Introdução
A tecnologia em Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez,
não é apenas pano de fundo para a saga dos Buendía em Macondo — ela é parte
fundamental da crítica ao progresso desgovernado, ao esquecimento da tradição e
à alienação moderna. Ao comparar a abordagem do autor com as visões de outros
gigantes da literatura latino-americana, como Jorge Luis Borges e Julio
Cortázar, percebemos como cada um oferece uma leitura singular, por vezes
poética, por vezes cética, do avanço tecnológico.
Este artigo analisa como a tecnologia é representada no realismo mágico
de García Márquez e como isso se relaciona (ou contrasta) com o universo
filosófico de Borges e o existencialismo lúdico de Cortázar.
1 - Tecnologia em Cem Anos de Solidão: Uma
Força Ambígua
Macondo: Isolamento e Progresso — A Trajetória de
um Mundo Encantado à Margem da História
No universo fabulado de Gabriel García Márquez, Macondo surge como um
microcosmo do mundo latino-americano — um espaço ao mesmo tempo mítico e
político, poético e profundamente enraizado na história real de opressão,
violência e esquecimento. Logo no início de Cem Anos de Solidão, a
aldeia é descrita como um lugar isolado do resto do mundo, onde o tempo parece
suspenso e a realidade é maleável. É nesse cenário que a tecnologia chega, não
como um instrumento mecânico, mas como uma forma de magia.
A visita dos ciganos liderados por Melquíades, personagem que mistura
elementos de alquimista, cientista e xamã, marca a introdução das primeiras
inovações tecnológicas. O ímã, o telescópio e, principalmente, o gelo são
recebidos com assombro e reverência, como se fossem artefatos de outro mundo.
José Arcadio Buendía, o patriarca da família, reage a essas invenções com um entusiasmo
quase infantil, movido pelo desejo de compreender e transformar o mundo ao seu
redor. O gelo é apresentado não com um olhar científico, mas como uma
experiência sensorial, quase sagrada — “a maior invenção do nosso tempo”. A
reação dos personagens frente a esses objetos não é racional, mas emocional e
simbólica.
Essa primeira fase de Macondo está profundamente ligada à ideia de um
mundo em construção, onde a linguagem e a tecnologia estão entrelaçadas. A
célebre frase “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e
para mencioná-las era preciso apontar com o dedo” ilustra não apenas a criação
do espaço ficcional, mas também a maneira como o conhecimento se forma:
nomeando, categorizando, reconhecendo. A linguagem, nesse momento, funciona
como a tecnologia primordial — um meio de domar o caos e dar forma à realidade.
A Chegada da Modernidade: Do Maravilhamento ao
Desencanto
Conforme a narrativa avança, Macondo começa a se conectar com o mundo
exterior. O progresso bate à porta da aldeia por meio do trem, da imprensa,
das novas formas de comunicação, como o telégrafo e o telefone,
e, mais adiante, da instalação da companhia bananeira — uma alusão
direta à presença das corporações estrangeiras nos países da América Latina.
Esse processo marca uma transição drástica no papel da tecnologia na
obra. Aquilo que antes surgia como elemento mágico e promissor passa a se
tornar símbolo de alienação, controle e violência. O trem, que inicialmente
encanta os moradores de Macondo com sua capacidade de conectar mundos
distantes, transforma-se em um canal para a chegada de interesses externos que
irão desfigurar a cultura local. A imprensa, que poderia servir como
instrumento de consciência e resistência, acaba sendo silenciada ou manipulada.
A instalação da empresa bananeira representa o ápice dessa
transformação. Com ela vêm a industrialização, a exploração da mão de obra, a
imposição de uma lógica burocrática e o apagamento da memória coletiva. A
modernidade, que poderia ser libertadora, revela-se como uma nova forma de
opressão. O massacre dos trabalhadores grevistas é o exemplo mais brutal dessa
virada: centenas de pessoas são assassinadas, seus corpos levados no trem, e o
evento é posteriormente negado, esquecido, como se jamais tivesse ocorrido. Márquez
usa esse apagamento narrativo para criticar os mecanismos de manipulação da
história por parte das elites políticas e econômicas.
