A História, mais do que a mera cronologia de factos, é a busca incessante pelo sentido de um povo. No panorama intelectual português do século XIX, poucas obras ousaram enfrentar a alma nacional com tanta acuidade crítica e pessimismo visionário quanto Portugal Contemporâneo, de Joaquim Guilherme Gomes de Oliveira Martins (1845–1894). Publicada em 1881, esta obra-prima insere-se num período de profunda crise nacional e de um debate aceso sobre o destino do país – o "Problema Português".
Oliveira Martins não era apenas um historiador; era um sociólogo, um economista e um pensador profundamente influenciado pelas correntes filosóficas e científicas da época, como o Positivismo, o Determinismo e o Naturalismo. Em Portugal Contemporâneo, ele aplica essas lentes para dissecar a sociedade portuguesa desde as Guerras Liberais (1820-1834) até à sua própria época, concluindo que a nação vivia um ciclo vicioso de desequilíbrio e estagnação, preso entre as suas aspirações e a sua realidade histórica e económica.
Este artigo propõe-se a desvendar a essência, as principais teses e o impacto duradouro desta obra essencial para a compreensão do Portugal Contemporâneo e da historiografia nacional.
🧐 O Contexto da Obra e o "Problema Português"
A publicação de Portugal Contemporâneo coincide com o apogeu da chamada Geração de 70 e com o debate intelectual que se seguiu à Conferência do Casino e à propagação das ideias Socialistas e Republicanas. Portugal enfrentava um descalabro financeiro crónico, uma instabilidade política incessante (o Rotativismo Partidário) e uma crescente dependência económica do capital estrangeiro, além das tensões coloniais (o Mapa Cor-de-Rosa estava no horizonte).
É neste clima de decadência percebida que Oliveira Martins se propõe a analisar as causas profundas da decadência portuguesa.
📜 A Influência do Determinismo e do Positivismo
Martins utiliza uma metodologia que combina o estudo das estruturas económicas com a análise dos fatores psicológicos e raciais (muitas vezes controversos e influenciados pelas teorias deterministas da época). Ele vê a história como um processo sujeito a leis científicas e irrevogáveis, onde a geografia, a raça e o meio determinam o carácter e o destino de um povo.
A tese central da obra é que a instabilidade política e a debilidade económica do Portugal Contemporâneo são heranças diretas de uma história mal resolvida, marcada pela falta de capital e pelo desequilíbrio social.
🤝 As Guerras Liberais: O Ponto de Partida
Portugal Contemporâneo começa a sua análise no período crucial das Guerras Liberais, que Martins considera o nascimento, ainda que imperfeito, da nação moderna. Ele argumenta que a vitória do Liberalismo não resultou numa verdadeira revolução social ou económica:
Aparência vs. Realidade: O Liberalismo trouxe a forma (instituições, constituição), mas não o conteúdo (a estabilidade, o desenvolvimento económico e a participação popular real).
Dívida e Oligarquia: O sistema liberal consolidou o poder de uma nova oligarquia financeira e aumentou a dívida pública, perpetuando a dependência do estrangeiro.
🔑 As Principais Teses de Oliveira Martins em Portugal Contemporâneo
A obra de Martins é uma exposição de teses controversas e poderosas que visam explicar a "doença" da nação.
1. 💰 O Dualismo Económico e a Falta de Capital
Para Martins, a questão económica é central. Ele identifica um profundo dualismo na sociedade portuguesa:
O País Real (Rural e Pobre): A grande maioria da população, vivendo numa economia de subsistência, ignorada pelo centro político.
O País Oficial (Urbano e Burocrático): Uma elite política e financeira que vive à custa do Estado e da especulação, gerando um défice crónico.
Martins defende que a principal razão para a estagnação é a crónica falta de capital endógeno, o que obriga o país a recorrer constantemente a empréstimos externos e a viver numa permanente "ilha de miséria" sob um manto de falsas esperanças.
2. 🤕 O Mito da Decadência e o Fatalismo
Oliveira Martins é talvez mais conhecido por popularizar, ou pelo menos sistematizar, a ideia de que a história portuguesa é uma história de decadência desde o período dos Descobrimentos. Embora admire o passado épico, ele vê o presente como o resultado inevitável da exaustão das energias nacionais no século XVI.
Este fatalismo levou à criação da figura do "herói negativo" – o português é descrito como um ser de caráter pouco prático, romântico, melancólico e pouco propenso ao trabalho metódico e à ciência (o chamado luso-fatalismo).
