sábado, 7 de novembro de 2020

Sócrates - Nonas Filosóficas

À imensa maioria dos seus contemporâneos, apareceu Sócrates, de Atenas (470-399), como um dos sofistas. Escultor a princípio, abandonou o cuidado da família e viveu entregue por completo à apaixonada necessidade de alcançar e de fazer alcançar aos seus concidadãos clarividência espiritual, e de os conduzir há uma moralidade interna e independente (isto é, que não dependesse dos costumes). A multiforme e poderosa influência que este homem exerceu só pode se explicar tendo em conta a sua personalidade excepcionalmente rica, peculiar e profunda, e, sobretudo, os seus extraordinários dons de educador. Foram célebres a sua coragem na guerra e diante dos poderosos, a sua constância nos trabalhos e na meditação, a sua indiferença perante as coisas exteriores, e o seu admirável domínio sobre si próprio. Mas o que mais particularmente o caracteriza é o seu urgente impulso para converter em objeto de meditação profunda e proveitosa todas as relações da vida humana. Assim, vemos claramente nele o caráter fundamental (racionalista), representado por ilustração dos sofistas: não conduzir a vida instintivamente, não aceitar como válidos os usos e costumes que dominam no procedimento, mas sim fundamentar a conduta na reflexão, em conceitos claros e na própria evidência racional. Distingue-se porém dos sofistas pelo fato de não ministrar nos seus discursos conhecimentos já formados, mas procurar atingir ele próprio a maior caridade e conduzir os outros até ela pela própria forma do seu diálogo. Recordando o ofício de sua mãe, chamava à sua arte pedagógica "maiêutica", isto é, arte de parteira, pois que por meio das suas perguntas procurava conduzir os homens a atingirem eles próprios o conhecimento da verdade, fundando deste modo uma forma especial de dialética (v. § 4, fim): o "método socrático". 

Foi assim incansável na conversação com adultos e jovens, tanto nas oficinas dos operários manuais como nas praças públicas, nos ginásios como nas festas. Partindo do exame de casos particulares, extraídos da vida corrente ("concretos"), compara-os com outros casos semelhantes, para descobrir, através dos motivos deste exame, os princípios gerais da crítica moral, isto é, os "princípios éticos" (1). Com uma modéstia trocista (a sua "ironia") se põe em atitude interrogativa perante o interlocutor, que achará como se fossem as coisas mais naturais do mundo aqueles conceitos contidos nos mais árduos problemas; e no decurso da conversa, este suposto saber do interlocutor vai aparecendo ante o não saber de Sócrates, como um emaranhado de obscuridades e contradições. Sem dúvida, expôs assim muita gente a uma penosa vergonha, e foi tomado portanto por um arrogante maçador, e até por perigoso e revolucionário, sem respeito por nenhuma autoridade consagrada e nenhuma tradição venerável. Inclinava-se sempre, com efeito, a interrogar acerca de coisas que nenhum "cidadão bom e correto" punha em dúvida e eram aceitos como válidos sem discussão. Tampouco partilhou Sócrates do vulgar patriotismo ateniense.

Não é pois de estranhar que, finalmente, numa época em que chegou a predominar a reação contra qualquer "Iluminismo", tenha sido acusado de "introduzir novos deuses e perverter a juventude". Considerou a sua condenação uma injustiça; todavia, julgou-se obrigado, como cidadão, a acatar a sentença. Recusou por isso a fuga (que teria sido fácil com o auxílio dos seus discípulos) e bebeu a cicuta a que o condenaram. A simples grandeza com que soube aceitar a condenação contribuiu para valorizar ainda mais a influência da sua vida.

O fato de Sócrates ter decidido por toda sua vida ao serviço da claridade espiritual, obedece à hipótese natural de que a reta "evidência" (mas exatamente: a justa apreciação) tem por consequência necessária a ação justa; e portanto, que a virtude pode se aprender, e que ninguém comete faltas voluntariamente; por outro lado, supõe esta atitude que toda a ação moralmente má provém de falta de evidência. A tendência racionalista, "intelectualista, da época, atingi o seu ponto culminante com Sócrates. É certo que este exagerou a importância da inteligência para a ação, pois o conhecimento de que determinada conduta é mais valiosa que outra não intensifica forçosamente as tendências que conduzem à sua realização (embora numa pessoa tão nobre como Sócrates fosse o caso). Não resta porém dúvida de que uma consciência clara dos fins supremos e um profundo conhecimento do objetivo são imprescindíveis à superior cultura ética da personalidade.