Tecnologia e Memória: Um Conflito Latente
Um dos aspectos mais poderosos dessa narrativa é a forma como Márquez
associa o progresso tecnológico à erosão da memória e da identidade. Ao
contrário do que ocorre em discursos celebratórios da modernidade, onde o
avanço técnico é sinônimo de desenvolvimento, em Cem Anos de Solidão o
progresso vem acompanhado da perda: da oralidade, das tradições, dos afetos e,
sobretudo, da verdade histórica.
A introdução da tecnologia em Macondo não melhora as condições de vida
da população; pelo contrário, ela contribui para sua ruína. O povoado, que já
foi vibrante e cheio de potencial, torna-se gradualmente um lugar
fantasmagórico, assolado pela repetição cíclica dos erros do passado. Ao final
do romance, quando o último Buendía decifra os pergaminhos de Melquíades,
entende-se que o destino de Macondo já estava escrito — não como um fatalismo sobrenatural,
mas como uma crítica à incapacidade histórica da América Latina de romper com
as estruturas de opressão impostas tanto de fora quanto de dentro.
Macondo como Alegoria do Continente
Assim, Macondo não é apenas uma cidade fictícia. Ela é uma alegoria
do continente latino-americano, onde o progresso chega de forma excludente,
muitas vezes devastadora. A tecnologia, longe de ser neutra, é apresentada como
ferramenta de poder — capaz tanto de maravilhar quanto de destruir. A obra de
García Márquez convida o leitor a refletir sobre o custo do desenvolvimento
quando ele não leva em conta as realidades locais, as memórias ancestrais e a
dignidade dos povos.
2 - Comparando García Márquez com Borges
Borges e a Máquina do Saber: O Conhecimento como
Labirinto Infinito
Jorge Luis Borges via a tecnologia não como um artefato mecânico, mas
como uma extensão da mente humana — um reflexo do próprio intelecto e de suas
limitações. Em sua obra, a tecnologia é frequentemente representada de forma
simbólica, como parte de uma teia de significados filosóficos e metafísicos. Em
contos como A Biblioteca de Babel, O Aleph, Tlön, Uqbar, Orbis
Tertius e O Livro de Areia, Borges antecipa temas que hoje
associamos a debates sobre inteligência artificial, big data e redes
hipertextuais, ainda que ele nunca tenha abordado diretamente esses termos.
Na célebre Biblioteca de Babel, por exemplo, ele descreve um
universo composto por uma biblioteca infinita, que contém todos os livros
possíveis. Essa metáfora poderosa antecipa não apenas o conceito de internet
como repositório de informação total, mas também levanta questões éticas e
filosóficas sobre o excesso de dados, a verdade e o valor da busca em si. A
biblioteca representa a tecnologia como promessa e maldição: uma fonte
interminável de conhecimento e, ao mesmo tempo, uma prisão existencial, pois a
verdade pode estar em qualquer lugar — ou em lugar nenhum.
Em O Aleph, Borges apresenta um ponto do espaço que contém todos
os outros — uma totalidade incompreensível que remete à ideia de onisciência,
talvez até à própria internet moderna. O Aleph é uma tecnologia imaginária que
representa o desejo humano de ver e saber tudo, mas também expõe a incapacidade
de processar ou compreender essa totalidade. Para Borges, o saber absoluto é
impossível — não por limitação da máquina, mas pela finitude do homem.
A tecnologia, portanto, é para Borges uma extensão dos labirintos que
habitam o pensamento humano. Seus contos frequentemente envolvem enciclopédias
fictícias, artefatos que contêm universos paralelos, ou livros infinitos que
desafiam a lógica. Esses dispositivos não têm função prática, como no realismo
mágico de García Márquez, mas servem como catalisadores de dilemas ontológicos.
Em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, por exemplo, uma enciclopédia criada por
uma sociedade secreta acaba moldando a realidade — antecipando, de forma
brilhante, os debates contemporâneos sobre realidade virtual, narrativas
criadas por algoritmos e fake news.
Outro aspecto fundamental da relação de Borges com a tecnologia é sua
fascinação por espelhos, labirintos e bibliotecas — símbolos recorrentes que
funcionam como mecanismos tecnológicos do pensamento. Essas imagens remetem a
estruturas complexas que organizam e ao mesmo tempo confundem o conhecimento. A
própria linguagem, para Borges, é uma tecnologia: uma ferramenta que molda o mundo,
mas que também o distorce. Essa ambiguidade está no cerne de sua obra.
