O ano era 1581. No coração do fervor intelectual do Renascimento, o médico e filósofo português Francisco Sanches publicava o pequeno e explosivo tratado Quod nihil scitur (literalmente, "Porque Nada se Sabe" ou "Que Nada é Conhecido"). Longe de ser um exercício de desespero intelectual, esta obra em latim constituiu um dos mais radicais e influentes ataques ao dogmatismo da filosofia e da ciência aristotélica que dominavam as universidades europeias.
Quod nihil scitur não é apenas um marco do ceticismo moderno; é um manifesto que pavimentou o caminho para a revolução científica, ao desmantelar as certezas medievais e ao exigir uma nova fundação metodológica para o conhecimento. Este artigo mergulha na essência desta obra fundamental, examinando como a sua proclamação de ignorância se tornou o catalisador para uma nova era de investigação.
📚 A Ruptura Cética: O Contexto da Crítica à Escolástica
Para compreender a força de Quod nihil scitur, é necessário situá-lo contra o pano de fundo da filosofia da época.
O Dogmatismo Escolástico e a Crise da Certeza (H3)
No século XVI, o ensino universitário europeu ainda estava profundamente enraizado na Escolástica Aristotélica. A ciência e o conhecimento eram baseados na lógica dedutiva, em definições fechadas e na aceitação da autoridade de Aristóteles. Acreditava-se que o conhecimento verdadeiro (a scientia) era a posse de verdades universais e imutáveis, alcançadas através de silogismos e categorias rígidas.
Francisco Sanches, formado em Medicina e residente em Toulouse, França, confrontou este sistema:
A Crítica à Definição: Sanches argumenta que toda a ciência (a scientia aristotélica) falha porque se baseia em definições que, por sua vez, dependem de outras definições. Isso cria um círculo vicioso (regressus ad infinitum) que impede o conhecimento de alcançar uma base firme.
A Crítica à Causa: A busca pelas causas e essências últimas da natureza, central para o Aristotelismo, é igualmente rejeitada como infrutífera. Sanches conclui que a mente humana é incapaz de alcançar o que a ciência se propunha a conhecer.
A Proclamação Radical de Quod nihil scitur
A obra é um exercício de ceticismo radical, mas com um objetivo construtivo. Sanches adota o princípio cético da suspensão do juízo (epoché) para limpar o terreno das falsas certezas.
A tese não significa que o ser humano não possa saber nada no sentido prático (ele era médico e reconhecia a utilidade do conhecimento empírico), mas sim que o modelo dogmático de "ciência" (a scientia do seu tempo) era fundamentalmente falho e não podia produzir a certeza absoluta que reivindicava.
Esta proclamação de ignorância é o ponto de viragem: se a ciência dogmática não funciona, é necessário um novo método.
🔬 Do Ceticismo ao Método: A Fundação do Empirismo
Sanches não se contenta em destruir; ele aponta o caminho para uma investigação mais honesta e eficaz. O ceticismo em Quod nihil scitur torna-se o catalisador para o empirismo.
O Verdadeiro Objeto da Investigação
Para Sanches, o erro da Escolástica era tentar conhecer a essência dos objetos (o que as coisas são) em vez de se concentrar nas suas propriedades observáveis (como as coisas se manifestam).
Experiência e Observação: Já que a Razão e a Lógica (silogismos) falham em alcançar a verdade, Sanches propõe que o ser humano deve voltar-se para a experiência e a observação direta da natureza. É o método de tentativa e erro, da coleta de dados e da formulação de hipóteses.
O Conhecimento como Aproximação: O que pode ser conhecido não é a verdade absoluta, mas sim um conhecimento imperfeito, mutável e probabilístico — o conhecimento prático (a cognitio), em oposição à scientia dogmática. Sanches humaniza o conhecimento, aceitando a falibilidade humana como ponto de partida.
A Deficiência Humana e a Natureza
Outro pilar da obra é o reconhecimento das limitações humanas perante a complexidade da Natureza:
O Sujeito Limitado: Os sentidos humanos são imperfeitos, a nossa inteligência é limitada e o tempo de vida é insuficiente para abarcar a totalidade do cosmos.
A Natureza Infinita: A Natureza, por sua vez, é vista como infinita em detalhes e complexa em interconexões. A tentativa de a encerrar em algumas definições lógicas é, para Sanches, um ato de arrogância.
Ao casar a imperfeição do sujeito com a infinitude do objeto, Sanches justifica o seu ceticismo e a necessidade de um método que avance passo a passo, aceitando a incerteza inerente.
