sábado, 1 de fevereiro de 2025

O belo baudelariano e a cidade moderna: análise do poema “A uma passante”

Baudelaire é retratado como um homem melancólico do século XIX, vestindo um casaco escuro e com um olhar intenso. Ele se encontra parado em uma movimentada rua parisiense, observando a mulher que passa sem notar sua presença. A mulher veste um elegante vestido escuro, um chapéu sofisticado e um véu, realçando sua aura de mistério. O fundo apresenta uma Paris impressionista, com lampiões a gás e figuras borradas em movimento, capturando a efemeridade da modernidade e o instante fugaz que inspirou o poema.

 Por Jean Monti Pires de A. G.

A presente análise do poema “A uma passante”, de Charles Baudelaire, é fruto de uma reflexão sobre a noção baudelariana de belo e a historicidade da arte, tendo em vista o artista, o poeta e o flâneur, bem como o processo de figuração da cidade moderna (na obra de Constantin Guys), a partir da leitura dos seguintes textos “O pintor da vida moderna”, “A uma passante” (“À une passante”) e “As multidões” (“Les foules”).

Introdução

A análise a que nos propomos elaborar correlaciona três gêneros literários distintos da obra de Charles Baudelaire em uma perspectiva crítica sobre a estética na arte. Trataremos de discutir, conforme sugerido acima, os conceitos de belo e historicidade da arte, além dos elementos literários contidos na compreensão baudelairiana do artista, do poeta, do flâneur e do processo de figuração da cidade moderna, através da leitura dos cinco primeiros capítulos de “O pintor da vida moderna” e dos poemas “A uma passante” e “As multidões”.

Na primeira estrofe de “A uma passante”, podemos ler o seguinte: “Longa, esbelta, enlutada, uma dor majestosa,/Passava uma mulher, que com a mão faustosa,/O festão e a bainha erguia e balançava” (versos 2, 3 e 4). Na página 877 de “O pintor da vida moderna”, lemos: “Se uma moda, um corte de roupa foi ligeiramente transformado, se os nós de fitas, as fivelas foram destronadas por laços, se a fita do chapéu se alargou e se o coque desceu um pouquinho na nuca, se o cinto foi levantado e a saia amplificada, creiam que a uma distância enorme seu olho de águia já o percebeu”. E no poema em prosa “As multidões”, quarto parágrafo, vemos o seguinte: “Para ele, só para ele, tudo está vago; e se em certos lugares parecem vedados ao poeta, é que aos seus olhos tais lugares não valem a pena de uma visita”. Nas três passagens citadas, podemos inferir alguns aspectos comuns que nos dão algumas pistas que serão importantes para a nossa discussão. Trata-se fundamentalmente de um sujeito ou um Eu lírico poético que encontra um enorme prazer em saborear, através do olhar, uma miríade de acontecimentos imersos na vida cotidiana das grandes cidades, cuja matéria-prima do fazer poético é a sua percepção. É desta figura central que Baudelaire constrói sua estética que, de certa forma, “inaugura” a modernidade. Em nossa análise, o ensaio de “O pintor da vida moderna” servirá de pano de fundo, ao qual serão interpostos os poemas “A uma passante” e “As multidões” conforme a exigência dos temas se mostrar concernente. As citações dos textos serão referenciadas, respectivamente, por páginas, versos e parágrafos, de acordo com gênero textual da cada um.

Análise dos Temas Baudelariana em “A uma passante”

No início de “O pintor da vida moderna”, para tratar da arte em geral, e da literatura propriamente dita, Baudelaire utiliza-se de uma metáfora, ou, mais precisamente, da metonímia, ao eleger a arte pictórica como mote de suas elucubrações. Isto fica bastante claro quando situa o seu ponto de partida no museu do Louvre e traça uma comparação de Ticiano e Rafael a Bossuet e Racine. Através dessa relação, Baudelaire pode dissertar sobre a arte em geral por meio de uma arte específica, a pintura, e, daí, formular suas teses sobre a estética artística.