Diferenças Fundamentais com Gabriel García Márquez
Ao comparar Borges com Gabriel García Márquez, a diferença de abordagem
salta aos olhos. Márquez insere a tecnologia no mundo concreto, como parte de
transformações sociais e históricas que afetam diretamente a vida das pessoas.
Em Cem Anos de Solidão, os trens, o gelo, o telégrafo e a empresa
bananeira simbolizam não só o avanço técnico, mas também a imposição de um
modelo de modernidade que ameaça a cultura local e conduz à violência e ao
esquecimento.
Enquanto Márquez enxerga a tecnologia como um vetor de mudanças
tangíveis — políticas, econômicas e culturais —, Borges a transforma em um
conceito abstrato, muitas vezes alegórico. Ele não está interessado em como a
tecnologia altera a vida cotidiana, mas em como ela desafia os limites do
saber, do tempo e da identidade.
Em resumo, García Márquez critica a tecnologia como instrumento de
dominação histórica, enquanto Borges explora suas implicações
metafísicas como símbolo da busca humana pelo infinito. Um trata do mundo
exterior; o outro, do mundo interior. Ambos, no entanto, reconhecem que a
tecnologia carrega em si uma força ambígua: capaz de fascinar e destruir, de
iluminar e confundir.
Comparação em resumo:
Autor
|
Visão sobre Tecnologia
|
Enfoque Principal
|
Gabriel García Márquez
|
Ambígua, crítica ao progresso desenfreado
|
Impacto social e histórico
|
Jorge Luis Borges
|
Filosófica, abstrata, labiríntica
|
Conhecimento e linguagem
|
3 - Comparando García Márquez com Cortázar
Cortázar e a Modernidade Disruptiva: A Tecnologia
como Fissura na Realidade
Julio Cortázar, um dos grandes nomes do chamado “boom latino-americano”,
apresenta uma relação com a tecnologia que é fundamentalmente distinta daquela
de Gabriel García Márquez e Jorge Luis Borges. Em sua obra, a tecnologia não
aparece como símbolo de progresso ou de um labirinto do conhecimento, mas como
uma presença sutil e desestabilizadora, que age nos interstícios do cotidiano.
Ela irrompe sem aviso, abrindo fendas no real, e, ao fazê-lo, revela o quanto a
realidade pode ser frágil e ilusória.
Nos contos de Cortázar, como Casa Tomada, As Babas do Diabo
e O Perseguidor, a tecnologia não é apresentada com aparato técnico ou
descrição científica. Ao contrário, é quase sempre algo lateral, periférico —
mas profundamente impactante. Em As Babas do Diabo, por exemplo, um
fotógrafo capta uma imagem que, mais tarde, o faz duvidar de sua percepção. A
fotografia, nesse caso, torna-se uma tecnologia que registra não só o visível,
mas também o invisível, o inconsciente, o que escapa à experiência direta. É
uma forma de mediar a realidade que acaba por distorcê-la, criando angústia e
alienação.
Já em Casa Tomada, a presença que invade a casa dos irmãos pode
ser lida como uma metáfora para a entrada do desconhecido na zona de conforto
familiar. Embora não haja uma tecnologia explícita em cena, a ausência de uma
explicação racional para os eventos evoca uma sensibilidade muito próxima
àquela provocada pelas tecnologias modernas: a perda do controle, a sensação de
ser observado, o medo do invisível.
Em Cartas de Mamãe, um conto mais intimista, Cortázar utiliza um
meio de comunicação tradicional — a carta — para explorar o efeito do tempo e
da distância sobre os vínculos afetivos. A tecnologia aqui é rudimentar, mas o
efeito que ela provoca é extremamente sofisticado: ao receber notícias
desatualizadas, o personagem se vê aprisionado em uma linha temporal em
descompasso com a realidade, provocando tensão emocional e psicológica. Essa
defasagem de tempo mostra como, mesmo tecnologias simples, podem alterar a
forma como percebemos o mundo e nos relacionamos com os outros.
