Introdução: O Fulgor Subversivo de Mário Cesariny
Publicado originalmente em 1957, o livro Pena Capital de Mário Cesariny de Vasconcelos é amplamente considerado um dos pontos altos do surrealismo em Portugal e uma das obras poéticas mais importantes do século XX. O título, por si só, é uma provocação direta e multifacetada, sugerindo a condenação à morte que a sociedade, o regime ditatorial (o Estado Novo) e a "normalidade" impunham à liberdade, ao corpo e à imaginação.
Pena Capital não é apenas uma coleção de poemas; é um manifesto de resistência que utiliza a força da imagem onírica, o humor corrosivo e a liberdade absoluta da linguagem para desmantelar as estruturas opressivas da época. Cesariny estabelece o surrealismo português não como uma mera escola estética, mas como uma atitude de vida e um instrumento de intervenção social e política, combatendo a violência, a repressão e o cerceamento do corpo e da mente.
O artigo explorará como a obra utiliza a palavra-chave principal – Pena Capital – para simbolizar a morte da liberdade e, ao mesmo tempo, como a sua poesia se torna a capital da insurreição e da amizade.
🎭 O Surrealismo como Atitude: Contra a "Frota dos Normais"
Mário Cesariny foi o grande impulsionador e teórico do surrealismo em Portugal. Em Pena Capital, a estética surrealista é inseparável da sua postura ética e crítica.
O Uso Subversivo da Linguagem
A libertação da linguagem é o primeiro ato de rebeldia em Cesariny. O poeta rejeita as regras gramaticais e sintáticas rígidas, empregando:
Ausência de Pontuação: A falta de pontuação cria um fluxo ininterrupto de consciência e imagem, refletindo a espontaneidade do inconsciente e a fluidez do pensamento.
Neologismos e Coloquialismos: A mistura de termos eruditos com a linguagem do quotidiano e neologismos (criação de novas palavras) confere à obra uma dimensão popular e erudita simultaneamente, desafiando as convenções literárias.
A "Escrita Automática": Embora nem todos os poemas sejam de escrita automática pura, muitos partilham a sua metodologia de associação livre de ideias e imagens, quebrando a lógica racional imposta.
"A poesia de Cesariny, intrinsecamente original, dispensa a pontuação e parece que é pontuada, de tal forma é rigorosa a sua prosódia."
O Corpo, a Violência e a Liberdade
O corpo, na obra de Cesariny, é um campo de batalha político. Em Pena Capital, o poeta reflete sobre a violência exercida sobre o indivíduo pelo regime e pela moral vigente.
O Corpo Liberto: O surrealismo de Cesariny celebra a liberdade do corpo e do desejo, opondo-se à repressão sexual e moral do Estado Novo. A poesia torna-se um espaço onde o corpo é desenquadrado das suas limitações sociais e liberto.
A Monstruosidade da "Civilização Ocidental": Poemas como "o regresso de ulisses" criticam frontalmente o que o poeta via como as monstruosidades da sociedade ocidental, "sob a qual sufocamos", marcada pela hipocrisia, pelo conservadorismo e pela violência normalizada.
⛓️ O Simbolismo da Pena Capital: Morte e Ressurreição
O título Pena Capital transcende a mera referência à punição legal, tornando-se uma poderosa metáfora do seu tempo.
A Condenação da Imaginação
Para Cesariny e o movimento surrealista, a verdadeira Pena Capital que pesava sobre Portugal era a morte da imaginação e da liberdade de expressão, sufocadas pela ditadura.
Silêncio e Conformidade: O regime valorizava a conformidade, o silêncio e a moral repressiva. O surrealismo, com a sua apologia do sonho, do desejo e do inconsciente, era um ato de desobediência civil e estética.
Crítica à 'Frota dos Normais': A poesia de Cesariny declara guerra àqueles que, por conveniência ou ignorância, aceitavam a "normalidade" imposta. O poema torna-se a arma que golpeia a realidade presente, criando uma nova realidade, mais livre.
A Poesia como Capital de Amizade e Viagem
A obra contém um forte cunho sentimental e evocatório, transformando a Pena Capital na Capital (centro, essência) de outros valores:
Amizade: A obra é um expoente máximo da amizade, especialmente no diálogo com figuras como António Maria Lisboa e Cruzeiro Seixas. A amizade é a força que resiste à condenação e que sustenta o grupo surrealista.
Viagem Cósmica: Muitos poemas evocam viagens (reais ou oníricas) que libertam o sujeito das amarras geográficas e políticas de Portugal. A viagem é a metáfora da liberdade absoluta da mente, onde o "estranho verbo nosso" (a linguagem surrealista) não tem "nem pretérito nem futuro" – apenas um presente perfeito de criação.
🎨 A Intervenção Surrealista e o Legado de Pena Capital
O impacto de Pena Capital não se limita ao campo literário; ele é um marco na história da resistência cultural em Portugal.
A Poesia de Intervenção Indireta
Embora não seja uma poesia de slogans políticos diretos, a subversão da linguagem e a celebração do "eu" liberto são, em si, um ato político radical num contexto de censura e autoritarismo.