🚀 Legado Cético e a Ponte para a Modernidade
Apesar de a sua obra ter tido um impacto imediato, Sanches é muitas vezes considerado um "cético perdido" na história da filosofia. Contudo, a sua influência foi decisiva na transição para a era moderna.
Francisco Sanches e o Pré-Cartesianismo
O impacto de Quod nihil scitur é palpável na obra de René Descartes (1596-1650), o "Pai da Filosofia Moderna", que também iniciou sua investigação com um ceticismo metódico.
O Ponto de Partida: Sanches foi um dos precursores do princípio de que a dúvida radical deve ser o ponto de partida para a construção de qualquer conhecimento sólido. A dúvida sanchesiana, como a cartesiana, não visa a negação total, mas a limpeza metodológica.
A Busca pelo Método: Tanto Sanches quanto Descartes perceberam que, para sair do impasse escolástico, a questão mais urgente não era o que se sabe, mas como se sabe. Sanches, ao rejeitar o método silogístico, abriu a porta para que outros (como Bacon e o próprio Descartes) propusessem novos caminhos (o Empirismo e o Racionalismo).
A Semeadura da Ciência Moderna
O verdadeiro legado de Sanches reside na sua contribuição para o espírito da Revolução Científica. Ao libertar o pensamento do peso das autoridades e ao privilegiar a observação e a experiência, ele contribuiu para a emergência de um novo tipo de investigador.
Rejeição da Autoridade: A sua crítica audaciosa contra Aristóteles e Galeno deu coragem a outros pensadores para desafiarem os cânones estabelecidos.
Fundação Empírica: Sanches ajudou a sedimentar a ideia de que a ciência não deve ser dedutiva (a partir de princípios a priori), mas indutiva (a partir de dados a posteriori), um princípio que se tornou fundamental para a física de Galileu e o empirismo de Bacon.
🔑 Conclusão: A Ignorância como Chave para o Conhecimento
Quod nihil scitur é, ironicamente, um dos livros mais importantes sobre o conhecimento já escritos. A sua tese radical de que a scientia do passado era inviável não resultou em paralisia, mas em um imperativo para a ação: se nada sabemos com certeza absoluta, devemos trabalhar para saber, de forma humilde e metódica.
Francisco Sanches, através do seu famoso tratado, provou que, por vezes, a proclamação da ignorância é o ato mais filosófico e científico, a verdadeira chave para abrir as portas da investigação moderna e do progresso. A sua obra permanece como um eterno lembrete de que a dúvida é o motor essencial do conhecimento.
🧐 Descrição da Ilustração de Quod nihil scitur
A ilustração que fiz para o Quod nihil scitur (Que nada se sabe) de Francisco Sanches, no estilo de uma antiga gravura em xilogravura, busca capturar a essência da filosofia cética da obra, misturando erudição renascentista com a dúvida radical.
O Cenário e a Dúvida: O ponto focal é um erudito (que representa o próprio Francisco Sanches) sentado à sua mesa de estudo, num interior que lembra uma biblioteca ou studiolo (gabinete de estudo). Acima de sua cabeça, dominando a cena e o teto abobadado (onde se vislumbra um cosmos estrelado), paira um gigantesco ponto de interrogação. Este símbolo é a representação visual direta e poderosa do título da obra e do ceticismo fundamental do autor: a dúvida sobre a possibilidade de conhecimento absoluto.
O Erudito: O homem está imerso em pensamentos, com a mão no queixo (um gesto clássico de meditação) e apontando para baixo, talvez indicando os textos que estuda ou a sua própria mente. Ele veste trajes que sugerem um acadêmico ou filósofo do século XVI.
O Ambiente de Estudo e a Crítica: A mesa está coberta de livros, manuscritos, um tinteiro, e instrumentos científicos da época, como um globo terrestre ou celeste. Isso estabelece o contexto da época: a erudição e o início do método científico. No entanto, a onipresença do ponto de interrogação sugere que todo este saber tradicional, representado pelos livros nas estantes ao fundo e pelos objetos, está sob escrutínio cético. Um pergaminho ou faixa sobre a sua cabeça traz o título em latim: QVID NIHIL SCITUR.
Os Elementos Clássicos: A gravura utiliza a estética clássica e alegórica. Anjos ou putti seguram a faixa com o título, conferindo uma dignidade quase atemporal à questão filosófica levantada por Sanches.
Em suma, a ilustração é uma alegoria visual que confronta o conhecimento acumulado (a biblioteca) com a incerteza da verdade (o grande ponto de interrogação), resumindo a principal tese de Sanches sobre a limitação da razão humana e a impossibilidade de se conhecer as essências das coisas.
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