Na vasta paisagem da literatura portuguesa do século XX, poucas obras possuem a força granítica e a humanidade crua de Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga. Publicada em 1944, esta coletânea não é apenas um livro de histórias; é um documento vivo, um grito de revolta e amor por uma região esquecida e por um povo moldado pela dureza da terra: os transmontanos.
Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, médico e escritor, conhecia como ninguém as cicatrizes da sua terra natal. Em Novos Contos da Montanha, ele leva-nos numa viagem ao "Reino Maravilhoso" de Trás-os-Montes, mas sem idealizações românticas. Aqui, a vida é uma luta constante contra a natureza, a pobreza, o isolamento e a morte.
Neste artigo, vamos desbravar as páginas desta obra essencial, explorando os seus temas, personagens e o estilo inconfundível que faz de Torga um gigante das letras lusófonas.
🌍 O Cenário: O Telurismo e a Fusão Homem-Terra
Para compreender Novos Contos da Montanha, é imperativo entender o conceito de telurismo (do latim tellus, terra). Na obra de Torga, a geografia não é apenas um pano de fundo; ela é uma personagem ativa, muitas vezes a antagonista, que define o destino e o caráter dos homens.
Trás-os-Montes é descrita como uma terra de extremos: "nove meses de inverno e três de inferno". Este ambiente hostil cria um tipo humano específico: resistente, calado, duro por fora, mas com uma dignidade inquebrável.
A Paisagem como Destino
As rochas, as serras e o frio moldam a psicologia das personagens. O homem torguiano parece emergir da própria terra, feito do mesmo xisto e granito. Não há separação: a dureza do solo reflete-se na dureza das relações humanas e na escassez de palavras.
🗝️ Temas Centrais: A Luta pela Sobrevivência
A obra é composta por 22 contos, e embora as narrativas variem, os temas entrelaçam-se formando um mosaico da condição humana na serra.
1. A Pobreza e a Emigração
A miséria é uma constante. A terra dá pouco, e o que dá é arrancado com suor e sangue. Isso leva inevitavelmente ao tema da emigração, vista muitas vezes como a única saída, mas também como uma tragédia que desmembra famílias e esvazia as aldeias. O "brasileiro" de torna-viagem é uma figura recorrente, muitas vezes regressando rico mas desenraizado, ou pobre e humilhado.
2. O Contrabando e a Lei da Serra
Dada a proximidade com a Espanha (a "Fronteira"), o contrabando surge como uma necessidade de sobrevivência.
Justiça Oficial vs. Justiça Popular: Torga explora o conflito entre a lei do Estado (representada pela Guarda Fiscal, vista como opressora e externa) e a lei da comunidade. Para o transmontano, contrabandear não é crime; é vida. A solidariedade entre os habitantes contra a autoridade externa é um traço marcante.
3. A Religiosidade Pagã
Embora Portugal seja um país católico, em Novos Contos da Montanha, a religião é vivida de forma sui generis.
Deus é muitas vezes visto como distante ou injusto.
As personagens misturam a fé cristã com superstições ancestrais, bruxarias e uma relação pragmática com o divino. Reza-se por milagres, mas confia-se na força do braço. O padre é respeitado, mas muitas vezes criticado se não compreende a realidade dura dos fiéis.
📖 Análise de Contos Emblemáticos
Para ilustrar a profundidade de Novos Contos da Montanha, analisemos brevemente algumas das narrativas mais poderosas da coletânea.
"O Alma Grande"
Este conto aborda um tema chocante para a sensibilidade moderna: a eutanásia social ou pragmática. O "Alma Grande" é um homem da aldeia encarregado de ajudar os moribundos a "passar" (acelerar a morte) para acabar com o sofrimento e libertar a família do fardo.
Significado: Revela o pragmatismo brutal da vida na serra, onde a morte é encarada com naturalidade e onde a sobrevivência do grupo se sobrepõe ao prolongamento artificial da vida. No entanto, o conto termina com uma reviravolta irónica, onde a natureza impõe a sua própria vontade.
"Fronteira"
Um dos contos mais famosos sobre o contrabando. Narra a história de um contrabandista que, para escapar à Guarda Fiscal, atravessa a fronteira num ato de bravura e desespero.
Significado: Celebra a coragem e a resistência do indivíduo contra a opressão do Estado. A "fronteira" aqui é tanto física quanto psicológica – o limite entre a vida e a morte, a legalidade e a sobrevivência.
"A Maria Lionça"
Torga dedica várias páginas à força da mulher transmontana. Maria Lionça é uma mulher que carrega o fardo da família, do trabalho no campo e da desgraça com uma dignidade estoica.
Significado: Ela representa a "Mãe Terra", a sustentáculo da sociedade rural, que sofre em silêncio mas nunca quebra. É um hino à resiliência feminina num mundo patriarcal e agreste.
🖋️ O Estilo Literário de Miguel Torga
A forma como Miguel Torga escreve é indissociável do conteúdo. O seu estilo em Novos Contos da Montanha caracteriza-se por:
Concisão e Sobriedade: Torga não usa enfeites desnecessários. A sua prosa é "enxuta", direta e incisiva, tal como a fala das gentes que retrata.
