terça-feira, 14 de outubro de 2025

Pálpebras Costuradas: A Punição Alegórica da Inveja no Purgatório de A Divina Comédia

A imagem retrata uma cena na Segunda Cornija do Monte Purgatório, um terraço estreito e rochoso, sob uma luz mais suave do que a do Inferno, mas ainda severa, simbolizando a esperança e a dificuldade da purificação.  Cenário e Atmosfera A Rocha e a Luz: O fundo mostra a encosta íngreme da montanha, sugerindo a ascensão. A luz do céu é celestial e radiante, contrastando com o cinzento pálido e áspero da rocha onde os penitentes estão. Isso reflete a tensão entre o objetivo divino (o Paraíso) e a dura realidade da penitência.  Dante e Virgílio: Em um plano ligeiramente superior ou à margem, estão Dante (vestido de vermelho, simbolizando o homem pecador) e Virgílio (em azul ou branco, representando a Razão), observando os penitentes. Virgílio aponta para as almas com um gesto de instrução, guiando Dante na compreensão da justiça divina.  Os Penitentes (Os Invejosos) As Pálpebras Costuradas: O foco central são as almas dos invejosos. Estão em fila, ou agrupadas, encostadas na rocha, e o detalhe mais chocante e crucial é a punição: seus olhos estão costurados com um fio de arame ou metal (como um cadarço de sapato, segundo as descrições de alguns comentadores), tornando-os cegos. Este é o reflexo literal do seu pecado: eles usaram o olhar para ver com rancor o bem alheio, e agora lhes é negada a visão.  Postura e Vestes: As almas estão vestidas com mantos grosseiros e cinzentos, com os ombros curvados e as cabeças ligeiramente baixadas. Eles estão fisicamente apoiados uns nos outros ou encostados na rocha, obrigados à solidariedade e dependência mútua, a virtude contrária à inveja, que é o isolamento e o ódio ao próximo.  Lágrimas: Embora cegos, a expressão de sofrimento e arrependimento é visível nos seus rostos. É possível ver pequenos sulcos ou o brilho de lágrimas escorrendo sobre o fio que lhes sela os olhos, purificando a visão que lhes falhou em vida.  Símbolos Adicionais (Implícitos) Vozes Invisíveis: A cena é silenciosa visualmente, mas subentende-se que as almas estão a ouvir as vozes do açoite (exemplos de Caridade) e do freio (exemplos de Inveja castigada), a única forma de receberem instrução na sua cegueira.  A ilustração, portanto, capta a essência da justiça dantesca: a pena não é eterna, mas um processo doloroso de cura alegórica, forçando o invejoso a transformar seu olhar de malícia em um coração de caridade.

A Divina Comédia de Dante Alighieri transcende a literatura para se tornar um mapa da moralidade humana. Em sua jornada épica, o poeta florentino desenha um universo teológico e psicológico de complexidade ímpar, e é no Purgatório – o reino da esperança e da purificação – que encontramos algumas das mais poderosas alegorias sobre o pecado. Entre os sete terraços que espelham os pecados capitais, a punição dos invejosos, com as pálpebras costuradas, emerge como uma imagem de rigorosa e poética justiça divina, refletindo a essência destrutiva deste vício.

Introdução: O Purgatório – A Montanha da Redenção

O Purgatório, a segunda parte da trilogia dantesca, é estrutural e simbolicamente o oposto do Inferno. Enquanto o Inferno representa a irreversibilidade da escolha pelo Mal, o Purgatório é a montanha sagrada onde as almas, arrependidas em vida, expiam seus pecados para se tornarem dignas de ascender ao Paraíso.

Organizado em sete cornijas que correspondem aos sete pecados capitais – começando com o Orgulho no ponto mais baixo e culminando na Luxúria perto do Paraíso Terrestre –, cada estágio do Purgatório aplica uma pena que se relaciona diretamente com a natureza do pecado, servindo como uma purificação (ou flagelo) e um freio para as más inclinações. É na Segunda Cornija que Dante e seu guia, Virgílio, encontram a pena reservada aos invejosos.

