Por Edu B.
Aqui chegamos ao nosso ponto de clivagem, em
que os artigos debatidos se enveredam por caminhos distintos. Para começar,
trataremos do artigo O Maslow
desconhecido: uma revisão de seus principais trabalhos sobre motivação
(2009), de Jáder dos Reis Sampaio, por seu caráter altamente teórico que não
negligencia a amplitude e extensão da obra de Maslow.
Além das necessidades listadas acima, outros
estudos de Maslow apontaram para níveis mais elevados de necessidades. Essas
incluem necessidades de compreensão, apreciação estética e necessidades
puramente espirituais, normalmente ignoradas pelos vulgarizadores da teoria. Neste
sentido, Sampaio acrescenta ao rol de necessidades mais duas categorias que,
por não terem implicações clínicas, geralmente não constam nos manuais e
ilustrações da pirâmide das necessidades. São elas:
Desejos
de saber e de entender
Necessidade que Maslow (1954, p.97) descreveu
como “um desejo de entender, de sistematizar, de organizar, de analisar, de procurar
por relações e significados, de construir um sistema de valores” (Citação do
texto de Sampaio).
Necessidades
estéticas
São as necessidades que estão associadas ao
belo, à simetria, à simplicidade, à inteireza e à ordem.
Como o próprio título de seu artigo sugere, Sampaio
busca realizar uma revisão da teoria da motivação humana de Maslow, questionando
seu uso instrumental aplicado ao mundo do trabalho para se obter maior
eficiência e controle dos trabalhadores. Ao criticar as interpretações
mecanicistas e reducionistas, o autor procura apresentar um Maslow que vai além
do idealizador da suposta “pirâmide das necessidades”.
Nesta linha crítica, segundo Sampaio, uma
leitura atenta da obra de Maslow não só refuta o esquema mecânico de estímulo e
recompensa, do tipo behaviorista, como também, na outra ponta, descarta uma
filiação direta da teoria à psicanálise. Antes, as concepções maslownianas são
de fundo “holístico dinâmico”, como o próprio Maslow a denominava, baseando-se
num grande percurso que transita, sim, pela tradição psicanalítica, mas também
pela gestalt, pela psicologia da
escola comportamental e humanista, além da antropologia cultural norte-americana,
e tendo por influência vários autores, como Freud, Adler, Kardiner, Erich Fromm,
Carl Rogers e muitos outros.
A partir dessa concepção holística, Maslow compreende
o conceito de motivação integrado ao humano como um todo, não diferenciando os
motivos biológicos dos motivos culturais. Atribuir a fatores exclusivamente
internos os impulsos motivacionais atrelados à gratificação, sem considerar uma
inter-relação social e ambiental, como fazem muitos de seus comentadores,
constitui um equívoco grosseiro de interpretação. O ser humano é um ser
racional e, ao mesmo tempo, motivado por impulsos e desejos, não podendo ser
abstraído de sua interação com a sociedade e o meio ambiente.
Sampaio afirma que as formulações de Maslow foram
influenciadas por uma “visão organísmica de homem”, pois ressalta o papel da
privação ou gratificação sobre as necessidades nas mais diversas áreas da vida
humana. A partir disso, Maslow distingue as necessidades dos desejos e dos
impulsos, ressalvando o caráter inconsciente das necessidades. Portanto, as
necessidades básicas são em grande parte inconscientes, ainda que as
necessidades complexas possam surgir de atitudes conscientes. A necessidade,
portanto, é mobilizada por uma privação que se mitigada produz uma
gratificação, suscitando uma nova necessidade. Todavia, as necessidades não
devem ser compreendidas unilateralmente, pois a maior parte do comportamento
humano é simultaneamente multimotivado e, por isso, tende a ser determinado por
várias necessidades.
Como vimos acima, Maslow classifica a
categorias básicas das necessidades como superiores e inferiores, o que implica
uma ordem de prioridades na qual uma necessidade superior não se manifesta a
menos que as necessidades inferiores tenham sido pelo menos parcialmente
satisfeitas. Por exemplo, a partir do momento em que as necessidades
fisiológicas são supridas, outras necessidades passam a emergir, e assim
sucessivamente. Portanto, uma necessidade de nível superior ocupa a posição de
uma necessidade inferior plena ou parcialmente satisfeitas. Ressalta-se, no
entanto, que o esquema das necessidades, de acordo com Sampaio, não pode ser
tomado de maneira fixa e por uma ótica mecanicista, pois, como vimos, as
motivações têm um caráter múltiplo e simultâneo. Maslow desenvolveu, portanto,
uma teoria da preponderância das
necessidades, relativizando a importância de uma necessidade superior sobre uma
inferior. Uma necessidade preponderante é aquela que tem maior poder ou
influência sobre o comportamento na escala das necessidades. Obviamente, as
necessidades de fundo puramente biológico deveriam ser resolvidas primeiro,
senão a sobrevivência correria um sério risco. Ocorre que se qualquer uma das
necessidades não for pelo menos relativamente gratificada, haverá uma
preponderância dessa necessidade e não haverá desenvolvimento.
Para Maslow, esta dinâmica autoriza dois
novos conceitos: a motivação baseada na deficiência (deficiency motivation) e a motivação de crescimento (growth motivation). Assim, obstáculos
sociais que perfazem a trajetória de um indivíduo podem causar sérios danos e
impedi-lo de avançar na direção da autoatualização. A motivação baseada na
deficiência, segundo Sampaio, limita o psiquismo humano aos impulsos e
instintos. A partir da ideia de homeostase, supõe-se que as necessidades mais
baixas deveriam ser satisfeitas, para que outro nível seja alcançado. Caso uma
necessidade de nível não seja suficientemente gratificada, a sua privação ou
insatisfação levará a uma preponderância dessa necessidade, no sentido de
restaurar o equilíbrio gerado pela tensão subjacente, ou melhor, a “falta de
motivação”, tendo, por isso, maior poder sobre o comportamento e a psique de um
indivíduo, que o impede para o crescimento. Em suma, as necessidades básicas,
quando gratificadas, geram uma sensação de bem-estar psicológico que estimula
uma tendência para que um indivíduo se engaje com ações que o levam a uma
postura de crescimento, independência e autorrealização; por outro lado, quando
não gratificadas, geram problemas de saúde mental e estagnação.
Ainda conforme Sampaio, a motivação de
crescimento nunca pode ser de fato satisfeita porque sempre se quer mais. Ao
contrário, na motivação para o crescimento, a gratificação aumenta em vez de
diminuir a motivação. O que diverge fundamentalmente do conceito de necessidade
básica posto em revista até agora. Tal distinção levou Maslow a compreender
conceitualmente as motivações para o crescimento sob o termo de metamotivação e as necessidades ligadas
a ela de metanecessidades. Assim, as
motivações baseadas na deficiência receberam o valor D e as de crescimento o
valor S (Sampaio lista, entre outros: verdade,
beleza, justiça, perfeição, integração, unificação, tendência em
direção à unidade, ordem).
Diante do que foi exposto, fica claro que
para Maslow a hierarquia das necessidades ganha um papel secundário no conjunto
de suas descobertas e que sua aplicabilidade como uma ferramenta no sentido de,
por exemplo, otimizar a produtividade dos trabalhadores em uma organização,
implica muitos empecilhos conceituais que simplificam demasiadamente o
arcabouço teórico da teoria das necessidades. Para Maslow, o trabalho motivado
por valores S articula-se a um processo de identificação do self, pelo qual as pessoas buscam como
gratificação o prazer que a atividade profissional pode proporcionar,
valorizando muito mais a criatividade, autonomia, liberdade e independência do
que a remuneração propriamente dita.
O artigo Hierarquia
das Necessidades de Maslow: Validação de um Instrumento apresenta uma
perspectiva inversa do primeiro, nem por isso menos importante.
Os autores reproduzem o quadro das cinco
necessidades, relacionando seu desenvolvimento à saúde mental. Ao referenciar
Maslow (1954), os autores explicam o funcionamento da teoria, de modo que a motivação
só é acionada quando uma necessidade não é satisfeita; em contrapartida, a
gratificação eleva a motivação para a necessidade seguinte, que passa a ser
dominante, e precisa ser satisfeita.
Como Maslow não desenvolveu nenhum
instrumental para testar sua teoria, argumentam os autores, Leidy (1994), em Operationalizing Maslow’s theory:
Development and testing of the basic need satisfaction inventory, propôs-se
a fazê-lo, desenvolvendo o Inventário de
Satisfação das Necessidades Básicas (ISNB), que se mostrou adequado para
vaiadas finalidades de pesquisa. Tendo em vista a sua validade fatorial,
validade convergente e consistência interna, este instrumento foi adaptado para
a realidade brasileira em dois estudos.
Os autores advertem que os estudos em questão
seguiram todas as recomendações éticas vigentes e envolveu, no primeiro, 200
estudantes de uma universidade pública de João Pessoa (PB), com idade média de
23,8, dentre eles, a maior parte era do sexo feminino (56,5%), com estado civil
de solteiro (84,5%) e de religião católica (40,5%); e, no segundo, 199
estudantes universitários da cidade de Parnaíba (PI), com idade média de 22,5
anos, sendo a maioria do sexo feminino (77%). Os participantes do primeiro
estudo responderam a Escala de Satisfação com a Vida e um questionário com
medidas ISNB e outro demográfico. Os do segundo, apenas o ISNB.
Os resultados da análise fatorial parecem ter
demonstrado as primeiras evidências psicométricas que confirmam a adequação das
teses de Maslow no Brasil. Apesar da limitação da amostra (não probabilística),
o primeiro estudo resultou em um modelo de cinco fatores correlacionados com a
satisfação da vida. O segundo estudo foi desenvolvido para testar modelos
alternativos de tipo unifatorial e hexafatorial. Entretanto, o modelo com cinco
fatores se revelou mais promissor.
Em que pese as possíveis críticas, este foi o
primeiro estudo a testar a teoria das motivações de Maslow no Brasil, através
do ISNB, contribuindo para o conhecimento das necessidades que podem afligir a
sociedade brasileira como um todo.
Conclusão
Os dois textos ora analisados apresentam
pontos de vistas e metodologias divergentes, o que não invalida as
contribuições valiosas que ambos oferecem, cada um ao seu modo, aos estudiosos
do tema. O primeiro visa explorar um aspecto pouco conhecido da teoria de
Maslow, criticando as interpretações simplistas e reducionistas, através de uma
crítica à instrumentalização da teoria que ignora seus desdobramentos
ulteriores. O segundo, na direção oposta, testou experimentalmente e de forma
inédita a teoria como uma ferramenta aplicada à realidade brasileira, no
intuito de, posteriormente, entender as necessidades da população e, com isso,
propor alternativas que possam atender as demandas suscitadas pelo contexto
social do país.
Referências
bibliográficas
Cavalcanti, T. M., Gouveia, V. V., Medeiros, E. D., Mariano, T. E., Moura, H. M., Moizéis, H. B. C. (2019). Hierarquia das necessidades de Maslow: Validação de um Instrumento. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-13.
Sampaio, J. R. O Maslow desconhecido: uma revisão de seus principais trabalhos sobre
motivação, R.Adm., São Paulo, v.44,
n.1, p.5-16, jan./fev./mar. 2009.