3. ⚖️ O Peso da Burocracia e do Rotativismo
O historiador critica veementemente o Rotativismo Político (a alternância de poder entre os partidos Regenerador e Histórico/Progressista), considerando-o uma farsa sem conteúdo ideológico que servia apenas para manter a oligarquia no poder e distribuir favores, sufocando qualquer tentativa de reforma séria ou de desenvolvimento económico.
“O Portugal Contemporâneo é o do Estado absorvente, que tudo regula e tudo sufoca em nome de uma falsa liberdade.”
🤔 Perguntas Comuns sobre a Obra
Qual é a importância de Portugal Contemporâneo na historiografia?
A obra é um marco. Ela fundou uma nova escola de pensamento histórico em Portugal, conhecida como o Historiador-Sociólogo ou Geração de 90. Martins foi o primeiro a integrar de forma sistemática a História, a Economia e a Sociologia, influenciando decisivamente pensadores como António Sérgio e, em contraste, ideólogos do Estado Novo. A sua obra impulsionou a autocrítica nacional, mesmo que com teses polémicas.
Oliveira Martins era um pessimista?
Sim, o tom da obra é inegavelmente pessimista e até fatalista. Martins via a decadência de Portugal como quase irreversível devido a fatores históricos e, em parte, étnicos/geográficos. No entanto, ao expor a doença, ele também procurava um caminho, sugerindo implicitamente a necessidade de um homem forte ou de uma revolução moral e económica para salvar a nação – uma ideia que seria instrumentalizada mais tarde por regimes autoritários.
O que são os "Estrangeirados" na visão de Martins?
Embora Martins não use o termo no mesmo sentido que para Luís António Verney, a sua própria postura é a de um crítico que se volta para a Europa em busca de modelos (em particular a Alemanha e o Positivismo francês) para diagnosticar os males internos, criticando a endogenia e o isolamento cultural português.
🌟 Conclusão: O Legado de Portugal Contemporâneo
Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, permanece uma leitura essencial para quem deseja compreender a crise identitária e estrutural que abalou Portugal desde o século XIX. É um livro que, com a sua prosa vigorosa e as suas teses polémicas, obrigou a nação a olhar-se ao espelho e a confrontar as suas falhas.
Apesar das críticas modernas ao seu Determinismo e às suas referências etnicamente datadas, a análise de Martins sobre a falta de capital, a oligarquia parasitária e o dualismo social continua a oferecer insights poderosos sobre os problemas persistentes do país. O seu trabalho é, em última análise, o grito de um patriota que desejava um Portugal liberto da sua própria história de desilusão.
Descrição da Ilustração de Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins
A imagem seria uma representação alegórica do Portugal no final do século XIX, baseada nas teses de Oliveira Martins:
A Figura Central: O próprio Oliveira Martins, com a sua expressão grave e intelectual, estaria em primeiro plano, segurando um livro (o Portugal Contemporâneo) ou um mapa. Ele não estaria num ambiente de ensino otimista (como na imagem anterior), mas sim num gabinete sombrio, rodeado de documentos e estatísticas.
O Contraste da Decadência: O cenário atrás de Martins estaria dividido em dois planos, simbolizando o Dualismo Económico da sua tese:
Lado Esquerdo (O Passado/O País Rural): Uma paisagem rural pobre e estagnada, talvez com camponeses curvados sob o peso do trabalho, representando a falta de capital e a miséria do "País Real". O céu seria nublado ou de cor opaca.
Lado Direito (O Presente/O País Oficial): Uma vista da capital (Lisboa), mostrando a Burocracia e a Oligarquia. Poderiam ser vistas em silhueta figuras de políticos ou banqueiros em trajes formais, e pilhas de dinheiro ou notas de dívida, simbolizando o défice crónico e o Rotativismo Político criticado na obra.
Símbolos do Fatalismo: Um elemento como uma âncora enferrujada ou um antigo mapa desbotado dos Descobrimentos seria colocado em segundo plano, evocando a ideia do Mito da Decadência – a nação presa à glória do passado, incapaz de avançar.
A Luz da Crítica: A única fonte de luz direta incidiria sobre o rosto de Martins e a sua obra, simbolizando a sua crítica acutilante e a sua análise sociológica, que "ilumina" (revela) a doença da nação, mesmo que o tom geral da imagem permaneça pessimista e fatalista.
Esta ilustração representaria o tom de crise, desilusão e análise determinista que define a leitura e a influência de Portugal Contemporâneo.
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