Segundo Baudelaire, o conceito de belo não pode ser restringido apenas à produção artística dos poetas consagrados e artistas clássicos, pois, além da beleza universal, existe também uma beleza no particular, na circunstância, nos traços de costume, e, portanto, “artistas menores”, como Debucourt, Saint-Aubin, entre outros, também são dignos de serem estudados pela crítica e apreciados pelo público em geral. Em que pese a pertinência desta formulação para se pensar a arte, não são os artistas do passado, porém, o foco de interesse de Baudelaire, pois a sua atenção se volta para o presente, à pintura dos costumes, a qual a representação do presente tem o mesmo valor artístico e histórico que o passado tinha para o artista que o vivenciara. Por isso, Baudelaire nos repreende quando, diante de gravuras retratando a moda antiga, rimos dos trajes antiquados, e sugere que a moda do passado, apesar de parecer estranha, também foi, tal como hoje, atraente, ao despertar o desejo pela beleza, e, por isso, devemos aprender a compreender o seu contexto, pois cada vestido tem um “encanto de natureza dupla, artística e histórica” (p. 867).

Para Baudelaire, tão importante quanto a beleza universal, contida na arte clássica, é a beleza singular e, por isso, se opõe a uma teoria do belo absoluto, propondo no lugar uma definição composta por duas categorias opostas, ou melhor, uma dupla composição entre o eterno, invariável, e o transitório, relativo e circunstancial. Assim, em “O pintor da vida moderna”, o elemento transitório é representado pela época, moda, moralidade e paixão, que, por sua vez, são transfigurados em beleza eterna. Nas palavras de Baudelaire: “O belo é feito de um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se se quiser, sucessivamente ou em conjunto, a época, a moda, a moral, a paixão” (p. 868).

Não deixa de ser sintomático, sob tal pressuposto conceitual, a apresentação da forma do poema “A uma passante”, que é um soneto clássico, de versos alexandrinos. Sua forma fixa contrasta, no entanto, com o tema fluído e circunstancial do poema: a impressão passageira causada no Eu lírico pela aparição de uma mulher de beleza fugidia, que, ao andar, balança o seu vestido, com o movimento de suas pernas esculturais (talvez, insinuando uma simetria perfeita com as perenes estátuas greco-romanas). Tudo nela é rarefeito e movediço, as vestes que flutuam, o olhar de furacão, o clarão de um raio, a beleza, a sua figura delgada. Por outro lado, nem tudo nela é volátil, tênue, impreciso. Sua dor majestosa, sua mão faustosa, sua nobreza, o céu lívido de seu olhar transmitem algo de sublime e imutável. Assim, paradoxalmente, a finitude de algum modo induz ao infinito: “Não te verei jamais, senão na eternidade?” (primeiro terceto, verso 11). A dupla determinação também aparece no poema em imagens que sugerem estruturas contraditórias (oximoros), como “pernas de estátuas” (tradução de Guilherme de Almeida), “céu lívido de furação”, “prazer mortal”.

A cena descrita em “A uma passante” é quase um esboço, um rabisco poético, traçado rapidamente para captar a fugacidade de um momento típico e trivial do cotidiano burguês. Os valores da nova classe, que ascendeu politicamente, só podem ser reproduzidos pelo croqui de costumes e o surgimento da litografia cumpriu esse papel, nos quais as obras de Gavarni e de Daumier foram chamadas de Comédia humana (p. 870). O pintor de costumes incorpora o ideal estético de Baudelaire, o qual a figura do observador, o flâneur, um tipo marginal, ocioso, que não se adapta à sociedade, assume um papel central, muito embora não em sua concepção vulgar, mas, em vez disso, em um gênio de natureza mista, de espírito literário (p. 870), que sabe extrair das circunstâncias seu instante de eternidade. Como modelo dessa classe de artista, Baudelaire apresenta o pintor C.G. (Constantin Guys), que, na minha interpretação, é uma alegoria do próprio Baudelaire, para quem teorizar sobre a arte demandaria a escolha de um artista que representasse muito melhor que a si mesmo o seu próprio ideal de arte.

Portanto, G., a quem Baudelaire diz conhecer pessoalmente, é descrito como um artista que preza pelo anonimato, que não assina seus quadros, muito embora “todas as suas obras são assinadas por sua alma brilhante” (p. 871). Segundo Baudelaire, G. possui uma verdadeira aversão a qualquer tipo de exposição pública, a ponto de ter se irritado com uma menção sua feita pelo romancista Thackeray em um jornal de Londres. Baudelaire também chama a atenção para o fato de G. ter iniciado sua carreira artística tardiamente, tal como Jean-Jacques (Rousseau?), quando já estava acima dos quarenta anos.

Entre as características de G., Baudelaire salienta sua personalidade que é movida por uma intensa curiosidade, que é o ponto de partida de sua genialidade. G. também é descrito como um homem do mundo, um cosmopolita, ávido por conhecer e desbravar as vicissitudes da vida. A convalescença, que é, para Baudelaire, como um retorno à infância, é a chave para compreender o caráter de G., já que a criança vê extasiada tudo como algo novo, está sempre “embriagada” e maravilhada com todos os aspectos da vida (p. 873). Além disso, embora G. pudesse ser chamado de, por um lado, dândi, devido a sua inteligência sutil, por outro, se destaca da insensibilidade do dandismo pela sua paixão insaciável: a de ver e de sentir (p.875). Tampouco G. poderia ser, prossegue Baudelaire, denominado filósofo, haja vista seu amor pelas coisas visíveis e tangíveis e seu repúdio à metafísica (p. 875). O termo mais apropriado para G. seria o de moralista (p. 870). Para finalizar a descrição, Baudelaire sentencia: “grande apaixonado pela multidão e pelo incógnito, C. G. leva a originalidade até a modéstia” (p.871). Tamanha é sua modéstia que, atendendo ao pedido do pintor, Baudelaire convida, ironicamente, os leitores a fingir que G. não existe, o que é bastante irônico, porque G., na minha interpretação, foi evocado apenas para encarnar o ideal artístico do próprio Baudelaire.

Feitas estas longas considerações a respeito de G., o gosto pela multidão, retratado em suas gravuras, encontra vários paralelos e intertextos com o poema em prosa “As multidões”. Como vimos, segundo Baudelaire, G. é um espírito singular, independente e um flâuner, que faz das multidões seu habitat natural. “A multidão é seu domínio, como o ar é o do pássaro, como a água o do peixe. Sua paixão e sua profissão estão em desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, trata-se de um imenso prazer eleger domínio no conjunto, no ondeante, no movimento, no fugidio e no infinito” (p. 875). No poema em prosa, o poeta também se deleita em estar na multidão: “Aquele que desposa facilmente a multidão conhece gozos febris, de que estarão eternamente privados os egoístas, fechado com um cofre, e o preguiçoso encaramujado feito molusco. Ele adota como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que as circunstâncias lhe deparam” (quarto parágrafo). A respeito de G., Baudelaire descreve-o como um homem que se delicia em viajar e que se sente bem em qualquer parte do mundo, como se estivesse em seu próprio lar: “Estar fora de casa, mas sentir-se em casa em toda parte; ver o mundo, estar no centro do mundo e ficar escondido no mundo, tais são alguns dos menores prazeres desses espíritos independentes, apaixonados,” (p. 875). No primeiro parágrafo do poema em prosa, lemos: “Nem a todos é dado tomar um banho de multidão: gozar da multidão é uma arte; e só pode fazer, à custa do gênero humano, uma farta refeição de vitalidade, aquele em que uma fada insuflou, no berço, o gosto do disfarce e da máscara, o horror ao domicílio e a paixão da viagem” (primeiro parágrafo).

A própria modéstia, a negação de si mesmo, o anonimato, a dissolução da individualidade na multidão, a solidão de G. correspondem com a impessoalidade do Eu lírico de “As multidões” que se metamorfoseia em vários outros: “O poeta goza do incomparável privilégio de ser, à sua vontade, ele mesmo e outrem. Como as almas errantes que procuram corpo, ele entra, quando lhe apraz, na personalidade de cada um” (terceiro parágrafo). Em “O pintor da vida moderna”, G. também se destitui de sua individualidade em uma vida múltipla: “Trata-se de um eu insaciável de não eu, que, a cada instante, o apresenta e o exprime em imagens mais vivas que a própria vida, sempre instável e fugaz” (p. 876).