Léxico Regional: O autor utiliza abundantemente o vocabulário típico da região (regionalismos), o que confere autenticidade e sabor local às narrativas, sem tornar a leitura incompreensível.
Humanismo: Apesar da descrição de atos por vezes violentos ou cruéis, nunca há um julgamento moral superior por parte do narrador. Há uma profunda compaixão e entendimento das circunstâncias que levam os homens a agir daquela forma. Torga ama as suas personagens, mesmo nas suas falhas.
❓ Perguntas Frequentes (FAQ)
Qual a diferença entre "Bichos" e "Novos Contos da Montanha"?
Embora ambos se passem no mesmo cenário (Trás-os-Montes) e partilhem o estilo torguiano, o foco é diferente. Em Bichos, os protagonistas são animais (humanizados) ou humanos animalizados, focando na unidade biológica da vida. Em Novos Contos da Montanha, o foco é exclusivamente na sociedade humana, nas suas regras sociais, dramas morais e na luta social e económica.
Por que o livro foi censurado?
Durante o Estado Novo, a obra de Torga foi vista com maus olhos pela censura. A descrição da miséria extrema, da injustiça social, da emigração clandestina e da visão pouco ortodoxa da religião e da autoridade chocava com a imagem idealizada de um Portugal rural e pacífico que a ditadura queria propagar. O livro mostrava um país real que o regime queria esconder.
O livro é difícil de ler?
Para um leitor moderno, a maior dificuldade pode residir em alguns regionalismos e na dureza dos temas. No entanto, a estrutura de contos (histórias curtas e independentes) facilita a leitura. É uma obra acessível, mas emocionalmente densa.
🌟 Conclusão: A Universalidade da Aldeia
Dizia Tolstói: "Descreve a tua aldeia e serás universal". Miguel Torga fez exatamente isso em Novos Contos da Montanha. Ao descrever as pequenas aldeias de Trás-os-Montes, ele tocou em temas universais: a luta pela vida, a dignidade perante a morte, o amor, o ódio e a busca pela liberdade.
Esta obra não é apenas um retrato de um Portugal que (em parte) já desapareceu; é um espelho da condição humana quando despida de artifícios. Ler Torga hoje é um ato de resistência contra o esquecimento e uma lição de humanidade. É lembrar que, mesmo nas terras mais áridas, a alma humana pode florescer com uma força inigualável.
(*) Notas sobre a ilustração:
A ilustração é uma representação visual que capta de forma evocativa a atmosfera e os temas centrais de "Novos Contos da Montanha", de Miguel Torga. A imagem utiliza um estilo que lembra uma banda desenhada ou uma ilustração de livro clássica, com contornos definidos e cores que remetem à sobriedade da paisagem transmontana.
Aqui está uma descrição detalhada dos seus elementos:
1. O Cenário: A Montanha e a Aldeia:
Em Fundo: Dominam as montanhas áridas e as colinas desoladas de Trás-os-Montes, com trilhos sinuosos que se perdem no horizonte. O céu é nublado, reforçando o clima agreste e melancólico.
No Centro: Vê-se uma pequena aldeia, com casas de pedra rústicas e poucas árvores. Esta aldeia é o epicentro das vidas e dramas retratados nos contos. Um grande carvalho solitário no centro da aldeia pode simbolizar a resistência e a conexão com a terra.
2. As Personagens: O Povo Transmontano:
Em Primeiro Plano (Esquerda): Um grupo de figuras humanas, com fisionomias marcadas pela vida dura. São pessoas idosas, com rostos enrugados e expressões sérias, que representam a resiliência e a dignidade do povo transmontano. As suas roupas são simples, características da época e do ambiente rural.
Mulheres com Fardos: Algumas mulheres carregam trouxas e fardos às costas, simbolizando o trabalho árduo, a sobrevivência e, possivelmente, a carga da emigração. Os seus lenços na cabeça e as roupas escuras reforçam a sua condição.
A Solidão e a Partida (Direita): No lado direito da imagem, uma figura masculina (provavelmente um emigrante ou um contrabandista) caminha sozinha por um trilho que se afasta da aldeia, de chapéu e com uma postura que sugere partida ou solidão, elementos recorrentes na obra de Torga.
3. A Atmosfera: Luta e Estoicismo:
A paleta de cores é dominada por tons de terra, cinzentos, castanhos e verdes-secos, que transmitem a dureza da paisagem e das condições de vida.
Não há sorrisos ou gestos efusivos. As expressões são de estoicismo, cansaço e resignação, mas também de uma força interior que permite a sobrevivência.
4. Os Títulos:
No topo, o título "NOVOS CONTOS DA MONTANHA" e o nome "MIGUEL TORGA" estão escritos numa tipografia que evoca a simplicidade e a autenticidade, integrando-se organicamente na ilustração.
Em suma, a ilustração é uma representação fiel do universo de Novos Contos da Montanha, capturando a essência telúrica, a dureza da vida, a solidão e a resiliência do povo transmontano, elementos que Miguel Torga tão magistralmente retratou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário