domingo, 29 de maio de 2016

Letras de africanidade - Consciencialização

A ideia de “consciencialização”, pela qual Agostinho Neto anuncia em seu poema homônimo, reflete a necessidade da tomada de consciência em relação à opressão do colonizador e da condição de colonizado que precisa se reconhecer enquanto colonizado para, ao libertar-se da opressão e da condição de colonizado, reescrever a “história a ser contada”. Noutras palavras, o projeto de independência de Angola dependia da reconstrução da identidade do povo angolano que não excluía seu passado de povo subjulgado, ao mesmo tempo em que o reconhecimento desta identidade abria a oportunidade histórica de libertação nacional. Evidentemente, essa tomada de consciência passava pelo reconhecimento da “pele negra” e do fato de que “não eram portugueses” e, a partir do momento que esta identidade é reconhecida pela consciência, torna-se possível mudar o curso da história.

Porém, tomar Agostinho Neto como um marco na literatura de afirmação da identidade angolana, como se antes esta questão fosse silenciada ou inexistente, parece um tanto equivocada.

No conto Nga Muturi (1882), de Alfredo Troni, é justamente a questão da angolanidade e o mundo colonizador português que é o foco de tensão vivida pela personagem principal Nga Muturi. A protagonista foi em algum momento de sua infância escrava. Depois de se tornar rica e ascender socialmente, ela quer esquecer este passado, mas que sempre lhe volta à memória.

Filha de um branco, inicialmente, chamada de Nga Ndreza, foi separada da mãe e do irmão quando era pequena e enviada para Angola. Então, passa o tempo, ela se torna mucama e, depois, concubina do patrão, um muari, isto é, um homem branco. E, apesar de nunca se casarem, ela se torna viúva, tornando-se Nga Muturi, herdando “dois mil contos de réis fortes, fora a casa”. Ao ficar rica, Nga Muturi é invejada e obtém o respeito da sociedade.

Tudo isso se passa na sociedade crioula que, apesar da forma ser europeia, possuíam hábitos predominantemente africanos. Isso fica claro no aniversário do óbito, quando nas homenagens, além da missa católica, comemora-se também seguindo tradições africanas, com festa, danças, músicas e batuques.

Porém, a questão da identidade está em jogo e a ascensão social de Nga Muturi, de certo modo, escamoteia sua origem negra na sociedade crioula. Uma passagem que mostra “apagamento” da identidade angolana pode ser bem representada por essa passagem: “É uma boa cidadã, paga bem os impostos, e está agora tentando de amigar a Bebeca, que trata como filha, e já tem muitos pretendentes, mas só quer branco do putu para arranjar uma buxila”.

Em A menina Vitória (Quinaxixe, 1965), de Arnaldo Santos, a questão racial como uma distinção hierárquica entre colonizador e colonizado também é importante. O texto se passa nos anos de 1948 e inicia a narrativa chamando a atenção para a questão da pronúncia da língua portuguesa pelo angolano como marca dialetal que reflete uma transformação da sociedade, a saber, urbanizada. Assim, a sociedade crioula, tal como descrita no conto Nga Muturi, não mais existe.

Embora filho de Dona Angelina, uma mulata, Gigi “se podia considerar como um branco”, então os pais do menino Gigi resolvem transferi-lo de escola, para um colégio de elite, muito caro, no intuito de afastá-lo da influência dos criados e dos meninos negros, moradores dos musseques, que falam quimbundo.

Na nova escola, a sala de aula é um microcosmo do universo colonial e a “professora do 3ª. classe, a menina Vitória, era uma mulatinha fresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole. Renovava o pó de arroz nas faces sempre que tivesse um momento livre, e durante as aulas, gostava de mergulhar os dedos nos cabelos alourados e sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeiras filas”. A menina Vitória, para ser reconhecida numa sociedade hierarquizada racialmente, ela tem que parecer mais clara de fato. Quanto mais se parece com o colonizador, mais se consegue exercer o poder. Ela insiste em exercer o poder.

A professora muda de lugar Gigi, colocando-o no fundo da sala e ao lado de um menino muito escuro, o Matoso, o exemplo negativo da sala, a quem a menina Vitória tratava com desprezo, pelo fato de um dia ter-lhe respondido em quimbundo, e que vivia sempre muito calado. Porém, Gigi se identifica com o Matoso, ao mesmo tempo, que receia ser identificado com ele pela professora, por isso, se afasta do amigo. “Precisava de esconder o segredo ilegítimo do seu passado igual”. Ao mesmo tempo, quando Gigi percebe que ela também é mulata, passa a insultá-la intimamente, para preservar “a sua juventude ameaçada”.

Mas o tempo todo que ela desafia o Gigi, até que um incidente com o uso do pronome “tu” faz com que ela humilhe o menino na frente de todos e lhe aplica um corretivo com a palmatória. Revoltado, Gigi se pergunta indignado: “Mas porquê, porquê que ela, logo ela, o queira humilhar? Ela que tinha carapinha. Ela que era filha de uma negra, pensou com furor”.

No final do conto, ele se identifica e compreende o mutismo do Matoso, nada mais que a resposta e resistência a opressão colonial. Então ele chora, com olhos secos, assim como termina o poema de Agostinho Neto.

Se todavia no conto Menina Vitória o dialeto quimbundo falado nos musseques gerava conflito, em Luuanda, José Luandino Vieira, a língua do nativo é fator de identidade, não é a língua do colonizador, mas língua do colonizador apropriada, ao fixar uma sintaxe e uma morfologia baseada na oralidade, no jeito de se falar angolano. Diante do apartheid criado pelo colonizador português, a perspectiva é a dos musseques, habitados por negros, mestiços e brancos pobres. Mas muito mais que isso, há em José Luandino Vieira uma elaboração artística tendo em vista uma autonomia literária.

Diante do que foi exposto, o regime colonial português acabou por criar uma sociedade completamente dividida, assim como foi o apartheid na África do Sul, no qual o racismo e a segregação eram institucionalizados. A concentração de riqueza, evidentemente, ficava nas mãos das classes dominantes, brancas e de origem europeia. Para subjugar, explorar as colônias e evitar movimentos insurgentes de emancipação, não havia outro recurso senão o da violência. E Portugal não hesitou em empregá-lo. Neste sentido, ao se fundar uma literatura angolana, era preciso distinguir o que era português daquilo que era angolano, até mesmo como uma forma de resistência, e criar uma literatura de identidade nacional no sentido de uma angolanidade, pela qual o material colonial forneceu os pressupostos constitutivos.

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