sábado, 25 de janeiro de 2020

Hinduísmo - Série Religiões

O hinduísmo ou bramanismo surgiu na Índia por volta de 1200 a.C., tendo origem em antigos livros de hinos, orações e ensinamentos morais, considerados sagrados e denominados Vedas.

Mais do que uma religião, é um conjunto de práticas e crenças representado por normas de vida muito variadas, às vezes, até contraditórias, e relacionadas à fé, filosofia, natureza, mitologia e às crendices populares.

Sadhu
O hinduísmo se modificou constantemente ao longo dos séculos. Nos seus primórdios, a Criação era considerada como resultado de um grande sacrifício e, portanto, a salvação estava diretamente associada ao cumprimento de determinados sacrifícios, que tinham grande importância. Mais tarde, foi concebida a doutrina da transmigração da alma, com base na qual se compreende a vida, comparada a um rio que nunca acaba e que se manifesta em infinitas reencarnações. Durante as sucessivas reencarnações, a alma se purifica de todas as culpas e alcança a beatitude eterna do Nirvana. Num terceiro período, o hinduísmo ensinava que através da penitência, do jejum, da vigília e de práticas meditativas e contemplativas se podia alcançar a libertação das culpas e dos laços que atam o espírito às coisas materiais e exteriores.

De um modo geral, sua doutrina se divide em quatro princípios fundantes:

- Fé viva nos Veda como fonte de verdade infalível.

- Fé no Karma Sansara – reencarnação das almas.

- Fé no Mukti – libertação do indivíduo humano do ciclo de reencarnação.

- Sistema de castas como inviolável disposição social imposta pela lei suprema que regula o universo.

A vaca representa o último estágio da peregrinação da alma no mundo, antes de atingir o Nirvana. É considerada sagrada porque alimenta com leite os devotos em suas peregrinações. Comer carne de vaca acarreta punição gravíssima, expressa numa temporada no inferno definida pelo período de tempo compatível aos pelos de uma vaca.

Brahma
Dentre as várias divindades do hinduísmo, cabe destacar Brahma, pelo qual a raiz “brah” significa crescimento. Nos antigos Vedas, a palavra indicava, principalmente, orações e sacrifícios dirigidos aos deuses. Mais tarde, passou a designar os sacerdotes que executavam os ritos sagrados e, depois, as fórmulas mágicas dos livros. Enfim, a palavra passou a designar a personificação masculina e paterna do eterno Absoluto, origem de todas as coisas e criador do universo. Para representar sua onipotência, Brahma possui vários rostos e quatro braços, estando presente em todos os seres, coisas e animais. Por isso, o hinduísmo prescreve abluções nos rios sagrados e a abstenção do consumo de carne, pela qual conteria parte da divindade. Com o passar do tempo, juntaram-se a Brahma outras duas divindades, Vishnu, divindade solar, que governa as coisas criadas, e Shiva, o destruidor, que governa a água e o fogo.

Socialmente, o hinduísmo prega o respeito altruísta por todas as pessoas e também a não-violência. Na sua escala de valores, idosos e ascetas, chamados Sadhus, são muito venerados. Com relação ao sistema de sociedade de casta, desde tempos mais remotos, os representantes das classes dominantes foram chamados de brâmanes, os quais difundiram a crença conforme a qual a Divindade teria dividido o povo em quatro grupos sociais diferentes e separados hierarquicamente. Segundo essa crença, a casta dos sacerdotes ou brâmanes teria saído da cabeça de Brahma; a casta ksatrya, guerreiros e governadores, dos braços da divindade; a vaisya, formada por agricultores, pastores e comerciantes, do ventre ou da coxa; os sudra ou servos, dos pés. Os que não tinham origem no corpo do deus eram considerados impuros e, como tais, intocáveis e imundos, sendo párias denominados de shudras, palavra que significa “chão” ou “em pedaços”. O termo dalit, popularizado no Brasil pela novela Caminho das Índias, surgiu apenas no final do século XIX. Dentro da doutrina hinduísta, misturar ou confundir elementos de castas diferentes é considerado sacrilégio, cabendo punição severa.

Em 1950, a Índia aboliu o sistema de casta.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Fats Domino - Pioneiros do rock'n'roll

Fats Domino, nome artístico de Antoine Dominique Domino Jr., nasceu em 1928 na lendária e jazzística Nova Orleans, numa numerosa família de músicos. Curiosamente, pelo fato de sua família ser de origem crioulo francês da Luisiana, antiga Nova França, ex-colônia francesa na América do Norte, sua língua materna era o francês. Aos seis anos de idade Domino aprendeu a tocar piano e, aos dez anos, passou a se apresentar acompanhado por Billy Diamond, um baixista, que o batizou de Fats ("Banha"). Mais tarde, teve de abandonar a escola, sendo vendedor de sorvete. Depois trabalhou numa fábrica de molas, onde sofreu um acidente de trabalho: uma pilha de estrados caiu sobre ele, ferindo a tal ponto suas mãos, que os médicos disseram que ele não poderia mais tocar piano. Domino não se abalou, e, após uma longa luta, voltou a se apresentar nos palcos da cidade.

Fats Domino
Domino foi descoberto em 1948, por Lew Chudd, da Imperial Records, quando cobrava três dólares por semana para realizar suas apresentações. Mas sua carreira começou de fato em 1949, quando compôs a música “The Fat Man”, em parceria com Dave Bartholomew, e que é considerada por muitos como a primeira gravação de um rock’n’roll. Dave Bartholomew se tornaria seu parceiro de muitas composições de sucesso.

Suas composições faziam muitas referências à música folclórica de Nova Orleans, como a tradicional “Eh, La Bas”, na qual “Hay, La Bas Boogie” de Fats Domino é notável. La Bas era originalmente um deus vudu da sorte que tal como na umbanda foi identificado com um santo, no caso, o São Pedro da católica Louisiana francesa. A canção “The Fat Man” foi a primeira música de rock’n’roll a vender mais de um milhão de cópias e “Every Night About This Time” também entrou nas paradas de R&B da época.

Mas Fats Domino estourou como astro do rock’n’roll somente em 1955, quando sua música “Ain't That A Shame” foi gravada pelo artista branco Pat Boone, alcançando o primeiro lugar nas paradas de sucesso – a versão de Domino ficou na décima posição. Outro sucesso de Fats Domino, “I'm Walkin”, foi gravado por Ricky Nelson e outras músicas foram gravadas por artistas como Joe Turner e Lloyd Price.

Em sua longa carreira, Fats Domino foi tão versátil que fez cover de músicas muito variadas, desde canções antigas, como “Jambalaya (On The Bayou)” e “Red Sails In The Sunset”, até "Lady Madonna", dos Beatles.

Em 1957, Fats Domino estrelou cantando “Blue Monday” em um filme que muitos consideram o melhor filme de rock’n’roll de todos os tempos: The Girl Can't Can't It. Ele ainda atuou em outros filmes do cinema, como Shake, Rattle and Roll, The Big Beat e Jamboree.

Em 1986, Fats Domino entrou mais do que merecidamente para o Hall da Fama do Rock. Não há a menor dúvida, Fats Domino é simplesmente um dos inventores do rock’n’roll!!!

Postagens relacionadas:



terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Joker: porque você quer ser o Coringa

Gotham City não é uma alegoria do mundo moderno; é a vida que se tornou parecida com uma história em quadrinhos


Por Jean Pires de Azevedo Gonçalves

Chorar com os que choram alivia
um pouco, mas ter o sofrimento
transformado em piada é morrer duas vezes.
(Shakespeare)



Avesso a enlatados da indústria cultural como a série Star Wars, Marvel, DC, entre outros do gênero, esta crítica sobre o filme Coringa não deixa de me surpreender. Jamais achei que um dia escreveria uma resenha sobre um filme inspirado em histórias em quadrinhos! Paguei a língua, como se costuma dizer. Em meio à polêmica gerada pela estreia do Coringa, a qual estimulou muitos debates entre amigos e na internet, envolvendo pessoas a quem respeito, muito contrariado convenci a mim mesmo de que deveria assistir o filme. Há outro fator também, menos abonador: neste ano, deixei o cabelo crescer e muita gente me achou parecido com o Coringa. Confesso, fiquei curioso. Ainda assim relutei muito e isso explica esta crítica tardia, com o filme fora de cartaz. Mas fica valendo para o Coringa 2! Minha relutância tem outro motivo também. Na verdade, eu prefiro as páginas de um livro do que a película do cinema. Se já não me é muito animador sair de casa para ir ao cinema, imagine então escrever sobre um assunto do qual não domino. No entanto, como é impossível a alguém que nasceu a partir do século XX ignorar a sétima arte, eu, mesmo que sem querer, acabei por assistir e conhecer quase todos os grandes clássicos do cinema, sem contar os inúmeros filmes de qualidade discutível que vi passar na Sessão da Tarde, Corujão, Tela Quente etc. De certa forma, isso me autoriza, mesmo sem ser crítico de cinema, a escrever sobre um filme como o Coringa, já que, assim como futebol (e eu não entendo nada de futebol mas dou meus pitacos), de cinema todo mundo também entende um pouco.

Aproveitando a estadia de uma sobrinha de 16 anos em casa, eu a convidei para assistir o Coringa, em meio a protestos de minha mãe que já havia assistido o filme e não recomendava para menores. Não adiantou, a adolescente disse que ia assistir de qualquer jeito uma hora ou outra no computador. Em tempos de internet, o que não tem remédio, remediado está! E assim fomos assistir o Coringa.

Retrato a óleo de Willian Shakespeare.
William Shakespeare
A caminho do cinema, conversávamos sobre se ela me emprestaria uma edição dela de Assim falou Zaratustra, em história em quadrinhos, e, já que falávamos nisso, achei conveniente relacionar o filme Coringa à literatura e acabei por mencionar Tito Andrônico como um tipo de Coringa shakespeareano (a propósito, o Coringa se comparado a essa peça é um gibizinho infantil). Comentei que, na época de Shakespeare, condenados eram executados publicamente, às vezes, sob tortura, atraindo uma multidão de curiosos acostumados a esses “espetáculos” tenebrosos, e por isso uma peça de teatro violenta não devia chocar tanto assim um britânico da era elisabetana. Uma coisa leva a outra e eu levei a coisa para a Roma Antiga. Lá também as pessoas se divertiam com lutas mortais de gladiadores ou pessoas (geralmente cristãos) jogadas vivas para serem devoradas por leões ferozes. Depois voltei ao Brasil e, recordando o romance Migo, de Darcy Ribeiro, relatei a execução de Felipe dos Santos Freire. O proto-inconfidente, depois de enforcado, teve braços e pernas amarrados a quatro cavalos que, correndo cada um para um lado, desmembraram seu corpo em pedaços. Sem dúvida, exemplos terríveis da crueldade humana institucionalizada. Desde Freud, no entanto, instintos assassinos do comportamento humano têm sido sublimados pela mágica dos estúdios de Hollywood.

Mulher sendo punida e mergulhada num rio no século XVI.
Mulher condenada no séc. XVI
Essa viagem mental pelo tempo e espaço servia de expediente para atenuar eventuais cenas de violência tão alarmadas pelos críticos do Coringa. Muito barulho por nada! O filme do Coringa não é nem mais nem menos violento que centenas de filmes que são lançados todos os anos pela indústria cinematográfica. Porém, a repercussão lançada sobre Coringa é sinal de que o filme é representativo de nossa época e, por isso, merece um comentário mais cuidadoso.

O Coringa não é um filme que pode ser analisado em si mesmo sob a perspectiva da arte pela arte. E este é o seu grande trunfo. O seu enredo chama para um dialogo que sai da tela de cinema e fala diretamente sobre a vida cotidiana das grandes cidades modernas. A minha experiência ao assistir o Coringa tornou isso ainda mais dramático, pois, como um prolongamento de um filme 3D, tive que dividir as cenas do filme com um incidente embaraçoso que se passava dentro da sala de cinema, e que, de certo modo, ilustrava com um fato real o que a ficção apenas sugeria. Logo, logo, vou relatar o que aconteceu. Antes vamos passar primeiro por alguns comentários estéticos acerca do filme Coringa no que tange aos elementos especificamente cinematográficos.