A Segunda Cornija: O Terrível Preço de Olhar o Bem Alheio

O pecado da inveja (do latim invidia, que significa "olhar com maldade") é definido por Dante não apenas como a tristeza pelo bem ou sucesso alheio, mas também, e de forma crucial, como a alegria pelo infortúnio dos outros. É um vício que distorce a visão da alma, impedindo-a de apreciar as belezas eternas e focando-a apenas nos bens terrenos.

Na Segunda Cornija, a paisagem é árida e lívida, refletindo o caráter sombrio e estéril da inveja. As almas estão vestidas com mantos de cor cinzenta-escura, apoiadas umas nas outras contra a encosta rochosa – uma ironia cruel, pois em vida eram incapazes de demonstrar solidariedade ou apoio mútuo.

A Poética Punição: Pálpebras Costuradas

A pena física imposta aos invejosos é uma das mais memoráveis e alegoricamente perfeitas de toda A Divina Comédia: eles têm as pálpebras costuradas por um fio de arame.

  • A Cegueira Espiritual Manifesta: A punição é um espelho direto da natureza do pecado. Se a inveja nasce de um mau olhar – a incapacidade de ver a felicidade alheia sem rancor ou de fixar o olhar nos bens passageiros –, a justiça divina retira a capacidade de ver completamente. Os invejosos, que usaram os olhos para desejar o mal e se regozijar com a desgraça, são forçados a viver na escuridão, purificando a sua visão distorcida.

  • A Lição da Humildade: A cegueira temporária força as almas a confiarem umas nas outras, quebrando o isolamento causado pela inveja. Eles precisam se apoiar fisicamente, uma imagem de dependência mútua, obrigando-os a desenvolver a Caridade – a virtude oposta à inveja.

  • O Açoite (O Látego) e o Freio: Enquanto estão cegos, os invejosos ouvem vozes invisíveis que lhes proferem exemplos de caridade e amor fraterno (o açoite ou látigo), como o preceito de amar os inimigos. Em contraste, também ouvem o freio, exemplos bíblicos e mitológicos de inveja punida, como forma de manter sua atenção na purgação.

Guido del Duca e Sapia: Os Invejosos na Narrativa

Dante humaniza o castigo através do encontro com almas específicas. No Canto XIII do Purgatório, ele encontra Sapia de Siena, uma nobre que confessa ter sentido mais prazer ao ver a derrota de seus concidadãos gibelinos em batalha do que qualquer sucesso pessoal. Ela desejava o mal para os seus e se alegrava com o infortúnio alheio, a forma mais corrosiva da inveja.

Já no Canto XIV, Dante dialoga com Guido del Duca, um nobre da Romagna, que revela como o seu sangue ardia de inveja ao ver a felicidade de qualquer um. Guido usa o encontro para lamentar a decadência da sua região, atribuindo a miséria e a maldade da sua época à incapacidade dos homens de verem que "o vosso olhar só a terra mira" – ecoando o diagnóstico de Virgílio sobre a fixação nos bens materiais, que são finitos e, portanto, causam exclusão e inveja.

Perguntas Comuns sobre a Alegoria da Inveja

A complexidade de A Divina Comédia frequentemente suscita questões sobre o significado profundo das punições:

Qual é o significado alegórico do Purgatório de Dante?

O Purgatório representa a jornada da alma humana que busca a purificação dos seus vícios para alcançar a Graça Divina. É uma alegoria da emenda moral e do caminho da virtude que o homem deve seguir em vida.

Cada cornija representa a superação de um obstáculo moral. Ao subir o monte, Dante (o homem pecador) desaprende os pecados e aprende as virtudes contrárias. Ao final de cada purgação, um anjo apaga uma das sete letras "P" (de peccatum, pecado) que foram gravadas em sua testa por Catão de Útica, simbolizando que o pecado foi perdoado e a alma está mais leve para ascender.

Por que a punição da inveja é a cegueira?

A cegueira é a punição perfeita para a inveja porque o pecado é, fundamentalmente, uma cegueira espiritual. O invejoso está espiritualmente cego para:

  • A Beleza de Deus e a ordem divina que se manifesta no bem alheio.

  • A Caridade e o amor fraterno, vendo o próximo como um rival em vez de um irmão.

  • A Finitude dos Bens Terrenos, que são a causa da sua inveja.

