Quando os leitores percorrem os cantos árduos e dolorosos de A Divina Comédia de Dante Alighieri, a expectativa recai quase inteiramente sobre o reencontro do poeta com a sua amada Beatriz. No entanto, antes que Dante possa olhar nos olhos da Teologia e ascender às estrelas, ele encontra uma figura feminina radiante, misteriosa e fundamental, que serve como o último elo da humanidade com a terra: Matelda.
Localizada no cume da Montanha do Purgatório, no Paraíso Terrestre, Matelda não é apenas uma personagem de transição. Ela personifica algo que a humanidade perdeu há muito tempo: a felicidade natural e o estado de inocência anterior ao Pecado Original. Ela é a imagem do que seríamos se Adão e Eva não tivessem caído.
Este artigo mergulha na floresta antiga do Éden dantesco para desvendar o significado de Matelda, explorando como a sua alegria pura e os seus rituais são essenciais para a arquitetura moral da obra.
🌿 O Encontro no Jardim do Éden: O Cume do Purgatório
Para compreender Matelda, precisamos situar-nos geograficamente e espiritualmente. Dante acabou de atravessar a muralha de fogo (o último teste de purificação) e Virgílio, a Razão, declarou a sua missão cumprida. Dante é agora "senhor de si mesmo".
Ao entrar no Paraíso Terrestre (Cantos XXVIII a XXXIII do Purgatório), Dante depara-se com uma floresta divina, perfumada e viva. É neste cenário bucólico, separado do poeta por um pequeno riacho (o rio Letes), que surge Matelda.
Uma Figura Solitária e Alegre
Ao contrário das almas penitentes que Dante encontrou durante toda a subida, Matelda não sofre, não carrega pesos e não chora. Ela canta e colhe flores.
A Surpresa de Dante: O poeta fica atónito. Ele habituou-se à dor como caminho para Deus. Ver uma mulher rir e cantar por puro prazer parece-lhe estranho.
A Explicação: Matelda explica que o seu riso não é frívolo. Ela cita o Salmo Delectasti: "Alegraste-me, Senhor, com os teus feitos". A sua alegria deriva da contemplação direta da obra de Deus, tal como era no princípio da criação.
✨ Matelda: O Símbolo da Inocência Original
A principal função alegórica de Matelda em A Divina Comédia de Dante Alighieri é representar a natureza humana perfeita, restaurada à sua condição original.
1. A Felicidade Natural
Antes da Queda (o pecado de Adão e Eva), o ser humano vivia em harmonia perfeita com a natureza e com Deus. Não havia conflito entre o desejo e o dever. Matelda encarna essa felicidade terrena. Ela vive o "agora" perfeito, sem remorsos do passado nem ansiedade pelo futuro. Enquanto Beatriz representa a felicidade sobrenatural (a visão de Deus), Matelda representa a felicidade natural (a vida humana plena e justa na Terra).
2. A Inocência Anterior ao Pecado
Dante descreve-a com uma pureza que evoca Eva antes de comer o fruto proibido. Ela não tem vergonha, nem malícia. O seu olhar é límpido.
A Restauração de Dante: O objetivo do Purgatório é, precisamente, "refazer" o ser humano. Ao encontrar Matelda, Dante está a encontrar a parte de si mesmo que foi perdida no Éden. Ela é o espelho da alma purificada que recuperou a sua inocência infantil.
🌊 O Ritual dos Rios: Letes e Eunoé
Matelda não é apenas um símbolo passivo; ela desempenha uma função sacerdotal única. Ela é a guardiã dos dois rios místicos que fluem no Paraíso Terrestre e a responsável pelo batismo final de Dante.
Para que a alma possa subir às estrelas, a purificação pelo fogo não basta; é necessária uma purificação da memória.
1. O Mergulho no Letes (O Esquecimento)
Primeiro, Matelda mergulha Dante no rio Letes.
Função: Apagar a memória do pecado.
Significado: Não se trata de esquecer os factos, mas de apagar a culpa e a vergonha associadas ao pecado. A alma deixa de se sentir "suja".
2. O Mergulho no Eunoé (A Boa Memória)
Após a procissão mística e o encontro com Beatriz, Matelda leva Dante ao rio Eunoé (uma invenção de Dante, significando "boa mente").
Função: Reavivar a memória das boas ações realizadas em vida.
Significado: A inocência recuperada não é um vazio; é preenchida pela consciência do bem que foi feito. Só então Dante se sente "puro e disposto a subir às estrelas".
⚖️ Matelda e a Vida Ativa
Na tradição medieval, debatia-se muito sobre a "Vida Ativa" (trabalho, caridade, ação no mundo) e a "Vida Contemplativa" (oração, teologia, isolamento).
Em A Divina Comédia, estas duas vidas são representadas por pares de mulheres:
No Antigo Testamento: Lia (Ativa) e Raquel (Contemplativa).
Na Comédia: Matelda (Vida Ativa Perfeita) e Beatriz (Vida Contemplativa Perfeita).
Matelda colhe flores, move-se, explica os fenómenos naturais do vento e da água. Ela representa a ação humana quando esta é guiada pela justiça e pelo amor, sem a corrupção do pecado. Ela ensina que a vida na Terra e a apreciação da natureza não são obstáculos à santidade, mas — quando vividas em inocência — são o degrau necessário para a contemplação celeste.
🤔 Perguntas Comuns sobre Matelda
Matelda é uma personagem histórica?
