segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Maina Mendes: O Grito Silencioso de Maria Velho da Costa e a Subversão do Feminino na Literatura Portuguesa

 A ilustração tenta capturar a complexa estrutura e os temas centrais de Maina Mendes: a tensão entre a mulher silenciada e a voz masculina dominante, a fragmentação da identidade e o experimentalismo linguístico da obra, abrangendo as três gerações.  Maina Mendes (O Silêncio e a Fragmentação):  A Figura Central: No centro, está a figura de Maina. Ela não está inteira, mas sim representada como uma silhueta fragmentada, feita de texto e sombras. Seu corpo é composto por recortes de palavras e frases (neologismos, provérbios distorcidos, excertos do discurso do romance) que parecem flutuar e se desintegrar.  Simbolismo da "Mudez": Maina tem a boca coberta ou oculta pela sombra, simbolizando a sua "mudez" autoimposta e a opressão da voz feminina. Contudo, o texto que a compõe prova que a voz existe, mas está desmantelada e fragmentada, usada como resistência.  Cores: Tons de cinza, preto e sépia dominam sua figura, refletindo o ambiente opressor do Estado Novo e o tom introspectivo e melancólico de sua vida.  O Varão (Fernando Mendes e a Voz Dominante):  A Imagem Projetada: À esquerda de Maina, paira uma sombra ou projeção masculina, vestida de forma burguesa e formal (um fato dos anos 60). Esta figura representa Fernando Mendes, o filho, mas, por extensão, o discurso patriarcal dominante.  A Palavra Escrita/Falada: Esta figura masculina tem a boca aberta, como se estivesse a falar ou a confessar-se ininterruptamente (referência à longa confissão ao psicanalista), mas as palavras que saem da sua boca são caóticas e não chegam a tocar Maina, ilustrando o descompasso familiar.  Matilde (A Vaga e a Esperança de Ruptura):  O Reflexo Distorcido: No plano de fundo, mas visível, há um espelho ou uma superfície de água ondulada (a "Vaga"). No reflexo, aparece uma figura feminina mais jovem e etérea, mas também distorcida. Esta é Matilde, a neta.  Geração em Movimento: A distorção no reflexo sugere que a identidade da terceira geração ainda está em formação e é instável, mas o elemento água simboliza o movimento e a possibilidade de ruptura com as normas das gerações anteriores.  O Cenário e a Intertextualidade:  Fundo Lisboa Urbano: O fundo mescla elementos de uma Lisboa mais antiga e burguesa (janelas verdes, edifícios densos), o cenário do romance.  Intertextualidade: Elementos textuais, como epígrafes ou trechos de poemas, estão subtilmente inseridos nos tijolos e nas sombras, reforçando o caráter altamente intertextual e literário da prosa de Maria Velho da Costa.  A ilustração, em suma, usa o contraste visual (sombras vs. fragmentação textual) para representar a luta de Maina contra as normas sociais e linguísticas.

Introdução: O Experimentalismo Inovador de Maina Mendes

Publicado em 1969, Maina Mendes, o romance de estreia de Maria Velho da Costa, irrompeu no panorama literário português como um verdadeiro ato de transgressão. Não apenas pela temática ousada — a exploração da opressão e da busca de identidade feminina em um Portugal sob o Estado Novo — mas, principalmente, pelo seu estilo radicalmente experimental.

O livro é um manifesto de voz e forma, que funde o erudito e o popular, o português padrão e os regionalismos, construindo uma estilística própria que rompe com as convenções narrativas da época. Mais do que contar a história de sua protagonista, Maina Mendes desmantela a linguagem patriarcal, transformando o silêncio e a "mudez" da personagem em instrumentos de resistência e subversão. A obra é um ponto de viragem, anunciando o fervor criativo e feminista que culminaria em Novas Cartas Portuguesas (1972), coescrito por Maria Velho da Costa.

I. Estrutura e Estilo: A Fragmentação da Linguagem Opressora

A força de Maina Mendes reside inegavelmente na sua arquitetura formal, que espelha a fragmentação e o isolamento das personagens. Maria Velho da Costa utiliza um complexo jogo de vozes, registos e intertextualidade que desafia o leitor e a norma literária.

I.I. A Arquitetura Tripartida e a Sucessão de Gerações

O romance estrutura-se em três grandes partes, cada uma focada numa geração e numa estratégia de resistência:

  1. "A Mudez" (Maina Mendes): Centraliza-se na protagonista, explorando sua infância, juventude e o seu voluntário (e involuntário) silenciamento como forma de protesto contra a sociedade.