A Tecnologia como Agente de Desconforto Existencial
Para Cortázar, a tecnologia é menos uma ferramenta do que uma
experiência. É aquilo que interrompe a fluidez do cotidiano, que revela o
absurdo e a artificialidade do que consideramos “normal”. Seus personagens são
constantemente confrontados com algo que os desloca — e muitas vezes esse algo
é um mediador tecnológico: uma imagem, um som, uma carta, uma gravação.
Trata-se de uma abordagem subjetiva, que não denuncia sistemas opressores, como
em García Márquez, nem propõe labirintos filosóficos, como em Borges, mas que
coloca o indivíduo em confronto direto com sua fragilidade frente ao
desconhecido.
Relação com Gabriel García Márquez
Embora ambos os autores compartilhem uma sensibilidade literária marcada
pela metáfora, pela quebra da lógica realista e pelo uso do fantástico como
forma de acessar verdades mais profundas, suas abordagens divergem
significativamente quanto ao foco e à função da tecnologia. Gabriel García
Márquez emprega a tecnologia em Cem Anos de Solidão como um símbolo da
história — ela é um marcador da chegada do mundo moderno a Macondo, com todas
as suas promessas e tragédias. É algo coletivo, político, muitas vezes
violento.
Cortázar, por sua vez, apresenta uma tecnologia que opera na esfera
privada. Seus efeitos não são percebidos em massas ou na história de um povo,
mas na psique individual, nas relações interpessoais, no tempo íntimo de cada
personagem. Em Rayuela, por exemplo, ele brinca com a própria estrutura
do romance como tecnologia narrativa, permitindo que o leitor escolha
diferentes caminhos para a leitura — uma proposta que antecipa, inclusive, as
narrativas não-lineares da era digital.
Em resumo, enquanto García Márquez explora a tecnologia como
força histórica que altera sociedades inteiras, Cortázar investiga seus
efeitos subjetivos, revelando como até as inovações mais simples podem
interferir na percepção da realidade e provocar rupturas existenciais.
Exemplo de contraste:
- García
Márquez: O trem que chega a Macondo representa a
entrada do capitalismo e da morte da inocência.
- Cortázar: Uma
fotografia pode revelar dimensões ocultas da realidade e desencadear
crises existenciais.
4 - Tecnologia, Memória e Realismo Mágico
A tecnologia, em Cem Anos de Solidão, é paradoxal. Ela fascina e
destrói, conecta e isola. Em Macondo, os objetos tecnológicos parecem mágicos
quando chegam, mas se tornam ferramentas de esquecimento coletivo quando
dominam.
Essa ambiguidade é central no realismo mágico: o maravilhoso e o trágico
coexistem, e a tecnologia serve como ponte entre esses dois mundos.
5 - Perguntas Frequentes sobre o Tema
A tecnologia em Cem Anos de Solidão é uma
crítica ao progresso?
Sim. Embora inicialmente vista com fascínio, a tecnologia representa, ao
longo da obra, um agente de alienação, destruição da cultura local e perda da
memória coletiva.
Como Borges e Cortázar diferem de García Márquez na
visão da tecnologia?
Borges vê a tecnologia como uma abstração intelectual, enquanto Cortázar
a usa para explorar experiências humanas subjetivas. Já García Márquez mostra
seu impacto prático e simbólico sobre uma sociedade latino-americana.
Por que a tecnologia parece mágica em Cem Anos
de Solidão?
Porque a obra usa os elementos do realismo mágico para retratar como o
novo e o desconhecido eram recebidos em sociedades isoladas, como Macondo,
tornando o cotidiano extraordinário.
Conclusão: A Tecnologia na Literatura
Latino-Americana
A visão de Gabriel García Márquez sobre a tecnologia em Cem Anos de
Solidão revela uma profunda crítica à modernização desumana, ao mesmo tempo
em que mantém o encantamento das descobertas. Ao comparar essa abordagem com a
metafísica labiríntica de Borges e o existencialismo poético de Cortázar,
percebemos a riqueza da literatura latino-americana na forma como interpreta o
avanço tecnológico: nem utopia, nem distopia, mas um reflexo das contradições
humanas.
Ler essas obras não é apenas uma viagem
literária — é um convite para refletir sobre o que estamos construindo com
nossa própria tecnologia.