O Inconsciente como Refúgio: Ao dar voz ao inconsciente e ao sonho, Cesariny cria um espaúo de não-lugar onde as regras do regime não se aplicam. A loucura, o nonsense e o riso tornam-se ferramentas para desmascarar a seriedade vazia do poder.
A Palavra/Imagem: Em consonância com as práticas surrealistas, Cesariny articula a palavra com a imagem (muitas vezes em colagens e poemas-objetos), expandindo o significado e desafiando o leitor a uma perceção total e desregrada.
Perguntas Comuns sobre Pena Capital
1. O que significa o título "Pena Capital"?
O título Pena Capital (que significa "condenação à morte") é um jogo de palavras e um símbolo. Simboliza a morte da liberdade e da imaginação imposta pelo Estado Novo e pela sociedade "normal". No entanto, o livro é também a Capital (o centro, a essência) da intervenção surrealista em Portugal e da amizade entre os poetas.
2. Qual a relação de Mário Cesariny com o Surrealismo?
Mário Cesariny foi o líder e principal teórico do Surrealismo em Portugal (o "Grupo Surrealista de Lisboa"). Para ele, o surrealismo era uma atitude moral e existencial, um movimento de libertação total (política, sexual e estética), não se limitando a uma técnica artística.
3. A poesia de Cesariny é considerada antifascista?
Sim, de forma intrínseca. Ao lutar pela liberdade do corpo, da linguagem e do desejo, e ao criticar a "civilização ocidental" repressiva, Cesariny e o surrealismo representavam uma resistência cultural e ética fundamental contra o autoritarismo e a censura do regime fascista português.
Conclusão: A Imortalidade da Poesia de Pena Capital
Pena Capital de Mário Cesariny é a prova de que a poesia pode ser, simultaneamente, profundamente bela, rigorosa e ferozmente subversiva. A obra é um legado de fogo que celebra o inconformismo, a amizade e a libertação da imaginação. Ao desafiar a pena de morte imposta à liberdade, Cesariny imortalizou o seu grito. O livro não é apenas história da literatura, mas uma proposta de vida que continua a questionar os limites da "normalidade" até hoje.
(*) Notas sobre a ilustração:
Descrição da Ilustração "Pena Capital"
A ilustração apresenta uma cena de forte caráter surrealista, carregada de simbolismo e um tom sombrio, que evoca a crítica social e a rebeldia características de Mário Cesariny, um dos principais nomes do surrealismo em Portugal.
1. Elementos Centrais e Ação
A Mão e a Pena de Sangue: No centro, uma mão decepada, a sangrar no pulso, segura uma grande pena de ave (um cálamo) manchada de sangue. Esta pena escreve a frase "PENA CAPITAL" num pergaminho. A imagem da escrita feita por uma mão ferida e desligada do corpo simboliza a dor, o sacrifício e a violência contidos no ato de condenar e sentenciar, sublinhando que a criação ou a denúncia (o ato de escrever) pode ser um processo doloroso e punitivo.
O Olho na Gaiola: Por cima da mão, encontra-se uma gaiola de pássaros onde, em vez de um pássaro, está um olho humano (o "olho que vê"). O olho enjaulado sugere a prisão da visão, da consciência ou da verdade. No surrealismo, o olho é frequentemente um símbolo da lucidez e da liberdade, e vê-lo aprisionado é uma metáfora poderosa para a opressão e a censura (contexto histórico do regime salazarista que Cesariny criticava).
As Setas e as Palavras: Setas curvas e sinuosas circulam em torno da cena, transportando palavras-chave como JUSTIÇA, MORTE, DOR e uma referência ao surrealismo e à sua máxima: JUS T I Ç A (em cima) e JUS T I C I A (em baixo), MASIE (MAS EIS) MOS (MOS), I P F 2 S 8 O D E (código) e D N S I B I O. A repetição de "DOR" e "MORTE" reforça o clima de angústia.
2. O Cenário e a Atmosfera
Paisagem de Ruínas: O fundo é composto por uma paisagem árida, pontilhada por ruínas de edifícios antigos (cidade em decomposição ou destruída), o que sugere a decadência social, o fim de uma era ou o resultado devastador de um sistema de justiça opressor.
Cercado de Arame Farpado: Toda a imagem é emoldurada por uma borda de arame farpado e caveiras, criando uma sensação de confinamento, terror e inescapabilidade da morte ou da condenação.
Corvos e Cabeça Flutuante: Vários corvos voam à volta, símbolos tradicionais de mau presságio, morte e portadores de mensagens sombrias. Uma cabeça humana pálida, com a expressão de angústia, flutua no ar, sugerindo a dissociação da mente e do corpo perante a sentença ou o horror.
Paleta de Cores: O uso predominante do vermelho e do preto sobre tons de sépia cria um contraste dramático e reforça o tema do sangue, da violência, da dor e da destruição.
Em suma, a ilustração é um quadro que utiliza a técnica de justaposição de objetos incongruentes e a simbologia intensa do Surrealismo para criticar a crueldade da pena capital e, por extensão, a violência institucional e a repressão que aprisiona a visão e a liberdade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário