Literatura
comparada: Formação do Brasil Contemporâneo
(1942), de Caio Prado Jr. X Como era
gostoso o meu francês (1971), de N. P. dos Santos.
Para analisar e interpretar a questão da univocidade e plurivocidade na construção historiográfica, tendo em vista a comparação de duas linguagens tão diversas, é necessário tecer alguns comentários sobre o tema enfocado. Caio Prado Jr. inicia seu livro discutindo acerca do sentido da colonização, conceito pelo qual visa descrever as bases fundantes da formação econômica e social do Brasil. Para isso, discorre sobre a expansão comercial na Europa do século XV e XVI e, consequentemente, na busca de alguns países europeus por novas rotas comerciais, marítimas e alternativas, com o Oriente.
Neste contexto, os países da
península Ibérica foram pioneiros, notadamente, Portugal, ao circum-navegar o
continente africano e, mais tarde, chegar às terras que se denominaram Brasil.
Assim, o interesse dos países ibéricos em relação às terras recém-descobertas era
tão somente comercial, haja vista que, além do déficit populacional que
assolava a Europa da época, diante da imensidão do novo continente, quase deserto,
habitado por tribos “selvagens”, a colonização europeia era inviável.
Portanto, do ponto de vista
econômico, o clima tropical favorecia a atividade comercial agrícola, mais
estável que o extrativismo dos primeiros tempos. Essa discussão dá ensejo para
Caio Prado Jr. distinguir dois tipos opostos de colonização: colônia de exploração e colônia de povoamento. Esta última consolidou-se
nas Américas de regiões de clima temperado, nas quais, perante o pouco
interesse econômico, fatores políticos e sociais decorrentes da conjuntura
histórica por que passava a Inglaterra determinaram a estrutura da ocupação.
Neste caso, os colonos expatriados migravam com a esperança de construir um
“novo mundo” e reproduziam in loco
sociedades tipicamente europeias.
Ao contrário, a colonização
nas regiões tropicais visava apenas à exploração econômica de gêneros muito
valorizados na Europa, como açúcar e especiarias. Nesta perspectiva, constituiu-se
a empresa colonial, assentada no trabalho escravo, das populações indígenas e
africanas, e que atravessou todos os ciclos econômicos, cujo objetivo era o
abastecimento da metrópole e suas relações mercantis para com os países
europeus. É a partir desta estrutura econômica, voltada para o mercado externo,
que se dá o povoamento colonial, começando pelo litoral e adentrando o
interior, consoante a dinâmica dos ciclos econômicos. A empresa colonial também
determinou as relações entre “raças”, as quais, mesmos desarticuladas e
estranhas entre si, são incorporadas, através da miscigenação, ao propósito
demográfico da colonização.
O argumento é praticamente o
mesmo de Gilberto Freyre, atribuindo ao português uma índole histórica para
inter-relações multirraciais. Além disso, tal como o sociólogo, Caio Prado Jr. atribui
à família patriarcal e latifundiária o núcleo administrativo e cultural de toda
a sociedade, subordinando, inclusive, durante muito tempo, a cidade aos
interesses do campo. Porém, a escravidão moderna, vinculada ao interesse
comercial pura e simplesmente, deixou marcas degradantes na sociedade
brasileira, pois, muito embora as relações multiéticas tenham constituídos a
nacionalidade brasileira, os elementos culturais indígenas e africanos foram
reduzidos à simples condição de instrumentos de trabalho, fato que gerou, além
de uma profunda desvalorização do trabalho, a marginalização dessas etnias.
Por enquanto isto é
suficiente sobre Caio Prado Jr. Não vou me alongar muito sobre o enredo do
filme, basta dizer que, durante o período da França Antártica, um francês é
aprisionado pelos tupinambás, sendo então obrigado a passar pelos ritos de
canibalismo da tribo, nos quais é integrado ao cotidiano dos índios, chegando
mesmo a se casar, antes de ser sacrificado.
O filme é quase todo falado
em tupi, com algumas intervenções em francês e outras, muito raras, em
português. Todavia, nas primeiras tomadas, há uma narração, em voz over, da
carta de Villegagnon a Calvino sobre o dia a dia no forte e que contrasta com
as cenas exibidas. Além dessa intervenção, conforme o andamento das cenas,
surgem letreiros, tais como no cinema mudo, com o relato dos cronistas, como Hans
Staden, Padre Anchieta, Jean de Léry, Padre Nóbrega, entre outros, sobre os
costumes “bárbaros” dos indígenas. Entre essa polifonia de vozes, há também
algumas reflexões do francês em voz off na língua francesa. E, evidentemente,
há a narrativa das imagens que expressam a perspectiva dos tupinambás e seus
costumes.
Diante do que foi exposto,
já é possível esboçar algumas considerações sobre nossa problemática. Em
primeiro lugar, a obra de Caio Prado Jr. é marcada pela univocidade da
linguagem científica. Normalmente, o discurso científico é pautado pela
impessoalidade, movido pela objetividade do conceito e ancorado por uma
metodologia. Neste sentido, para entender a realidade brasileira, o método
empregado por Caio Prado Jr. é o do materialismo histórico ou dialético,
formulado pelo pensador alemão Karl Marx e consagrado na sua grande obra O Capital. Apesar das contribuições da
metodologia marxista para as análises de Caio Prado Jr., na compreensão da
sociedade brasileira, algumas questões trazem algum embaraço, pois Karl Marx
desenvolveu categorias referentes ao modo de produção capitalista, como os
conceitos de trabalho assalariado e capital, que estão em contradição, isto é,
na luta de classes, e em vias de superação através da revolução de caráter
socialista.
Ao transpor este repertório
conceitual para uma realidade colonial, pré-industrial e estruturada por outras
categorias, como o trabalho escravo, muitas lacunas aparecem e Caio Prado Jr. é
obrigado a fazer muitas concessões, como, por exemplo, considerar que o
trabalho acabou sendo um elemento desabonador na sociedade brasileira. Tal
procedimento leva o historiador a analisar o quadro econômico, político e
social com lentes invertidas, ou melhor, numa perspectiva de fora para dentro e
de cima para baixo, tomando a realidade europeia como marco de referência.
No fundo, é visão do europeu
que organiza e confere estatuto de verdade para um mundo completamente
diferente de seus pressupostos teóricos. Já no filme de Nelson Pereira dos
Santos, a narrativa eurocêntrica aparece por meio de uma estratégia
extradiegética, com a carta de Villegagnon e nas interrupções com as notas dos
cronistas que, não por acaso, são escritas – lembrando que os povos ameríndios
não conheciam a escrita.
Esta narração, ou visão de mundo, é sempre muito preconceituosa e descreve de maneira muito distorcida a realidade colonial e os hábitos das comunidades indígenas. Ao trazer protagonismo e, por assim dizer, dar voz e mostrar o ponto de vista dos tupinambás, Nelson Pereira dos Santos parece estar dizendo que a plurivocidade das diversas narrativas, dissonantes, em conflito e incompreensíveis entre si, remete a um mundo que escapa à transparência do conceito e de uma única narrativa unívoca, como a do dominador ou colonizador europeu. De certa forma, é trazer o discurso marginal, do qual nunca se escuta, para o centro do debate e mostrar que não há uma única verdade, muitas vezes, forjada pela violência. Dar ouvido a estas vozes torna-se o grande desafio crítico das supostas missões civilizatórias.
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