Ao costurar as pálpebras, Dante força o penitente a usar os olhos da mente e a audição para se concentrar nas lições de amor e solidariedade, abrindo caminho para a verdadeira visão – a capacidade de ver o bem sem rancor.

Como a estrutura de Dante se relaciona com os Sete Pecados Capitais?

A estrutura do Purgatório segue a classificação de São Tomás de Aquino, baseada no Amor Deficiente, Excessivo ou Perverso.

  1. Amor Pervertido (Ódio ao Próximo): Orgulho, Inveja, Ira (Punições mais baixas e graves).

  2. Amor Deficiente (Amor Morno ao Bem): Preguiça.

  3. Amor Excessivo (Amor Desordenado aos Bens Terrenos): Avareza/Prodigalidade, Gula, Luxúria (Punições mais altas e menos graves).

A inveja, localizada no segundo nível, é um pecado de Amor Pervertido, ou seja, um amor que se manifesta como ódio ao próximo, daí a gravidade de sua punição.

Conclusão: O Olhar Purificado

A jornada de Dante pela Segunda Cornija é um lembrete vívido do poder destrutivo da inveja. O castigo dos invejosos, com as pálpebras costuradas, não é apenas uma imagem de horror medieval, mas uma profunda lição alegórica sobre a visão: para que a alma possa ver a Luz Eterna, deve primeiro purificar o olhar que se alegra com o mal alheio. O Purgatório de A Divina Comédia afirma que a verdadeira liberdade reside em desejar o bem do próximo e em utilizar os "olhos" do intelecto para contemplar as belezas imateriais e eternas.

(*) Notas sobre a ilustração:

A imagem retrata uma cena na Segunda Cornija do Monte Purgatório, um terraço estreito e rochoso, sob uma luz mais suave do que a do Inferno, mas ainda severa, simbolizando a esperança e a dificuldade da purificação.

Cenário e Atmosfera

  1. A Rocha e a Luz: O fundo mostra a encosta íngreme da montanha, sugerindo a ascensão. A luz do céu é celestial e radiante, contrastando com o cinzento pálido e áspero da rocha onde os penitentes estão. Isso reflete a tensão entre o objetivo divino (o Paraíso) e a dura realidade da penitência.

  2. Dante e Virgílio: Em um plano ligeiramente superior ou à margem, estão Dante (vestido de vermelho, simbolizando o homem pecador) e Virgílio (em azul ou branco, representando a Razão), observando os penitentes. Virgílio aponta para as almas com um gesto de instrução, guiando Dante na compreensão da justiça divina.

Os Penitentes (Os Invejosos)

  1. As Pálpebras Costuradas: O foco central são as almas dos invejosos. Estão em fila, ou agrupadas, encostadas na rocha, e o detalhe mais chocante e crucial é a punição: seus olhos estão costurados com um fio de arame ou metal (como um cadarço de sapato, segundo as descrições de alguns comentadores), tornando-os cegos. Este é o reflexo literal do seu pecado: eles usaram o olhar para ver com rancor o bem alheio, e agora lhes é negada a visão.

  2. Postura e Vestes: As almas estão vestidas com mantos grosseiros e cinzentos, com os ombros curvados e as cabeças ligeiramente baixadas. Eles estão fisicamente apoiados uns nos outros ou encostados na rocha, obrigados à solidariedade e dependência mútua, a virtude contrária à inveja, que é o isolamento e o ódio ao próximo.

  3. Lágrimas: Embora cegos, a expressão de sofrimento e arrependimento é visível nos seus rostos. É possível ver pequenos sulcos ou o brilho de lágrimas escorrendo sobre o fio que lhes sela os olhos, purificando a visão que lhes falhou em vida.

Símbolos Adicionais (Implícitos)

  • Vozes Invisíveis: A cena é silenciosa visualmente, mas subentende-se que as almas estão a ouvir as vozes do açoite (exemplos de Caridade) e do freio (exemplos de Inveja castigada), a única forma de receberem instrução na sua cegueira.

A ilustração, portanto, capta a essência da justiça dantesca: a pena não é eterna, mas um processo doloroso de cura alegórica, forçando o invejoso a transformar seu olhar de malícia em um coração de caridade.

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