A identidade histórica de Matelda é um dos grandes mistérios de Dante. A teoria mais aceite é que ela se refere à Condessa Matilde de Canossa (1046–1115), uma poderosa nobre italiana aliada do Papa, famosa pela sua governança justa e ativa. Outros sugerem que ela pode ser Santa Matilde de Hackeborn ou simplesmente uma figura puramente alegórica. Para Dante, a alegoria (o que ela representa) é mais importante que a biografia.
Por que Matelda está no Purgatório e não no Paraíso?
Tecnicamente, o Paraíso Terrestre é o cume do Purgatório, mas já é um lugar de bem-aventurança. Matelda pertence a este lugar porque a sua função é eterna: ela acolhe as almas que completaram a purificação. Ela é a cidadã perpétua do Éden, guardando o lugar que a humanidade perdeu até que esta o recupere.
Qual a relação entre Matelda e Beatriz?
Matelda é a precursora. Assim como São João Batista preparou o caminho para Cristo, Matelda prepara a alma de Dante para Beatriz. Matelda limpa a memória e restaura a natureza humana; Beatriz eleva essa natureza ao divino. Sem a inocência de Matelda, Dante não suportaria a luz da sabedoria de Beatriz.
🌟 Conclusão: O Sorriso da Criação
Em A Divina Comédia de Dante Alighieri, Matelda é uma lufada de ar fresco após o sufoco do Inferno e o esforço do Purgatório. Ela lembra-nos de que o plano original de Deus para a humanidade era a alegria, não o sofrimento.
Ao representar a felicidade natural e a inocência, Matelda valida a beleza do mundo físico. Ela ensina a Dante — e ao leitor — que para sermos santos, precisamos primeiro voltar a ser verdadeiramente humanos, capazes de sorrir diante da beleza de uma flor ou da clareza de um rio. Ela é a bela guardiã da nossa infância espiritual perdida, que nos lava no rio da graça para que possamos, finalmente, voltar a casa.
(*) Notas sobre a ilustração:
A ilustração capta de forma magnífica a essência de Matelda no Paraíso Terrestre, conforme descrito em A Divina Comédia de Dante Alighieri (Canto XXVIII do Purgatório). A imagem está repleta de simbolismo e detalhes que refletem a sua função e o seu significado na obra.
Aqui está uma descrição detalhada dos seus elementos:
1. Matelda: A Figura Central:
Aparência: Matelda é retratada como uma jovem mulher serena e bela, com longos cabelos ruivos que caem sobre os ombros. Ela irradia uma aura de paz e alegria.
Vestimenta: Usa um vestido simples, fluído e branco, que evoca pureza, inocência e a natureza etérea da sua condição. Este vestido não é luxuoso, mas elegante na sua simplicidade.
Coroa de Flores: Na cabeça, ela ostenta uma grinalda de flores coloridas, simbolizando a sua conexão com a natureza exuberante do Éden e a alegria da vida natural.
Cesto de Flores: Ela segura um cesto com mais flores variadas, num gesto de colheita. Este ato de colher flores é uma das primeiras ações que Dante a vê fazer, simbolizando a sua felicidade na criação divina.
Ramo de Oliveira/Louro: Um ramo de folhas verdes (que pode ser louro ou oliveira) adorna o seu braço ou cesto, simbolizando a paz, a sabedoria e a vitória (sobre o pecado, no contexto da pureza restaurada).
Luz Divina: Uma suave auréola de luz emana da sua cabeça e rodeia a sua figura, indicando a sua santidade e a proximidade com o divino, sem ser opressiva.
2. O Ambiente: O Paraíso Terrestre (Jardim do Éden):
Floresta Antiga: O cenário é uma floresta luxuriante, com árvores altas e majestosas de folhagem densa, que criam um arco natural sobre Matelda. As árvores parecem antigas e intocadas, evocando a ideia de um Éden primordial.
O Riacho (Letes/Eunoé): Aos pés de Matelda, um pequeno riacho de águas límpidas flui. Este riacho representa os rios Letes (que apaga a memória do pecado) e Eunoé (que restaura a memória das boas ações), essenciais para a purificação final de Dante antes de encontrar Beatriz. As margens do rio estão repletas de flores vibrantes.
Céu Brilhante: Apesar da densidade da floresta, uma luz dourada irrompe por entre as copas das árvores, iluminando Matelda e o caminho à sua frente, simbolizando a luz divina que penetra o Paraíso Terrestre.
3. O Contexto do Purgatório (Segundo Plano):
Procissão Mística: Ao fundo, através de uma clareira na floresta, vislumbra-se uma procissão mística. Podem ser vistos elementos como um carro triunfal (o Carro Alegórico da Igreja), puxado por criaturas aladas (o Grifo, símbolo de Cristo), e figuras que representam os livros proféticos ou os sete sacramentos. Esta procissão é o pano de fundo para a chegada de Beatriz, que Matelda irá guiar Dante a encontrar.
Outras Figuras: Pequenas figuras de santos ou almas purificadas observam a cena à distância, sugerindo a presença de outros habitantes do Éden.
Simbolismo Geral: A ilustração sublinha o papel de Matelda como a personificação da felicidade natural e da inocência primordial. A sua postura calma, o cesto de flores e o ambiente idílico da floresta representam a harmonia perfeita com a criação, o estado de graça que a humanidade desfrutava antes da Queda. Ela é a ponte entre a purificação terrena e a contemplação celeste, o último e mais doce dos guias antes do reencontro com Beatriz.
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