  2. "O Varão" (Fernando Mendes): Foca-se no filho de Maina, Fernando. Esta seção é marcada pelo discurso oral, revelada principalmente através de um extenso monólogo confessional de Fernando ao seu psicanalista. Este varão, o herdeiro masculino, carrega o peso das normas sociais e da alienação, culminando num trágico destino.

  3. "Vaga" (Matilde): Gira em torno de Matilde, a neta, cuja voz é apresentada de forma mais livre e exploratória. Representa uma possível esperança de superação das normas, embora a "vaga" sugira algo indefinido e em movimento constante.

I.II. O Experimentalismo Linguístico e a Oralidade

A prosa de Maria Velho da Costa é um festim de neologismos, desvios sintáticos e um uso exaustivo de referências culturais e epígrafes (de poesia, provérbios, etc.).

  • Ruptura com o Cânone: O texto quebra a linearidade, adotando fluxos de consciência e justaposições de discursos (político, popular, erudito), refletindo o caos interior das personagens.

  • O Dialeto e a Inovação: A autora incorpora giros linguísticos populares e influências do português literário do Brasil e dos crioulos africanos. Este trabalho minucioso com a língua é, em si, um ato político, demonstrando a riqueza e a maleabilidade do idioma para além das regras rígidas do regime.

II. O Simbolismo do Silêncio e a Condição Feminina

A temática central de Maina Mendes é a opressão da mulher em uma sociedade patriarcal. A protagonista, Maina, encontra no silêncio uma arma poderosa contra o discurso dominante.

II.I. A Mudez como Resistência Ativa

A mudez de Maina, especialmente na sua fase inicial, não é apenas um sinal de patologia ou repressão, mas sim uma escolha consciente de resistência.

  • Subversão do Discurso: Em um mundo onde a voz e a palavra pertencem ao homem e ao domínio público, o silêncio de Maina é uma recusa em participar do jogo. Ela se retira para um espaço interior, um ato de desobediência que lhe permite reverter a opressão.

  • A Abjeção e a Norma: A atitude de Maina a coloca na fronteira entre a sanidade e a loucura, entre a norma e a abjeção. Ao se recusar a comunicar segundo as regras, ela questiona a própria definição social de feminilidade e sanidade.

II.II. O Peso da Herança: Mães e Filhas

O romance expõe o ciclo de repetição e ruptura da performance de gênero ao longo das três gerações.

  • A Norma Feminina: Maina é forçada a cumprir a função social imposta à mulher (mãe, esposa, objeto de desejo), mas o faz de forma deslocada, mantendo-se sempre uma estranha no seu próprio papel.

  • O Fracasso Masculino: A seção de Fernando Mendes, o filho, revela que o sistema patriarcal também é destrutivo para o varão, que se torna um ser alienado, incapaz de lidar com a herança emocional e social de sua família e da nação. Sua tragédia (o suicídio) é o fracasso do modelo patriarcal.

III. Maina Mendes no Contexto Histórico e Literário

Para compreender a relevância de Maina Mendes, é essencial situá-lo no Portugal pré-25 de Abril de 1974.

III.I. O Último Fôlego do Estado Novo

O romance foi escrito e publicado sob o regime ditatorial do Estado Novo, um período de forte censura e repressão social.

  • A Condição da Mulher: Na época, a mulher era legalmente subjugada e confinada à esfera doméstica. A exploração da condição feminina por Maria Velho da Costa era, portanto, uma audaciosa crítica política e social.

  • Precursor do Feminismo: Juntamente com as obras de Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, Maina Mendes ajudou a pavimentar o caminho para o feminismo radical em Portugal, questionando as estruturas de poder que oprimiam o indivíduo.

III.II. Legado e Pós-Modernismo

O estilo fragmentado, a polifonia de vozes e a intertextualidade de Maina Mendes o colocam entre as obras precursoras do pós-modernismo e do experimentalismo na literatura portuguesa.

  • A Influência de Outras Literaturas: O trabalho de Maria Velho da Costa é frequentemente comparado a autores como James Joyce, Virginia Woolf e Guimarães Rosa, demonstrando um diálogo internacional com o que havia de mais inovador na prosa mundial.

IV. Perguntas Comuns sobre Maina Mendes

1. O que significa o título "Maina Mendes"?

"Maina" é o nome da protagonista, e "Mendes" é o apelido. O nome completo da personagem evoca uma sonoridade que tem sido interpretada por críticos como algo comum e, ao mesmo tempo, singular, refletindo a universalidade da opressão e a individualidade da resistência.