Não menos parcial, embora contenha um germe valioso, é o outro pressuposto de Sócrates, segundo o qual existe necessária conexão, por um lado, entre a virtude e a felicidade, e por outro, entre a perversidade e a desdita. Com certeza sentia Sócrates isto como verdade, na sua pessoa; isto é, encontrava imediatamente a suprema felicidade, a paz da alma, numa vida conforme ao seu ideal ético; e, portanto, agir contrariamente ao bem (e, por consequência, contra a própria felicidade), só lhe pareceria coisa compreensível por efeito da ignorância ou do erro. Sob a sua influência, todos os discípulos socráticos equiparam a virtude (excelência) com a felicidade interior (a eudemonia), que pode substituir apesar da infelicidade externa.

As considerações por meio das quais Sócrates pretendia fundamentar a conduta moral, parecem ter sido, em muitos sentidos, egoístas. De acordo com elas, devem se cumprir os deveres para com os pais, os amigos, o estado, porque é o mais proveitoso para nós próprios. O fim supremo e, portanto, o sentido de toda conduta moral, encontrava Sócrates naquilo que favorecia o bem-estar humano. O duplo sentido que a palavra "bem" ainda conserva para nós era para ele um só, sem cisão. O bem significa: 1º (num sentido puramente ético), o que é valioso por si próprio, o valioso em absoluto; 2º o agradável ou útil (isto é, valioso por outra coisa), por exemplo: um bom vinho, um bom cão de caça, um bom sapateiro, etc. Sócrates não pode contudo separar o saber moral do técnico (profissional), porque não separa estas significações; mesmo para ele, a última é predominante. Por este motivo, a utilidade, a adaptação ao fim, é o ponto de vista supremo para as suas reflexões sobre os problemas morais, sociais e políticos. É compreensível que, partindo daqui, chegasse a formular uma crítica severa do existente e vigente (2) (sobretudo de algumas instituições democráticas), embora, em geral, não fosse um inovador radical e continuasse a respeitar as concepções morais, políticas e religiosas do seu povo. Não que partilhasse simplesmente o patriotismo de cidade dos seus convizinhos; o seu ideal moral tinha antes um caráter geral humano. Tampouco partilhada totalmente as crenças da religião popular. Possuía com tudo um profundo sentimento religioso, por via do qual estava convencido de que, com as suas pesquisas em busca do conhecimento, trabalhava ao serviço da divindade e sob a sua proteção. O que ele pedia aos deuses era "o bem". Os deuses, em sua opinião, sabiam melhor que os homens no que consiste em cada caso esse bem. Aconselhava a praticá-lo "conforme a lei do Estado". Ao mesmo tempo, entendia que a divindade apreciava mais um sentimento puro do que os mais ricos sacrifícios. Não deve ver se no seu "demônio" um dom profético, mas antes um autossentido de instintivo tato, que o afastava de tudo quanto não estava de acordo com a sua personalidade.

Sócrates não deixou nada escrito. Encontramos uma visão da sua personalidade sobretudo nas obras da juventude de Platão e em algumas de Xenofonte. Também outros discípulos de Sócrates escreveram "diálogos socráticos". Os autores destes se esforçavam, sem dúvida, em demonstrar que a ideia que eles tinham formado do mestre era a mais autêntica.

1. Este processo pode ser chamar "regressivo" e por "abstração". Quando Aristóteles chama a Sócrates inventor da indução, entende-se que se refere à descoberta do geral no particular.

2. Convém notar que os adeptos da moral "utilitarista", defendida, entre outros, por Bentham e Mill, conseguiram impor na Inglaterra profundas reformas, na primeira metade do século XIX.

(August MESSER, “História da Filosofia”, Editorial Inquérito: Lisboa, 1946 - obra em domínio público).

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