Na minha opinião, o Coringa não é um Laranja Mecânica, mas me surpreendeu e devo admitir que é um bom filme. Sua novidade é retratar um tema pesado há muito explorado pela cinematografia no universo raso dos filmes do gênero HQ. Disso deriva também todos os seus méritos e as suas limitações, tais como a total liberdade dos produtores para criar um personagem fascinante sem precisar cumprir todos os requisitos da verossimilhança. Portanto, se de um lado o filme não pode se aprofundar muito por causa de sua ambiguidade inerente, já que deve atender às expectativas de um público de adolescentes e de adultos infantilizados acostumados a consumir todo tipo de “fast-food” da indústria do entretenimento; por outro, permite explorar o tema com as virtudes de um realismo fantástico que supera os limites estreitos do gênero referido. Os pontos positivos ficam por conta da fotografia, do figurino, da trilha sonora, do enredo e da interpretação do ator Joaquin Phoenix (e claro, Robert de Niro, como sempre) – não é o caso, mas, devemos sempre tomar cuidado com personagens caricatos que não são garantia de boa atuação. Já a narrativa é envolvente e eficaz ao cumprir o propósito de suscitar uma identificação imediata do espectador com o personagem protagonista. É verdade que o Coringa não escapa muito aos estereótipos vulgares dos personagens malucos retratados por Hollywood; no entanto, acrescenta pelo tipo híbrido, mental e fisicamente frágil, um tanto andrógeno, uma humanidade inusitada a um vilão de HQ. Além disso, há uma inevitável glamorização do vilão, bastante clara nas cenas apoteóticas do Coringa, como quando ele dança na escadaria ou na utilização de recursos consagrados pelas técnicas do cinema, como, por exemplo, tomadas em panorâmica pelas quais o personagem entra em câmera lenta ao fundo e caminha em direção à tela, altivo, triunfante, transmitindo sensação de poder. Infelizmente o filme não pode evitar alguns clichês desnecessários, como a cena em que o Coringa foge de dois policiais e é atropelado por um taxi, rola pelo para-brisa do carro, cai no asfalto e continua a fuga. Outro aspecto não muito original, é a tentativa de deixar no ar um possível parentesco entre Coringa e Batman, algo que me lembrou o vínculo de pai e filho ligando Darth Vader e Luke Skywalker. Ambos seriam meios-irmãos e filhos de Thomas Weyne, um magnata inescrupuloso e com pretensões políticas.

Mulher fantasiada de Coringa

Feitas essas considerações “técnicas” um tanto questionáveis, pois feitas por um leigo no assunto, insisto que o fundamental no Coringa é a sua interlocução com a realidade que nos cerca. Exatamente, a realidade que está bem à nossa volta. E aqui eu me sinto mais à vontade para escrever minha crítica. Talvez você se recorde do que eu disse a pouco sobre um incidente ocorrido na sessão de cinema e que vai nos servir de “exemplo ilustrativo” para dar início à minha interpretação do filme. Então vamos lá. Bem à minha frente, estavam sentadas duas mulheres e no intervalo entre elas um banco vazio. Para a minha irritação, cada uma delas segurava um balde enorme de pipoca que era orgulhosamente devorado, a julgar pelo barulho e o enorme volume movediço das bochechas, instigando em mim a seguinte ponderação: “O que que eu estou fazendo aqui?!!!” Não posso ser injusto com elas também. Na verdade, toda a sala de cinema mastigava provocadoramente baldes e mais baldes de pipoca! “Vocês vieram aqui para assistir o filme ou comer pipoca?!!!”; eu me remoia por dentro. O insuportável triturar coletivo de mandíbulas mastigadoras só cessou quando o Coringa teve início. Quer dizer, um croc croc remanescente aqui e ali perdurou ainda filme adentro. Confesso que me dei por satisfeito, porque, a julgar pelo tamanho dos baldes, pensei que o filme ia acabar e ainda ia sobrar pipoca. Enquanto uma calmaria tomava conta da sala de cinema, na tela o Coringa sacava um revólver e atirava em três homens dentro de um vagão no metrô. Cena chocante! Dois deles caem baleados enquanto um tenta fugir pela escadaria da estação mas é alvejado pelas costas. C’est fini! Suspirei longamente, depois de ter prendido a respiração. Um remexer inesperado me fez descobrir que o assento do meio entre as duas mulheres não estava vazio. Lá do meio, pulou assustada uma menina minúscula, com idade entre quatro e seis anos, inclinando seu corpo para frente e lançando um olhar angustiado para a mãe. Daí para frente, a criança não parou mais. A certa altura, foi para o colo da mãe. Voltou com um smartphone ligado. Sem se importar muito com a não permissão de celulares ligados no cinema, a mãe tentava distraí-la. Bom, não seria eu a reclamar da luz do aparelho, que ofuscava minha vista. A menina já vivenciava uma sessão de tortura psicológica e longe de mim tornar aquele momento ainda mais assustador com um gentil “você poderia desligar o telefone celular, por favor”. No entanto, o expediente da mãe se revelou infrutífero e a menina não conseguia despregar os olhos da tela de cinema a cada cena horripilante envolvendo o Coringa. Ela resmungava um lamento incompreensível. Queria ir embora; voltar para casa. Pediu para ir no banheiro. Teve sorte, porque na sua ausência o Coringa enfia uma tesoura no pescoço de um homem e estraçalha a cabeça dele contra a parede. As duas voltam em seguida. Coincidência ou não, a menina passou a ter um acesso de tosse incessante, enquanto o Coringa ria compulsivamente. Outra vez, ela se levanta e passa a perambular a esmo pela sala do cinema, talvez, perdida, a procura de uma saída. No entanto, a mãe e a amiga permaneciam sentadas, imóveis, impassíveis. A situação por si só escandalosa obrigou a mãe a se levantar e levar a menina novamente para o banheiro. Parece até que um anjo tirou elas dali, porque saíram bem no momento em que Coringa atira com um revólver contra a cabeça de um apresentador de talk show. Instante depois, a menina volta com um andar cambaleante, seguida pela mãe, e ambas retomam os seus lugares. Ironia ou coisas do acaso, o anjo não poupou a criança de presenciar o Coringa sufocar sua própria mãe. E nessa toada, a menina tossia, tossia, tossia, obstinadamente, tossia, até o filme acabar. Cortinas fechadas, pensei: “Essa menina vai ficar traumatizada, vai ter pesadelos à noite, vai ficar com medo de palhaço por um bom tempo”.

E aí entra o Coringa. A insistência daquelas duas mulheres em deixar a criança na sala de cinema a despeito de todo mal estar da menina começou a me incomodar e despertar em mim o desejo de intervir na situação. Eu me imaginei chamando a atenção delas com um leve sorriso constrangido e, muito educado, informá-las amavelmente que o filme do Coringa não é para crianças. Imaginei em seguida que poderia receber uma resposta do tipo: “A educação da minha filha não é da sua conta” (semelhantemente ao que ocorrera numa das cenas do filme Coringa). Gentileza não ia adiantar. Além disso, eu estava, até mesmo fisicamente, mais para Coringa do que Clark Kent. Então eu me imaginei agarrando as duas mulheres pelos cabelos, arrastando-as pela sala de cinema e, na entrada principal, eu me vi enxotando a pontapés aquelas duas degeneradas sem antes adverti-las: “Nunca mais façam isso!” Alguém precisava salvar aquela pobre criança de sua própria mãe! Reconsiderei a situação e, obviamente, me coloquei no meu devido lugar. Não tenho os superpoderes de um herói ou mesmo de um vilão como o Coringa para sair por aí dando lições às pessoas. Eu tive que aguentar tudo calado.

Pipoca com ingressos de cinema.

São essas pequenas violências do dia a dia que vão minando a gente por dentro e nos faz olhar com simpatia um personagem como o Coringa. A cidade de Gotham é uma metáfora das grandes metrópoles: uma selva de pedra. Nas cidades modernas, a única sociabilidade possível é a do dinheiro-mercadoria e, daí, quase todas as relações pessoais se reduzem ao contato indireto e impessoal mediado sempre pela compra e venda de objetos. Fomos transformados em autômatos, enclausurados em nosso mundinho particular apesar de estarmos amontoados no meio de uma multidão compacta. A indiferença é total, no entanto. Alienados de nosso ser social, de nossa essência, perdemos o dom da linguagem e falamos com empurrões e pisões. Licença, obrigado, desculpa foram banidos do nosso dicionário coletivo. O mundo urbano se transformou numa realidade humana estranhamente desumana, cuja única lei é a do cada um por si e todos contra todos. O outro é apenas um obstáculo que deve ser ultrapassado, suprimido, explorado. A massa de trabalhadores robotizados correndo desesperada pelas ruas e galerias do metrô apenas reatualiza sob outras aparências a relação senhor-escravo. Nada de novo na história do mundo! A paisagem urbana também revela contradições agudas. Enquanto alguns passeiam em carros importados caríssimos, muitos milhares de miseráveis famintos imploram por migalhas mesquinhamente cedidas. Ao lado de mansões luxuosas, colchões e caixotes de papelão espalhados pelas ruas servem de abrigo durante o frio inverno. Esmagados pelas contradições: nós!

Gotham City à noite e símbolo do Batman nas nuvens.

Em Gotham City, assim como em São Paulo, qualquer um é invisível. Somos massacrados diariamente por um cotidiano brutal. Estamos todos estressados, nervosos, uma pilha de nervos, vomitando ódio para tudo quanto é lado. É só andar pelas ruas, para levar ao menos um desaforo para casa todos os dias. Nunca fomos tão deseducados, tão ignorantes, tão orgulhosamente boçais, tão individualistas, tão antipáticos, tão desrespeitosos, tão egoístas, tão agressivos, tão grosseiros, tão bestiais; numa palavra, tão cafajestes! É o canalha que senta no banco preferencial e finge que está dormindo para não ceder lugar; é a sem-noção que para bem na frente da escada rolante para responder o whatsapp pouco se importando com a multidão que quer passar e se aglomera atrás; é um sujeitinho desprezível que esbarra em você de propósito na calçada só para se sentir superior; o cidadão de bem que para o carro bem em cima da faixa de pedestre ou passa no sinal vermelho; o almofadinha que fura fila ou o apressadinho impaciente que quer passar por cima de você e pisa no seu pé... Enfim, a lista é longa. Poderia enumerar aqui casos e mais casos mas um que eu presenciei é bastante eloquente. Certa vez, na estação do metrô da Consolação, vi duas mulheres que caminhavam conversando pela faixa reservada para deficientes visuais seguirem em rota de colisão com um cego que vinha vindo no sentido oposto. Não deu outra, o homem foi atropelado pelas duas e saiu rodopiando feito um pião, só não caiu por sorte. Ah, você achou que as mulheres pararam e acudiram o homem com mil pedidos de desculpas? Que nada! Elas continuaram conversando e rindo como se nada tivesse acontecido. Ora, diante de tudo isso, a vontade que a gente tem quando está pagando alguma compra no caixa do supermercado e alguém empurra o carrinho em cima como se você não existisse é de simplesmente dar uns bons bufetes na cara dele e gritar: “Você não está me vendo aqui, não?!!!” Vontade que obviamente não se concretiza, não apenas por temor à punição certa, mas também porque um freio moral e emocional nos impede de ir em frente: a culpa. Mesmo reagindo, sentimos remorso quando passamos da conta. Uma boa índole, forjada por valores humanistas, esboça no máximo um franzir de testa e, mais tarde, pode deitar a cabeça no travesseiro e dormir com a consciência limpa. Todavia, os jornais e noticiários da TV são inundados todos os dias com reportagens sobre crimes muitas vezes provocados por motivos banais. O fato empírico demonstra que há na mente humana um ponto crítico que não pode ser ultrapassado. Ultrapassar esse ponto pode resultar num descontrole de consequências inesperadas!

Todo santo dia, engolimos ofensas e presenciamos coisas que afetam nossa sensibilidade, no supermercado, no metrô, na rua, no ônibus, no restaurante, no shopping Center, no cinema... e ficamos a um triz de explodir. Ora, não é essa a justificativa do Coringa quando confessa o assassinato dos três jovens no metrô ao apresentador do programa de talk show?

“Minha semana tem sido difícil desde que eu matei aqueles três investidores... Eu matei aqueles caras porque eles eram péssimos... Todo mundo é péssimo hoje em dia. É o que basta para a gente enlouquecer... Ah, por que tá todo mundo tão preocupado com esses caras? Se fosse eu morrendo na calçada, vocês passariam por cima de mim. Passo todo dia por vocês e vocês não ligam pra mim. Mas, esses caras, só porque o Thomas Wayne foi chorar por eles na TV! (...) Por acaso, você entrevistador sai do estúdio? As pessoas só gritam e berram umas com as outras. Ninguém nunca é educado! Ninguém nunca pensa como é estar no lugar do outro” (Coringa).

A representação ficcional do Coringa realiza os pensamentos que nunca confessamos, nossos desejos mais secretos. De certa forma, saímos do cinema em estado de catarse, purificados. O Coringa é um herói. Ou melhor, o Coringa inaugura uma nova categoria de herói: o antivilão. O vilão que vem nos salvar! Não é como Raskólnikov, a expressão mais bem acabada do anti-herói, que deve se redimir pelo amor e inspirar pelo exemplo edificante. Não, o Coringa é um salvador às avessas que, sem querer corrigir o mundo, corrige através da maldade. Pois não há saída: num mundo onde todos são maus, só é possível fazer o bem com o mal. O Coringa, a carta mais alta do baralho, é também a mais versátil, o trunfo na manga, a cartada final. Pela força, ele vai mostrar como é estar no lugar do outro.

Carta do baralho.
Coringa
O Coringa cruza todos os dias com pessoas insensíveis, cruéis, truculentas, odiosas. Sofre com a falta de empatia generalizada e inerente à dinâmica sociológica de Gotham City – ou de uma cidade grande como São Paulo. Realmente, a maioria de nós não é psicopata, individualmente, mas o que o Coringa quer nos dizer é que agimos coletivamente como psicopatas. E, numa sociedade perversa, o herói só poderia ser um psicopata.

O escandaloso em tudo isso é que o Coringa não é um psicopata, ou pelo menos não no sentido preciso do termo. O Coringa é, para usar um jargão da psicologia, um empata, alguém que realmente se importa em estar no lugar do outro. A falta de empatia é a principal característica do transtorno de personalidade, conhecido vulgarmente como psicopatia. Deveríamos então nos perguntar sobre a verdadeira natureza do Coringa, diante de suas justificativas. Não seria ele um psicopata dissimulando empatia? Lobo em pele de cordeiro? “Eu cansei de fingir”, revela ao apresentador de TV. Mas como fingir por tanto tempo? Fingir a vida inteira? Fingir a dor que deveras sente? Como acreditar no Coringa, se para o apresentador ele diz que matou os três rapazes porque eles cantavam mal – “cantar mal pode custar vidas” – quando todos nós sabemos que eles assediavam uma moça e depois passaram a agredi-lo violentamente. Um psicopata não sente culpa ou remorso, não tem motivo ou inventa pretexto para justificar suas ações perversas. O Coringa, não. Ele tem motivos. Muitos. Para melhor entendê-los, é preciso saber quem está por trás da persona do Coringa. Encontramos Arthur Fleck.

Homem vestido de bobo da corte.
Bufão
Arthur é homem branco, de meia idade e, para usar um termo da cultura estadunidense, é um loser, um perdedor. Sabemos que psicopatas são muito bem sucedidos num ambiente de competitividade como o mercado financeiro ou empresarial, ascendendo a posições de destaque ou mesmo de chefia. Um perdedor, pela própria essência, não suporta a concorrência, talvez, por excesso de escrúpulos. Arthur fracassou ou recusou o script pressuposto na cultura ocidental determinado pela constituição da família nuclear economicamente produtiva, que, por óbvio, implica o abandono da casa dos pais. Ao contrário, ele mora com a mãe e cuida dela. Sua profissão, palhaço, reflete sua vocação. O palhaço é o bobo da corte, o bufão que ninguém leva a sério. Em todos os tempos, o palhaço sintetiza o arquétipo da ingenuidade. É infantil, bonachão, espontâneo. Arthur pode ser um péssimo comediante de stand up – humor malicioso para adulto – mas é um excelente palhaço, como comprovam sua linguagem gestual e dança marcante. A profissão de palhaço supõe um domínio de certas técnicas corporais e verbais que quando bem executadas provocam o riso por meio de uma sintonia imediata com o público espectador, geralmente, crianças. Fazer rir é uma qualidade altruísta e, de certo modo, benevolente, como demonstram estudos médicos relacionando bom humor e melhora dos sistemas respiratório, cardiovascular e imunológico, entre outros benefícios para a saúde. Numa das cenas mais emblemáticas do filme, Arthur é um doutor da alegria e se apresenta para crianças em um hospital. Mas na triste Gotham City, o palhaço é um pária (e todos os habitantes são “tratados” como palhaços). Afetivamente, Arthur também não é bem-sucedido. Embora seu romance com Sophie seja uma idealização, ele se apaixonou por uma mulher negra e mãe solteira, sem se preocupar com preconceitos arraigados de uma sociedade, como a norte-americana, para a qual relacionamentos inter-raciais ainda hoje são tabu. Quando é demitido, por deixar cair um revólver no hospital, ele lamenta: “Eu gosto desse emprego”. A arma é um presente de um colega, que ele ganha com reticências, depois de ter sido espancado por uma gangue de jovens latino-americanos. Com essa arma, Arthur mata os três homens no metrô, incomodado que ficou com o caso de assédio sexual e reagir à agressão covarde de que foi vítima. Se fosse levado a júri, Arthur provavelmente seria condenado por porte ilegal de arma mas certamente seria absolvido por legítima defesa. Sua namorada, ao ver a foto dos três homens assassinados no jornal, diz para ele como qualquer outra mulher poderia dizer da boca pra fora: “Menos três, podiam ser muito mais”. Não só ela hipoteticamente. Muita gente de fato se solidariza com Arthur. E para finalizar, Arthur apresenta problemas psicológicos sérios – digamos, estresse alto somatizado em crises de riso patológico, mais ou menos assim, rir para não chorar. Por causa da doença mental, frequenta o serviço de assistência social que é fechado por falta de verbas e fica completamente desamparado pelo poder público.