A experiência da metrópole vivida pelo flâneur em meio à multidão é, como vimos, um componente fundamental na poesia de Baudelaire. Em “A uma passante”, a cidade e multidão podem ser aferidas logo a partir do primeiro verso da primeira estrofe do poema: “A ensurdecedora rua em torno uivava”. A cidade também é o palco no qual G. busca a sua inspiração: “Ele contempla a paisagem da grande cidade, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou atingidas pelos tapas do sol” (p. 876). E é na cidade que o Eu lírico enquanto flâneur vivencia a sensação da transitoriedade, no caso, em “A uma passante”, personificada em uma mulher [“Passava uma mulher...” – verso 3]. Da mesma forma, G. também está atento ao turbilhão de elementos em movimento das metrópoles: “Passa um regimento, que vai talvez para o fim do mundo, lançando no ar dos bulevares suas fanfarras arrebatadoras e leves como a esperança; e eis que o olho já viu, inspecionou, analisou as armas, o porte e a fisionomia dessa tropa. Arreamentos, cintilações, música, olhares decididos, bigodes pesados e sérios, tudo isso entra misturado nele; e em alguns minutos, o poema que daí resulta será virtualmente composto” (p. 877). E, em “As multidões”: “Aquilo que os homens chamam de amor é muito pequeno, muito limitado e muito frágil, comparado a essa inevitável orgia, a esta prostituição da alma que se dá inteira, poesia e caridade, ao imprevisto que surge, ao desconhecido que passa” (quinto parágrafo). A percepção da coisa efêmera que, todavia, perdura nos traços mais marcantes da memória será depois convertido em poesia.

O que G. procura neste grande deserto de homens é, no entanto, um objetivo que ultrapassa em muito o prazer fugaz apreendido pela percepção do flâneur, pois ele busca a modernidade. “Trata-se, para ele, de depreender da moda o que pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório” (p. 878). Todas as épocas têm suas particularidades, seus trajes de moda, seu gesto, seu sorriso, sua vitalidade, que se forem suprimidas redundariam numa beleza vazia e abstrata. A modernidade é uma das metades da arte, compreendida como fugacidade, transitoriedade; enquanto a outra metade é entendida como o eterno e o imutável. “Em suma para que toda modernidade seja digna de se tornar antiguidade, é preciso que a beleza misteriosa que a vida humana aí põe involuntariamente tenha sido dela extraída” (p.880).

Conclusão

Baudelaire é um artista paradoxal, imerso em contradições e tensões que ele próprio constrói. Ao transitar entre a tradição e o novo, vira-se contra o passado ao mesmo tempo em que, para ele, o circunstancial inerente a esse passado confere justamente o status de eternidade a uma obra de arte; tendo-se em conta que o próprio presente um dia se tornará passado e seus componentes conjunturais se tornarão uma beleza eterna. Cada época tem a sua originalidade, a sua singularidade, a sua própria modernidade, e aquilo que parece ultrapassado, ridículo, anacrônico, artificial, fora de moda tem o seu valor, pois realça a poesia da história e extrai o eterno da transitoriedade. Tal como a natureza dupla do ser humano, podemos considerar a parte eterna da arte como a alma e o elemento variável, transitório, furtivo, o corpo. O pintor C.G. é o artista por excelência da modernidade. Sua arte mnemônica sustenta-se em dois grandes pilares, a saber, o seu gosto pelas multidões e o flâuner, que, com o seu transitar incansável e tudo observar, apreende a poesia na fugacidade inerente à vida moderna das grandes metrópoles.

Referências bibliográficas

BAUDELAIRE, Charles. “As Multidões”. In: Pequenos poemas em prosa. Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1976.

BAUDELAIRE, Charles. “A uma passante”. In: As flores do mal.

BAUDELAIRE, Charles. “O pintor da vida moderna”. In: Prosa. Companhia das Letras: São Paulo.

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