2. Qual é o papel do psicanalista na parte "O Varão"?

O psicanalista é uma figura silenciosa e passiva, um mero receptor do monólogo de Fernando Mendes. Este silêncio, em contraste com a mudez de Maina, simboliza a incapacidade das estruturas formais (como a psicanálise) de resolverem o sofrimento causado pela repressão social e familiar.

3. Qual é a relação de Maina Mendes com as "Novas Cartas Portuguesas"?

Maina Mendes é um precursor do movimento que levou à escrita de Novas Cartas Portuguesas (1972), o livro que ficou famoso pelo processo judicial movido pela censura contra as três autoras (Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno), as chamadas "Três Marias". Ambas as obras compartilham o foco na subversão da linguagem e na crítica radical à condição feminina.

Conclusão: Um Livro que Transformou a Escrita

Maina Mendes, de Maria Velho da Costa, é muito mais do que um romance; é um marco estético e político. Através de sua arquitetura inovadora e do uso do silêncio como arma, a obra conseguiu expressar a complexidade e o sofrimento da mulher portuguesa sob o jugo patriarcal. Ao desconstruir a linguagem dominante, Maria Velho da Costa abriu novas vias para a expressão literária, consolidando-se como uma das vozes mais singulares e essenciais das Letras de Língua Portuguesa. A leitura de Maina Mendes permanece crucial para quem deseja compreender a revolução formal e temática da literatura contemporânea em Portugal.

(*) Notas sobre a ilustração:

A ilustração tenta capturar a complexa estrutura e os temas centrais de Maina Mendes: a tensão entre a mulher silenciada e a voz masculina dominante, a fragmentação da identidade e o experimentalismo linguístico da obra, abrangendo as três gerações.

  1. Maina Mendes (O Silêncio e a Fragmentação):

    • A Figura Central: No centro, está a figura de Maina. Ela não está inteira, mas sim representada como uma silhueta fragmentada, feita de texto e sombras. Seu corpo é composto por recortes de palavras e frases (neologismos, provérbios distorcidos, excertos do discurso do romance) que parecem flutuar e se desintegrar.

    • Simbolismo da "Mudez": Maina tem a boca coberta ou oculta pela sombra, simbolizando a sua "mudez" autoimposta e a opressão da voz feminina. Contudo, o texto que a compõe prova que a voz existe, mas está desmantelada e fragmentada, usada como resistência.

    • Cores: Tons de cinza, preto e sépia dominam sua figura, refletindo o ambiente opressor do Estado Novo e o tom introspectivo e melancólico de sua vida.

  2. O Varão (Fernando Mendes e a Voz Dominante):

    • A Imagem Projetada: À esquerda de Maina, paira uma sombra ou projeção masculina, vestida de forma burguesa e formal (um fato dos anos 60). Esta figura representa Fernando Mendes, o filho, mas, por extensão, o discurso patriarcal dominante.

    • A Palavra Escrita/Falada: Esta figura masculina tem a boca aberta, como se estivesse a falar ou a confessar-se ininterruptamente (referência à longa confissão ao psicanalista), mas as palavras que saem da sua boca são caóticas e não chegam a tocar Maina, ilustrando o descompasso familiar.

  3. Matilde (A Vaga e a Esperança de Ruptura):

    • O Reflexo Distorcido: No plano de fundo, mas visível, há um espelho ou uma superfície de água ondulada (a "Vaga"). No reflexo, aparece uma figura feminina mais jovem e etérea, mas também distorcida. Esta é Matilde, a neta.

    • Geração em Movimento: A distorção no reflexo sugere que a identidade da terceira geração ainda está em formação e é instável, mas o elemento água simboliza o movimento e a possibilidade de ruptura com as normas das gerações anteriores.

  4. O Cenário e a Intertextualidade:

    • Fundo Lisboa Urbano: O fundo mescla elementos de uma Lisboa mais antiga e burguesa (janelas verdes, edifícios densos), o cenário do romance.

    • Intertextualidade: Elementos textuais, como epígrafes ou trechos de poemas, estão subtilmente inseridos nos tijolos e nas sombras, reforçando o caráter altamente intertextual e literário da prosa de Maria Velho da Costa.

A ilustração, em suma, usa o contraste visual (sombras vs. fragmentação textual) para representar a luta de Maina contra as normas sociais e linguísticas.

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