmático, que saí de sua tumba. Ao mesmo tempo, o leproso é um elemento
perturbador, causando uma ruptura entre a beleza do ladrilho e a sua aparição
sinistra. Esta é a primeira oposição do poema, um ladrilho bonito e um homem
com uma doença que deforma a pele.
Neste
cenário, um tanto sublime e tenebroso, o leproso, sorrindo de modo sinistro,
vai de encontra ao Eu lírico (versos 5 e 6). O fato do leproso sorrir também
implica uma contradição, já que o homem apresenta uma doença grave, o que
deveria acarretar tristeza. Mas esta contradição se resolve no advérbio
“sinistramente” (verso 6). O sorriso, portanto, não é um sorriso descontraído,
mas um sorriso que esconde sua verdadeira intenção. Na estrofe seguinte, o Eu
lírico descreve, talvez estarrecido, os braços, de “líquen”, e as mãos
“desfolhadas” do leproso (versos 7 e 8). O que enfatiza a metáfora inicial de
tempo passado, mas também a figura do leproso, que, como dissemos, assemelha-se
a um ser não humano. Aqui, no entanto, a analogia indica algo de vegetal na
aparência do homem, ou ainda a putrefação ocasionada pela ação do tempo. Sem
dúvida, o leproso representa muito bem um habitante deste mundo que se perdeu
no tempo. Porém, o leproso esconde as mãos, sugerindo que Cecília Meireles pode
realmente ter presenciado uma cena tal como é descrito no poema quando de sua
visita a Ouro Preto (versos 9 e 10). Todavia, dentro da lógica do poema, este
gesto indica também uma certa vergonha manifestada pelo doente, pela qual
reconstituiria a sua condição humana. E aí novamente um elemento perturbador no
desenvolvimento do poema. Novamente, a referência ao sorriso sinistro do
leproso, que, segundo o Eu lírico, oscilava “chamas de um secreto inferno”
(versos 11 e 12). Tal metáfora remete ao ser fantasmático da primeira estrofe,
que sai das trevas infernais da antiga Ouro Preto. Portanto, há um quê de
maldade do leproso que transparece no seu sorriso. Ora, o leproso que há pouco
demonstrava humanidade quando escondia a mão, ainda assim, mantém o sorriso
sinistro. O sorriso ao invés de expressar uma boa recepção a um recém-chegado,
expressa um conteúdo oculto, malevolente.
Na
terceira estrofe, uma constatação surpreendente e terrível, por parte do Eu
lírico; diz ele: “Fora menos triste a lepra do que o fogo do sorriso” (versos
13 e 14). De certa forma, o Eu lírico não sente tanta compaixão pela situação
infeliz do doente e se deixa perturbar mais pelo sorriso malévolo daquele
homem. Apesar da maldade expressa no sorriso, a situação do homem acometido
pela lepra é extremamente penosa. O homem, diante da doença, que o transformou
em ser meio vegetal, meio fantasmático, só pode dar ao mundo aquilo que a lepra
o permite. E a seguir, outra oposição. O Eu lírico passa a descrever a casa
que, sem o leproso (“com o vestíbulo vazio”), é linda e alegre (versos 15, 16,
17 e 18), com azulejos que também reforçam a ideia de tempo parado, que não
passou, reforçando o cenário já esboçado acima. Ora, o cenário é alegre e belo,
mas o morador é feio, dissimulado e odioso.
Na
quarta estrofe, o Eu lírico invoca os santos da Idade Média, clamando para que
apareçam em Ouro Preto. Esta invocação é no mínimo curiosa, em se tratando da
formação católica de Cecília Meireles. Ao que parece, a poeta se refere aos
reis taumaturgos que teriam o poder de curar escrófulas, enfermidade que
apresenta um sintoma de inchaço de cor preta na pele. Fenômeno histórico que se
iniciou no século XII, na França, e depois se estendeu para a Inglaterra, a
taumaturgia consistia no poder de cura através do toque das mãos do rei. Estes
santos reis que curam os doentes com o toque são imaginados transpostos, no
poema, para a paisagem montanhosa da cidade (verso 19 e 20). Mais uma
referência às características físicas da cidade de Ouro Preto, a ladeiras. Nos
versos 21 e 22, o Eu lírico não se cansa em descrever a beleza da casa; desta
vez nos informa a cor da porta: azul. O azul pode ser uma alusão ao céu e a uma
atmosfera sagrada emanada pelas igrejas da cidade. Neste ambiente sacro, os
santos da Idade Média poderiam realizar milagres, assim com Jesus Cristo sarava
os leprosos.
Em
seguida, nos versos 23 e 24, o toque milagroso dos santos no leproso e a
transformação desejada dos “braços fluídos”, fantasmagóricos, líquen e
desfolhado, em “rosa e areia”, até se tornarem firmes e belos (verso 25), “com
mãos lisas, dedos novos” (verso 26). A cura do físico é ao mesmo tempo uma
purificação do espírito do leproso, que passaria a não odiar mais (versos 27 e
28) com seu sorriso maligno. Então o sorriso do leproso ao invés de transmitir
um sentimento negativo passaria a ser um sorriso alegre, tal como a casa, por
toda eternidade (versos 29 e 30).
Conclusão
O
poema tem como mote o sorriso do leproso que acaba por centralizar o ambiente
da cidade de Ouro Preto e a dinâmica do poema. O sorriso, que é irônico e
transmite uma certa maldade oculta, parece contaminar toda a harmonia de um
mundo que parou no tempo. Mas, contraditoriamente, o sorriso não é um elemento
exógeno do lugar, mas sua consequência necessária e inerente. Diante disso, a
solução desta antinomia só pode vir do mundo sobrenatural e mítico da Idade
Média, portanto, do passado, algo que parece associar este poema moderno ao
romantismo e sua dualidade entre o sublime e o grotesco. Tal estrutura simbólica
viria de encontro com o estilo arquitetônico da cidade e das obras de
Aleijadinho. O próprio leproso pode ser uma referência indireta ao Aleijadinho,
sua reencarnação. De certa forma, ao restabelecer a saúde de Aleijadinho
através de seu avatar poético, o poema visa o reconhecimento da obra-prima do
mestre Aleijadinho.
Referências
BLOCH,
Marc. “Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e
Inglaterra”. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
MEIRELES,
Cecilia. “Balada de Ouro Preto”, in: Retrato Natural, RJ, Livros de Portugal,
1949.
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