Artur é espancado, humilhado, rejeitado, enganado, demitido, constantemente pensa em suicídio, enfim, ultrapassa o ponto crítico. Não há como voltar atrás. Ele vai se vingar. A vingança justifica uma série de razões para um empata agir como um psicopata. Ou até pior. O olho por olho implica uma compensação pela não iniciativa. O Coringa não mata à toa, por matar. Mata por vingança. Mata o homem que provocou sua demissão; mata sua mãe pelos maus tratos sofridos por ele durante a infância e por aparentemente ter faltado com a verdade sobre sua suposta adoção e paternidade; mata sua namorada imaginária pela paixão não correspondida ou pelo jeito frio com que é tratado por ela na cena do apartamento (considerando a hipótese de que ela tenha sido assassinada, como sugere o filme [Ver acréscimo de nota de rodapé abaixo]). Ele só poupa a vida do anão, para o alívio dos espectadores apreensivos na sala de cinema: “Você foi a única pessoa que foi legal comigo”, diz o Coringa.

A metamorfose de Arthur no Coringa é a história tragicômica de alguém que foi ignorado a vida toda, enquanto trabalhava e seguia as leis, e só é notado após cometer um crime violento. Qual é o estágio de degradação ético-moral de uma sociedade quando o sofrimento é transformado em piada? “Minha vida não passa de uma comédia. Eu achei engraçado matar aqueles caras. A comédia é subjetiva. Não é o que eles dizem?” (Coringa). Ao ouvir essas palavras, não pude deixar de me lembrar de programas de TV do tipo Pânico na TV ou CQC – e demais do gênero. Jamais em toda a história da televisão brasileira programas humorísticos foram tão apelativos, tão pouco inteligentes, tão degradantes, tão infelizes, tão sem graça. Na época, justificavam que o humor não tem limites e, daí, “comediantes” que mais pareciam antipáticos gerentes de banco brincavam com piadas de mau gosto, detratando pessoas e ironizando até grandes tragédias como o holocausto. Como um circo de horror (sim, não de humor), os tais horroristas achavam graça de si mesmos, já que ninguém achava, e, para compensar a tremenda falta de talento de suas figuras sinistras, buscavam atrair um público adolescente através de chacota envolvendo mulheres seminuas, que, reduzidas a objeto sexual, eram submetidas a todo tipo de situações ridículas e vexatórias, além da zombaria a outras ditas “minorias” ou marginalizados socialmente, como negros, homossexuais, deficientes físicos e mentais, pessoas pobres, idosos etc. Numa das cenas mais sutis do filme Coringa, o apresentador do talk show se arroga um homem bom, então o Coringa o refuta: “Você é mal, Murray, você exibiu meu vídeo para as pessoas caçoarem de mim; você me convidou no programa para debochar de mim”. Ora, não foi isso o que fizeram com Zina, um rapaz com esquizofrenia e viciado em drogas, usado e abusado pelo programa de televisão e que atualmente se encontra em situação de rua? De fato, um dos primeiros sintomas do fascismo é quando humilhação vira fator de piada e desgraça, motivo de graça.
Protestos em San Tiago, Chile.
Outubro de 2019, protestos no Chile
O chocante, todavia, é que o fascismo não é uma anomalia, um ponto fora da reta na história recente; ao contrário, é apenas a face real da democracia moderna sem máscara, o seu segredo. E aqui não há como escapar de um tema fundamental que é pano de fundo do filme. Há claramente uma mensagem política na crítica social que recobre o Coringa. O assassinato dos três jovens desencadeia manifestações por toda Gotham City; manifestações essas que não foram organizadas por movimentos sociais ou partidos políticos. É um movimento marcado pelo espontaneísmo das massas, sem lideranças nem bandeiras. O próprio Coringa se exime de qualquer participação nos atos: “Eu pareço um palhaço que lidera movimento?” Basicamente, milhares de pessoas saem às ruas mascaradas de palhaço para protestar contra a desigualdade social; entre muitos cartazes, lê-se “morte aos ricos”. Não demora muito e os protestos desembocam em atos de vandalismo, depredação e caos social. Não se trata, porém, de uma revolução propriamente dita, no sentido clássico do conceito sociológico, já que não logrou mudança estrutural. O movimento é mais um motim, uma rebelião ou, mais precisamente, uma “revolução colorida” – tais como a Revolução Rosa, Revolução Laranja, Primavera Árabe, Panelaço ou Jornadas de Julho de 2013, Coletes Amarelos, Revolução dos Guarda-chuvas, e tantas outras. Sem querer recorrer a teorias sobre o fenômeno recente das revoluções coloridas (muitas delas são fabricadas por agentes externos), estas manifestações são marcadas por um profundo sentimento anti-institucional, antipartidário, antissindical e confusão ideológica, tendo por motivação unicamente uma insatisfação pura e simples contra “o sistema”. Assim, tanto partidos de esquerda como de direita são vistos como entidades corruptas e mercenárias a serviço da especulação financeira internacional ou do governo mundial, sendo rechaçados por esses movimentos que recusam representação e se organizam através de redes sociais da internet. Neste contexto, cabe analisar o estopim dos protestos: os funcionários de Thomas Weine – e a declaração do magnata chamando os simpatizantes do crime de “palhaços”. Simbolicamente, quem são os funcionários e o que representam? Os três rapazes são jovens, brancos, investidores, ao estilo “chicago-boys” de Wall Street, incorporam o estilo yuppie, terninho e gravata, são machistas e agressores de mulher – molestavam a garota sozinha no vagão. Ou seja, representam o patriarcado, branco, rico, capitalista e hétero ou, como se costuma dizer hoje em dia, cis-heteropatriarcado racista. O Coringa é, como já foi dito, o contrário, homem de meia idade, fracassado profissionalmente, fisicamente fraco, apaixonado por uma mulher negra e mãe solteira e, às vezes, tem gestuais infantis e efeminados. Assim sendo, a “Primavera dos Palhaços” em Gotham City não significa unicamente um profundo descontentamento com uma estrutura econômica destituída de qualquer empatia social, em que menos de 1% da população mundial, formada majoritariamente por homens brancos, concentra uma riqueza superior à dos 99% restantes e estão pouco se lixando para mais da metade dos habitantes do planeta que sobrevive abaixo da linha da miséria. Ela significa também um descontentamento com o padrão socialmente aceito e dominante que exclui a maioria heterogênea que luta por reconhecimento e inclusão. Noutras palavras, por linhas tortas, o Coringa acaba por representar reivindicações políticas até então inauditas, focadas na diversidade, e que se convencionou chamar de pautas identitárias.

