A
ideia de “consciencialização”, pela qual Agostinho Neto anuncia em seu poema
homônimo, reflete a necessidade da tomada de consciência em relação à opressão
do colonizador e da condição de colonizado que precisa se reconhecer enquanto
colonizado para, ao libertar-se da opressão e da condição de colonizado,
reescrever a “história a ser contada”. Noutras palavras, o projeto de
independência de Angola dependia da reconstrução da identidade do povo angolano
que não excluía seu passado de povo subjulgado, ao mesmo tempo em que o
reconhecimento desta identidade abria a oportunidade histórica de libertação
nacional. Evidentemente, essa tomada de consciência passava pelo reconhecimento
da “pele negra” e do fato de que “não eram portugueses” e, a partir do momento
que esta identidade é reconhecida pela consciência, torna-se possível mudar o
curso da história.
Porém,
tomar Agostinho Neto como um marco na literatura de afirmação da identidade
angolana, como se antes esta questão fosse silenciada ou inexistente, parece um
tanto equivocada.
No
conto Nga Muturi (1882), de Alfredo Troni, é justamente a questão da angolanidade
e o mundo colonizador português que é o foco de tensão vivida pela personagem
principal Nga Muturi. A protagonista foi em algum momento de sua infância
escrava. Depois de se tornar rica e ascender socialmente, ela quer esquecer
este passado, mas que sempre lhe volta à memória.
Filha
de um branco, inicialmente, chamada de Nga Ndreza, foi separada da mãe e do
irmão quando era pequena e enviada para Angola. Então, passa o tempo, ela se
torna mucama e, depois, concubina do patrão, um muari, isto é, um homem branco.
E, apesar de nunca se casarem, ela se torna viúva, tornando-se Nga Muturi,
herdando “dois mil contos de réis fortes, fora a casa”. Ao ficar rica, Nga
Muturi é invejada e obtém o respeito da sociedade.
Tudo
isso se passa na sociedade crioula que, apesar da forma ser europeia, possuíam
hábitos predominantemente africanos. Isso fica claro no aniversário do óbito,
quando nas homenagens, além da missa católica, comemora-se também seguindo
tradições africanas, com festa, danças, músicas e batuques.
Porém,
a questão da identidade está em jogo e a ascensão social de Nga Muturi, de
certo modo, escamoteia sua origem negra na sociedade crioula. Uma passagem que
mostra “apagamento” da identidade angolana pode ser bem representada por essa
passagem: “É uma boa cidadã, paga bem os impostos, e está agora tentando de
amigar a Bebeca, que trata como filha, e já tem muitos pretendentes, mas só
quer branco do putu para arranjar uma buxila”.
Em
A menina Vitória (Quinaxixe, 1965), de Arnaldo Santos, a questão racial como
uma distinção hierárquica entre colonizador e colonizado também é importante. O
texto se passa nos anos de 1948 e inicia a narrativa chamando a atenção para a
questão da pronúncia da língua portuguesa pelo angolano como marca dialetal que
reflete uma transformação da sociedade, a saber, urbanizada. Assim, a sociedade
crioula, tal como descrita no conto Nga Muturi, não mais existe.
Embora
filho de Dona Angelina, uma mulata, Gigi “se podia considerar como um branco”,
então os pais do menino Gigi resolvem transferi-lo de escola, para um colégio
de elite, muito caro, no intuito de afastá-lo da influência dos criados e dos
meninos negros, moradores dos musseques, que falam quimbundo.
Na
nova escola, a sala de aula é um microcosmo do universo colonial e a
“professora do 3ª. classe, a menina Vitória, era uma mulatinha fresca e muito
empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole. Renovava o pó de arroz nas
faces sempre que tivesse um momento livre, e durante as aulas, gostava de
mergulhar os dedos nos cabelos alourados e sedosos de uns meninos que se
sentavam nas primeiras filas”. A menina Vitória, para ser reconhecida numa
sociedade hierarquizada racialmente, ela tem que parecer mais clara de fato.
Quanto mais se parece com o colonizador, mais se consegue exercer o poder. Ela
insiste em exercer o poder.
A
professora muda de lugar Gigi, colocando-o no fundo da sala e ao lado de um
menino muito escuro, o Matoso, o exemplo negativo da sala, a quem a menina
Vitória tratava com desprezo, pelo fato de um dia ter-lhe respondido em
quimbundo, e que vivia sempre muito calado. Porém, Gigi se identifica com o
Matoso, ao mesmo tempo, que receia ser identificado com ele pela professora,
por isso, se afasta do amigo. “Precisava de esconder o segredo ilegítimo do seu
passado igual”. Ao mesmo tempo, quando Gigi percebe que ela também é mulata,
passa a insultá-la intimamente, para preservar “a sua juventude ameaçada”.
Mas
o tempo todo que ela desafia o Gigi, até que um incidente com o uso do pronome
“tu” faz com que ela humilhe o menino na frente de todos e lhe aplica um
corretivo com a palmatória. Revoltado, Gigi se pergunta indignado: “Mas porquê,
porquê que ela, logo ela, o queira humilhar? Ela que tinha carapinha. Ela que
era filha de uma negra, pensou com furor”.
No
final do conto, ele se identifica e compreende o mutismo do Matoso, nada mais
que a resposta e resistência a opressão colonial. Então ele chora, com olhos
secos, assim como termina o poema de Agostinho Neto.
Se
todavia no conto Menina Vitória o dialeto quimbundo falado nos musseques gerava
conflito, em Luuanda, José Luandino Vieira, a língua do nativo é fator de
identidade, não é a língua do colonizador, mas língua do colonizador
apropriada, ao fixar uma sintaxe e uma morfologia baseada na oralidade, no jeito
de se falar angolano. Diante do apartheid criado pelo colonizador português, a
perspectiva é a dos musseques, habitados por negros, mestiços e brancos pobres.
Mas muito mais que isso, há em José Luandino Vieira uma elaboração artística
tendo em vista uma autonomia literária.
Diante
do que foi exposto, o regime colonial português acabou por criar uma sociedade
completamente dividida, assim como foi o apartheid na África do Sul, no qual o
racismo e a segregação eram institucionalizados. A concentração de riqueza,
evidentemente, ficava nas mãos das classes dominantes, brancas e de origem
europeia. Para subjugar, explorar as colônias e evitar movimentos insurgentes
de emancipação, não havia outro recurso senão o da violência. E Portugal não
hesitou em empregá-lo. Neste sentido, ao se fundar uma literatura angolana, era
preciso distinguir o que era português daquilo que era angolano, até mesmo como
uma forma de resistência, e criar uma literatura de identidade nacional no
sentido de uma angolanidade, pela qual o material colonial forneceu os
pressupostos constitutivos.
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