O século XVII, em Portugal, foi uma época de intensas transformações políticas e sociais. Nesse cenário de transição, onde a nobreza e a burguesia redefiniam seus papéis, surge uma obra-prima de crítica social e mordacidade: o Auto do Fidalgo Aprendiz, de D. Francisco Manuel de Melo. Mais do que uma simples peça teatral, é um espelho afiado que reflete as vaidades, os enganos e os contrastes de uma sociedade obcecada pelas aparências e pela ascensão social.
Se você busca compreender o auge do teatro barroco português, a análise das personagens e a crítica atemporal de uma das farsas mais célebres da nossa literatura, este artigo é o seu guia definitivo.
Introdução: Francisco Manuel de Melo e a Farsa que Desmascara
O Auto do Fidalgo Aprendiz (ou simplesmente O Fidalgo Aprendiz, como o autor a intitulou originalmente) é uma das peças teatrais mais significativas de D. Francisco Manuel de Melo (1608–1666), uma das figuras mais proeminentes e multifacetadas do Barroco português e ibérico. Militar, político, historiador e poeta, Melo produziu suas obras mais importantes durante um período de prisão e exílio, transformando a adversidade em inspiração.
A peça, publicada postumamente em 1665 em suas Obras Métricas, transcende o mero entretenimento. Trata-se de uma farsa de folgar em três jornadas, que utiliza a comédia e o ridículo para satirizar a ambição desmedida de ascensão social e a imitação cega dos costumes da corte lisboeta por parte de um fidalgo provinciano. A palavra-chave Auto do Fidalgo Aprendiz não designa apenas uma obra, mas um marco da sátira barroca.
O Coração da Sátira: Estrutura e Temas Principais
A genialidade de Melo reside em estruturar a farsa para expor a artificialidade da vida cortesã e a cegueira de quem busca a nobreza sem mérito, apenas por ostentação.
O Personagem Central: D. Gil Cogominho (O Aprendiz)
D. Gil Cogominho é o motor da comédia e o principal objeto da sátira. Ele é um fidalgo rústico, provinciano e relativamente abastado que, cansado da vida campestre, decide mudar-se para Lisboa para aprender a ser um "cortesão discreto", um modelo idealizado de nobreza da época.
A Ambição Ridícula: Gil Cogominho está determinado a adquirir todas as "ciências" e "modos" da corte: dança, esgrima, poesia e o cavalheirismo. Essa busca frenética, no entanto, é motivada pela vaidade e pela ignorância, transformando-o num alvo fácil.
A "Aprendizagem": Em vez de sabedoria, ele adquire apenas uma coleção de vícios e gastos inúteis. Ele contrata uma série de mestres e mestras (esgrima, dança, poesia), cada um mais charlatão que o outro, que o exploram financeiramente e o ensinam a arte da superficialidade.
O Engano e a Ilusão: A sua crença ingénua de que a aparência e a contratação de mestres bastam para conferir nobreza é o cerne do seu ridículo. Ele não percebe que a verdadeira fidalguia reside no mérito e na virtude, e não nas "botas e no cavalo".
Os Exploradores e a Crítica Social
A obra não poupa apenas D. Gil; ela critica duramente a corte e a sociedade que a rodeia, povoada por parasitas dispostos a explorar a vaidade alheia.
Afonso Mendes: O Crítico Lúcido
Afonso Mendes, um escudeiro mais velho e experiente, serve como o coro moral da peça. Ele representa a voz da razão e da tradição portuguesa, lamentando a decadência dos costumes e a corrupção dos valores. Suas falas em versos contundentes denunciam a superficialidade lisboeta e a farsa em que se transformou a vida nobre.
Função Dramática de Afonso Mendes:
Contraponto à ingenuidade e ambição de Gil.
Porta-voz da crítica de Francisco Manuel de Melo aos costumes da Restauração.
Símbolo da honra antiga, em contraste com a nova ostentação.
Beltrão: O Ardil e a Ganância
Beltrão, o lacaio ou pretenso amigo de Gil, é o principal manipulador. Ele facilita a exploração de D. Gil e o encoraja na sua cegueira social. Beltrão simboliza a figura do parasita social, comum na literatura barroca, que prospera com base na mentira e na fraqueza dos vaidosos.
Temas Centrais (H3)
A Crítica à Fidalguia Vazia: O tema principal é a condenação da nobreza de mérito (que se perdeu) em favor da nobreza de berço e, pior ainda, da nobreza de aparência. O Auto expõe que o dinheiro (e não o valor) se tornou o grande mestre do Portugal Seiscentista.
O Contraste Campo versus Cidade: A mudança de D. Gil da província para Lisboa ilustra o confronto entre a rusticidade honesta (embora ignorante) e a sofisticação corrupta e falsa da capital.
A Sátira ao Desejo de Cortegianismo: A peça ridiculariza a obsessão em seguir o modelo de "cortesão perfeito" (o corteggiano), popularizado por obras como O Cortesão de Castiglione, mostrando como a imitação servil leva apenas ao ridículo.
O Legado do Auto do Fidalgo Aprendiz na Literatura Portuguesa
A peça de Francisco Manuel de Melo é um tesouro literário que influenciou gerações de dramaturgos. A sua estrutura em redondilhas (versos populares), o ritmo acelerado e o uso de tipos sociais facilmente identificáveis conferiram-lhe um sucesso duradouro.
A sua relevância reside em:
Pioneirismo na Sátira Social Barroca: É um dos exemplos mais claros do teatro seiscentista que utiliza a farsa para a crítica moral e de costumes, servindo o lema latino "Ridendo Castigat Mores" (Rindo se corrigem os costumes).
Perenidade do Tema: A crítica à superficialidade, à busca por status e à imitação vazia de estilos de vida permanece extremamente atual, garantindo que o Auto do Fidalgo Aprendiz continue a ser lido e encenado séculos depois.
Perguntas Comuns sobre o Auto do Fidalgo Aprendiz
Qual é a principal crítica social do Auto do Fidalgo Aprendiz?
A principal crítica reside na ostentação e na ambição de ascensão social cega. A peça satiriza o provinciano D. Gil Cogominho, que tenta, de forma ridícula, "comprar" a fidalguia e os modos da corte, sendo ludibriado pelos mestres e parasitas lisboetas. A crítica estende-se à sociedade que valoriza mais a aparência do que o mérito ou a virtude.
Quem foi D. Francisco Manuel de Melo?
D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) foi um dos maiores escritores, diplomatas e militares portugueses do século XVII. Figura notável do Barroco ibérico, ele se destacou em diversos géneros: história (Epanáforas), epistolografia (Cartas Familiares), moral (Carta de Guia de Casados) e teatro (Auto do Fidalgo Aprendiz). Sua vida, marcada por glórias e longos períodos de prisão, reflete a turbulência de sua época.
Qual é o género literário do Auto do Fidalgo Aprendiz?
O autor designou a obra como uma Farsa, um género teatral curto e cómico, com forte pendor satírico e popular, que deriva da tradição medieval e humanista (Gil Vicente). Embora muitas edições modernas o designem como "Auto" (em referência ao teatro religioso ou moralizante), a sua natureza é essencialmente cómica e de crítica de costumes.
Conclusão: Um Espelho Barroco para a Sociedade Moderna
O Auto do Fidalgo Aprendiz de Francisco Manuel de Melo é uma obra que resistiu ao teste do tempo por sua capacidade de expor a fragilidade humana e a vaidade social. A tragédia cómica de D. Gil Cogominho é, em última análise, um aviso atemporal: a nobreza não se compra com aulas de dança ou espadas caras, mas sim com a substância do caráter. É uma leitura essencial para compreender a transição social e a riqueza da sátira no Barroco português.
🎭 Descrição da Ilustração: A Farsa da Fidalguia no Auto do Fidalgo Aprendiz
Embora a estética desta ilustração remeta a gravuras medievais e a moralidades, ela pode ser interpretada como uma representação visual e alegórica da sátira social presente no Auto do Fidalgo Aprendiz, de Francisco Manuel de Melo, com foco na inversão de valores e na ridícula ambição de D. Gil Cogominho.
A imagem encapsula o contraste entre a nobreza idealizada e a fidalguia corrompida pela vaidade e pela superficialidade.
1. A Torre em Ruínas: A Fidalguia Corrompida
O Castelo Contorcido (Centro): Esta estrutura arruinada e retorcida simboliza a decadência da verdadeira fidalguia e dos valores nobres em Portugal no século XVII. D. Gil Cogominho não está a aprender a fidalguia, mas sim a investir na sua ruína moral e financeira.
As Lâminas Inúteis: As numerosas espadas cravadas no castelo e no chão representam as artes da guerra e do cavalheirismo que D. Gil se esforça para aprender (como a esgrima), mas que se tornam símbolos de vaidade vã, em vez de honra. Elas estão desorganizadas e perigosas, sugerindo que a "ciência" da corte que ele adquire é destrutiva e inútil.
"Inversão de Valores": O título implícito da cena (sem o chamar de Inferno) reflete a crítica central de Melo: a riqueza e a ostentação suplantaram a virtude e o mérito como requisitos para ser nobre.
2. O Aprendiz Cego e Guiado (D. Gil Cogominho)
A Figura Vendada (Direita): O cavaleiro de armadura que caminha à beira do abismo com os olhos vendados (ou vendando-se) representa D. Gil Cogominho. Ele está cegado pela sua ambição desmedida de ser "cortesão discreto" e pelo desejo de imitar os costumes da corte.
O Abismo Moral: O rio escuro e agitado que ele se aproxima simboliza o ridículo e o prejuízo financeiro e moral para o qual D. Gil está sendo conduzido pela sua ignorância e pelos seus exploradores. Ele está a cair no fosso da farsa social.
3. A Exploração e a Falha da Cultura (Os Mestres)
O Grupo da Súplica (Esquerda): As figuras na esquerda, incluindo a que toca um alaúde, podem ser interpretadas como a comitiva de exploradores e mestres charlatães que cercam D. Gil. O alaúde, símbolo da poesia e das artes, é tocado em meio a ruínas, mostrando que a cultura (que D. Gil tenta adquirir com o Mestre de Poesia) é apenas uma fachada formal, destituída de sentido ou beleza genuína. A "dama" ou "anjo" (ideais de amor cortês) está ao lado, também em desespero, simbolizando a corrupção dos ideais mais elevados.
Afonso Mendes (A Consciência): Uma das figuras mais austeras do grupo pode representar Afonso Mendes, o escudeiro velho. Ele é o contraponto moral que observa, com melancolia e desaprovação, a farsa e a decadência do seu amo e dos costumes portugueses.
Conclusão Alegórica
A ilustração, portanto, utiliza um simbolismo sombrio e alegórico para dramatizar a sátira de Francisco Manuel de Melo. Ela não é uma representação literal de uma cena, mas sim uma alegoria do estado da sociedade lisboeta do século XVII, onde a fidalguia se tornou um castelo em ruínas, e a busca pela honra se transformou num caminho cego e ridículo guiado pela vaidade e explorado pela astúcia.
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