Para encerrar, gostaria de tecer algumas considerações sobre a repercussão negativa do Coringa na imprensa dos EUA. Basicamente, o filme foi acusado de fomentar massacres em massa como o que ocorreu em Colombine, Virginia, Tech, Aurora etc. (e, por extensão dedutiva, também Suzano, Brasil). Perdoem-me o anacronismo, mas é isso mesmo! Um país que tem como princípio fundador da nação a cultura da violência, fomentada pelo destino manifesto, sustentada pela venda indiscriminada de armas de fogo, legitimada no culto à guerra imperialista, generaliza por filmes e games violentos, de repente descobriu que o filme do Coringa é culpado por jovens frustrados com a meritocracia de castas sair por aí metralhando colegas de escola, pessoas no cinema, boate etc. Santa hipocrisia! Talvez, a crítica tente esconder seu verdadeiro mal estar: o American Dream é uma propaganda enganosa de um mundo nada solidário onde tudo se restringe a dinheiro e poder.

Menina e instrutor apontar metralhadora para um alvo.
Em 2014, no Arizona, menina de 9 anos matou acidentalmente o instrutor de tiros
com uma submetralhadora Uzi. Ela disse que a arma era grande demais.
Aliás, são bastante equivocados os artigos publicados na imprensa brasileira sobre o Coringa afirmando que Arthur é vítima de bullyng! Sim, bullyng. Bullyng? Bullyng, uma palavra inglesa – e o equívoco já começa por aí! Esta palavra passou a designar situações específicas, geralmente em ambiente escolar, de abusos sistemáticos, no intuito de intimidar, humilhar e segregar criança ou adolescente, por parte de um grupo majoritário. Fora desse contexto, não há porque usar, já que a língua portuguesa possui dezenas de palavras equivalentes. Se fosse para usar, então, as paniquetes sofriam bullyng dos horroristas do mencionado programa de TV; Arthur, não. Arthur é vítima, sim, como todos nós, da série ininterrupta de constrangimentos indistintos da vida cotidiana, massificada e forjada pela lógica excludente do sistema político, econômico e social decadente.

Por tudo isso o Coringa é o filme do ano, porque deu o que falar. Fala diretamente sobre o nosso tempo, da nossa vida em sociedade. Mas cuidado, Gotham City não é uma alegoria do mundo moderno. Na verdade é o inverso, é a realidade que se torna cada vez mais parecida com uma história em quadrinhos. Essa é a lição do Coringa. A cena sombria no final do filme com o menino Bruce Wayne, o Batman no futuro, é a deixa para o Coringa 2. Tendo em vista seu histórico infantil traumático, o que se esperar do Batman, a não ser um vingador psicopata, que defende a manutenção de um sistema perverso que produz Coringas e Batmans a cada esquina?

Batman e Coringa frente a frente.

“O que você acontece quando se cruza com um doente mental solitário, numa sociedade que o abandona e o trata como lixo?” (Coringa).

O maior mérito do filme Coringa é o seu demérito, a saber, questionar o maniqueísmo ingênuo num gênero de filme em que os valores são absolutos. “O sistema que sabe tudo decide o que é certo ou errado” (Coringa). Acabamos por nos colocar no lugar do Coringa porque ele se coloca no nosso. E ao nos colocarmos no lugar do Coringa descobrimos que o dilema barbárie ou civilização é um jogo de palavras vazias e o progresso técnico-científico não implicou na emancipação do ser humano do estado de natureza. Somos seres sedentos de sangue e é isso que incomoda tanto os críticos do Coringa. Se em pleno século XXI, voltássemos com os espetáculos mortais de gladiadores, as arenas estariam cheias novamente. Se hoje tornássemos a jogar aos leões e tigres adeptos de alguma religião – religiões afros, por exemplo –, os ingressos de um Maracanã estariam esgotados com antecedência.

Numa alcateia, ovelha não reivindica direito. Não há mais utopias. Não há esperança.

Ecce homo.

Pintura de Antonio Ceresi. Pilatos levando Jesus a julgamento.
Pintura de Antonio Ciresi

Não ia terminar o texto assim, tão baixo astral. Deixei a crítica me guiar pelo enredo do filme e fiz muitas concessões. Ainda sou bastante otimista e acredito que a humanidade pode, sim, superar os grandes obstáculos que se interpõem em nosso tempo. Ao nos colocarmos no lugar do Coringa, compreendemos os seus motivos, o que não significa que avalizamos seus atos. O único antídoto contra o Coringa não é o seu irmão gêmeo Batman e, sim, dar a outra face e nunca atirar a primeira pedra. Mas está cada vez mais difícil ser cristão em um mundo como o nosso, apesar da proliferação sem precedentes de igrejas cristãs, algo paradoxal. No fundo, o paciente exercício de dar a cara à tapa e jamais atirar uma pedra transcende a esfera religiosa tornando-se imperiosa regra prática e moral do convívio social. Tentar entender porque alguém lhe trata com ofensa é também se colocar no lugar do outro, um exercício genuíno de empatia. Como diria o moralista francês La Rochefoucauld, quem conhece perdoa.

