Introdução: O Grito Silenciado em O Judeu, Bernardo Santareno
O Judeu, de Bernardo Santareno (pseudónimo de António Martinho do Rosário, 1920-1980), não é apenas uma peça de teatro; é um monumento literário e um poderoso libelo em defesa da liberdade individual e contra todas as formas de opressão. Publicada em 1966, a obra é considerada o texto mais marcante e a magnum opus do dramaturgo português do século XX.
A narrativa dramática remonta ao século XVIII, reconstituindo o calvário de António José da Silva (1705-1739), o dramaturgo luso-brasileiro, conhecido popularmente como "O Judeu". António José, um cristão-novo (descendente de judeus convertido ao catolicismo), foi perseguido, preso, torturado e, finalmente, queimado vivo pela Inquisição em Portugal.
No entanto, a genialidade de Santareno reside na utilização deste drama histórico como uma poderosa alegoria política. Sob a vigilância apertada da censura do Estado Novo (Salazarismo), o autor transpôs para o drama setecentista uma crítica veemente à repressão, ao fanatismo e à falta de liberdade que sufocavam o Portugal do seu tempo. O Judeu tornou-se, assim, uma ponte temporal entre duas eras de tirania: a Inquisição do século XVIII e a Ditadura do século XX.
🎭 Estrutura e Estilo: O Teatro Épico de O Judeu
O Judeu marca uma viragem significativa na obra de Bernardo Santareno, afastando-se do "naturalismo poético" das suas peças anteriores em direção ao Teatro Épico de matriz brechtiana. Esta escolha estilística é crucial para o impacto político e didático da peça.
A Influência de Bertolt Brecht e a Distância Crítica
Ao adotar o teatro épico, Santareno incorpora técnicas que visam a distanciamento emocional do espectador (efeito V-effekt, ou estranhamento), forçando-o a uma reflexão crítica sobre a ação, em vez de uma simples identificação passional com os personagens. Elementos brechtianos incluem:
Quebra da Quarta Parede: O uso do narrador-comentador, o Cavaleiro de Oliveira, que se dirige diretamente ao público, contextualizando, comentando e ironizando os eventos. O Cavaleiro de Oliveira, figura histórica e crítico da Inquisição, funciona como o porta-voz do autor, permitindo a Santareno inserir a crítica política contemporânea ao Salazarismo.
Mosaico de Citações: A obra é construída com base em excertos de documentos históricos, cartas e autos de fé, conferindo-lhe um tom de reportagem e autenticidade.
A Inserção das Comédias: Santareno insere trechos das óperas trágico-jocosas de António José da Silva. O contraste entre a alegria e a crítica social das peças do Judeu e o terror da Inquisição acentua a tragédia e a repressão do regime.
O Uso do "Gestus" e a Subtil Crítica ao Salazarismo
Na análise do teatro épico, o conceito de Gestus refere-se aos gestos ou atitudes que indicam relações sociais e ideológicas. Em O Judeu, Santareno utiliza o Gestus para traçar um paralelo entre a Inquisição e o Salazarismo:
A Vénia: O ato de fazer a vénia diante do Rei ou das autoridades inquisitoriais simboliza a submissão, o medo e a hipocrisia exigidos pelo poder, ecoando a repressão da liberdade de expressão no Estado Novo.
O Silêncio de António José: A imobilidade e a quietude do protagonista diante de seus antagonistas são um ato de resistência passiva, uma negação silenciosa da autoridade que busca aniquilá-lo.
💔 O Drama da Identidade e a Busca pela Liberdade
No centro da tragédia de O Judeu está o conflito existencial do protagonista e a sua luta desesperada pela integridade pessoal e liberdade criativa.
António José da Silva: Entre a Fé e a Arte
António José é um homem dividido. É um cristão-novo que vive sob a sombra constante da suspeita e do fanatismo religioso. No entanto, o seu verdadeiro sacerdócio encontra-se na Arte e no Teatro.
A Condição de Cristão-Novo: O seu destino é marcado não pela fé que pratica, mas pela etnia que carrega. A Inquisição não persegue a heresia, mas a "raça", o sangue, a diferença. A sua mãe, Lourença, representa a resistência pela fé judaica, enquanto António José tenta resistir através da sua arte.
O Poder Subversivo do Teatro: António José acredita fervorosamente na capacidade do teatro de purificar a sociedade, de apontar os seus vícios e de promover a alegria e a crítica. As suas peças são a sua forma de se afirmar como ser humano livre e pensante, um desafio direto ao obscurantismo do regime. A peça de Santareno celebra este poder emancipador da arte em tempos de censura.
A Denúncia da Opressão e do Fanatismo
O Judeu é uma anatomia da tirania, mostrando como o medo corrói a sociedade e destrói o indivíduo.
O Mecanismo da Culpa e Confissão: A Inquisição opera através do medo e da confissão forçada, um mecanismo que Santareno usa para denunciar a cultura de denúncia e a falta de direitos civis durante o Salazarismo. O destino de António José é traçado não pelos seus crimes, mas pela necessidade do sistema de encontrar um culpado.
O Trágico e o Inexorável: A peça culmina no clímax trágico: a execução de António José. O leitor/espectador sabe que a sua crença na liberdade e na força do teatro irá falhar diante da inexorabilidade do poder absoluto. O seu destino é o de todos os que desafiam o obscurantismo. O último ato é, por isso, um testemunho da ineficácia da luta contra o fanatismo, que Santareno mostra existir em todas as épocas.
❓ Perguntas Frequentes sobre O Judeu, Bernardo Santareno
Por que a peça se chama O Judeu?
O título deriva da alcunha pela qual o protagonista, António José da Silva, era conhecido em Portugal no século XVIII. Embora fosse batizado católico (cristão-novo), o seu apelido e a sua linhagem judaica foram a justificação utilizada pela Inquisição para o perseguir e executar. Santareno usa o título para focar na questão da identidade, do preconceito racial e da discriminação.
Quando a peça foi escrita e qual o seu impacto?
O Judeu foi escrito em 1966, mas devido à censura política do Estado Novo, só pôde ser encenado publicamente em Portugal após a Revolução de 25 de Abril de 1974. A sua publicação e, mais tarde, a sua representação tiveram um impacto profundo, sendo vista como uma das críticas mais ferozes e artisticamente sofisticadas à ditadura.
🌟 Conclusão: Um Legado de Liberdade e Arte
O Judeu, Bernardo Santareno, transcende a simples reconstituição histórica. É uma obra atemporal que celebra a coragem do indivíduo que, mesmo sob a mais brutal das repressões, se recusa a negar a sua humanidade e a sua liberdade de pensar. O sacrifício de António José da Silva, o dramaturgo setecentista, é transformado pela pena de Bernardo Santareno num eterno aviso contra o perigo do fanatismo, do preconceito e do poder ilimitado.
A sua relevância perdura, servindo como um marco do teatro português e um hino à liberdade de expressão, um tema vital para o entendimento da cultura e da história de Portugal.
🎭 Elementos-Chave e Simbolismo da Ilustração
A imagem está estruturada para destacar os conflitos centrais da peça: a luta entre a arte/liberdade e a opressão/fanatismo.
António José da Silva (O Protagonista Trágico):
No centro, o protagonista está representado com o sambenito e a coroça (chapéu cónico), vestimentas impostas pela Inquisição aos condenados. Esta imagem evoca o Auto de Fé e o momento da execução, o clímax inevitável da tragédia. Sua postura, embora condenada, sugere uma dignidade silenciosa, reforçando o tema da integridade individual perante a tirania.
Sua proximidade com a fogueira acesa simboliza a pena de morte e o destino cruel imposto pelo fanatismo religioso, mas também representa a purificação violenta da diferença.
O Cavaleiro de Oliveira (O Narrador Crítico):
Posicionado à esquerda, como um observador e interlocutor, o Cavaleiro de Oliveira representa o Discurso Crítico e a Voz do Autor (Bernardo Santareno). Vestido com trajes da época, ele gesticula, como se estivesse a comentar os acontecimentos ao público.
Ele detém papéis ou manuscritos, simbolizando o poder da razão, do esclarecimento e da crítica contra o obscurantismo. A sua presença reforça o caráter de Teatro Épico da peça, que visa o distanciamento e a reflexão política.
A Inquisição (A Força Opressora):
As figuras em segundo plano, vestidas com mantos escuros e com os rostos ocultos, segurando tochas, representam os Inquisidores e a Autoridade Opressora. O anonimato das vestes simboliza a desumanidade e a máquina implacável do sistema judiciário-religioso.
As Tochas trazem luz, mas é uma luz de julgamento e destruição, contrastando com a luz do conhecimento e da arte.
Simbolismo da Alegoria Política:
O cenário sombrio e o julgamento na praça pública, embora situados no século XVIII, servem como uma alegoria poderosa. O destino de António José reflete a perseguição à liberdade de pensamento e à liberdade de expressão que Bernardo Santareno criticava abertamente no contexto do Salazarismo (Estado Novo) em Portugal (século XX).
A imagem contrapõe o indivíduo criativo (António José) ao Poder Coletivo e Cego (Inquisição), sublinhando a luta eterna pela liberdade.
Em essência, a ilustração resume a peça como um Drama Histórico e Político sobre a condenação da diferença e do intelecto pela tirania.
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