NOTAS

Em tempo 1: Ao terminar de escrever a crítica, foi surpreendido com uma declaração do diretor Todd Phillips dizendo que o Coringa não matou Sophie e sua filha. Desde quando filme precisa de bula? Ora, a versão do diretor nega peremptoriamente a linguagem cinematográfica do próprio filme! A explicação é estarrecedoramente simplista: o Coringa só faz mal àqueles que lhe fazem mal. O que, se de um lado confirma a minha tese, por outro torna o Coringa óbvio demais ou até mesmo “bonzinho”, guardadas às devidas proporções, obviamente. Tais vacilos não podem contaminar a sequência do Coringa, senão a continuação estará fadada a um voo de galinha.

Em tempo 2: Na sequência da série, Batman e Robin podiam formar um casal gay.

Em tempo 3: Em outubro do ano passado, manifestantes saíram às ruas fantasiados de Coringa em protestos nas cidades de Santiago, no Chile, Beirute, no Líbano, e em Hong Kong, conforme noticiou a imprensa.  

Em tempo 4: Ecce homo, do latim, “eis o homem”. A expressão aparece nos Evangelhos. O governador Pôncio Pilatos, não encontrando culpa em Jesus, volta-se aos sacerdotes e diz: “Aqui está o homem”. Aqueles se mantêm irresolutos: “Crucifica-o”. Para evitar a pena, Pilatos ainda reinstitui um antigo costume de libertar um prisioneiro na véspera da Páscoa, deixando o julgamento para a decisão do povo. Reunida em assembleia popular, a multidão votou democraticamente pela libertação de Barrabás e condenou Cristo. “Que mal fez Jesus?”, indagou o governador. Voto vencido, Pilatos se desincumbiu da responsabilidade da sentença por meio do gesto simbólico de lavar as mãos do sangue de Jesus: “Lavo as minhas mãos”. Ecce homo acabou se tornando um juízo de valor para designar a natureza humana, que seria baixa e corrupta.

Em tempo 5: Ecce homo também é o título do último livro do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.

Jean Pires de Azevedo Gonçalves é autor do livro “A saga de um andarilho pelas estrelas”.


Livro disponível no link eBooks Grátis

Escreve neste Blog. Textos em destaque:


quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

O Nariz de Gogol, por Arlete Cavaliere - Resumo

1. Um nariz fantasticamente grosseiro & 2. Nos limites da dupla existência - Arlete Cavaliere

Arlete Cavaliere inicia sua análise enfocando a própria temática da narrativa, um tanto desconfortável e inescapável, à qual, inclusive, intitula o conto do escritor Gogol: o nariz. Segundo a autora, o fato de o nariz do personagem Kovalióv sair de seu rosto e ganhar autonomia implica num “subverter de ordem ontológica do mundo”, do qual por si só remonta a uma reflexão sobre o gênero literário.

Neste sentido, a autora se questiona se, com a inversão hierárquica de ordem real, estaríamos diante de um conto “fantástico”. Ao analisar a definição de alguns estudiosos do tema, a autora chega à constatação de que gênero fantástico remete a duas instâncias estanques, a saber, o mundo natural e o mundo sobrenatural. Deste modo, o conceito de fantástico refere-se a estas duas ordens, sem, contudo, conciliá-las. Eis o fundamental, o fato de não conciliar dois mundos tão opostos produz uma sensação de medo advinda do não-sentido, já que o gênero fantástico transita, obviamente, pelo sobrenatural. Porém, apesar da ausência de sentido, provocado pela trama de um nariz protagonizar a estrutura do conto de Gogol, a autora, no entanto, argumenta que em O Nariz não se trata de um conto fantástico propriamente dito, no qual as duas ordens, natural e sobrenatural, não se tocam, mas da própria realidade inerente retratada no conto que é absolutamente sem sentido e absurda. Dito de outro modo, Gogol implode os limites que separam as leis fixas da natureza do mundo aparentemente sem lógica da fantasia, pois a própria realidade, sob a ótica do conto, é destituída de qualquer sentido.
Desenho de um nariz com bigode e óculos

Para dar conta desta inflexão, a autora propõe juntamente com a crítica que o conceito de grotesco se adéqua melhor ao gênero gogoliano. No caso de O Nariz, o enredo se desenvolve sob aspectos estranhos, mas que, ao mesmo tempo, são muito reais, o que dá ensejo para classificar o conto de realismo grotesco. Para reforçar essa ideia, a autora menciona o estilo de escrita do autor, denominado por ela de “brincadeira linguística gogoliana”, que, como já se verificou no texto de Eikhenbaum, é marcado por frases desconexas, um tom cômico e repleto de trocadilhos. Para concluir, sem abandonar plenamente o conceito de fantástico, a autora o retoma para afirmar que em Gogol o normal é precisamente o ser fantástico, endossando o conceito de realismo grotesco.

Para entender a estrutura de O Nariz, a autora lembra que o primeiramente o conto foi escrito como um sonho. O personagem Kovalióv descobriria que estava sem o nariz, então passaria a procurá-lo desesperadamente, e no final despertaria de seu sono percebendo de que tudo não passou de um sonho. Contudo, na redação final, Gogol elimina a parte do sonho, deixando a estranheza ganhar dimensões próprias daquilo que já se denominou acima de realismo grotesco.

Ao analisar as três partes do conto, a autora chama a atenção para a ambiguidade semântica resultante da “instabilidade lógica de certas construções fraseológicas, onde a ordem das palavras se contradiz completamente a compreensão do seu sentido”. Este tipo de construção sintático-semântica reafirma o que já foi discutido antes, isto é, o fato de a própria realidade aparecer enigmática e insondável.

Ainda segundo a autora, todo o enredo do conto “caracteriza a busca de Gogol por uma natureza baixa, numa luta para com as tradições literárias elevadas”. Para isso, Gogol volta-se às raízes da tradição cômica e oral da cultura narrativa e popular ucraniana, não apenas em O Nariz, mas de um modo geral em todos os contos petersburgueses. Assim, o estilo grotesco de Gogol é uma crítica à ordem aparente do mundo, abstrata e fixa.


Posts relacionados: