sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Pirâmide hierárquica das necessidades de Maslow - Parte 2

 

Por Edu B.

Aqui chegamos ao nosso ponto de clivagem, em que os artigos debatidos se enveredam por caminhos distintos. Para começar, trataremos do artigo O Maslow desconhecido: uma revisão de seus principais trabalhos sobre motivação (2009), de Jáder dos Reis Sampaio, por seu caráter altamente teórico que não negligencia a amplitude e extensão da obra de Maslow.

Além das necessidades listadas acima, outros estudos de Maslow apontaram para níveis mais elevados de necessidades. Essas incluem necessidades de compreensão, apreciação estética e necessidades puramente espirituais, normalmente ignoradas pelos vulgarizadores da teoria. Neste sentido, Sampaio acrescenta ao rol de necessidades mais duas categorias que, por não terem implicações clínicas, geralmente não constam nos manuais e ilustrações da pirâmide das necessidades. São elas:

Desejos de saber e de entender

Necessidade que Maslow (1954, p.97) descreveu como “um desejo de entender, de sistematizar, de organizar, de analisar, de procurar por relações e significados, de construir um sistema de valores” (Citação do texto de Sampaio).

Necessidades estéticas

São as necessidades que estão associadas ao belo, à simetria, à simplicidade, à inteireza e à ordem.

Como o próprio título de seu artigo sugere, Sampaio busca realizar uma revisão da teoria da motivação humana de Maslow, questionando seu uso instrumental aplicado ao mundo do trabalho para se obter maior eficiência e controle dos trabalhadores. Ao criticar as interpretações mecanicistas e reducionistas, o autor procura apresentar um Maslow que vai além do idealizador da suposta “pirâmide das necessidades”.

Nesta linha crítica, segundo Sampaio, uma leitura atenta da obra de Maslow não só refuta o esquema mecânico de estímulo e recompensa, do tipo behaviorista, como também, na outra ponta, descarta uma filiação direta da teoria à psicanálise. Antes, as concepções maslownianas são de fundo “holístico dinâmico”, como o próprio Maslow a denominava, baseando-se num grande percurso que transita, sim, pela tradição psicanalítica, mas também pela gestalt, pela psicologia da escola comportamental e humanista, além da antropologia cultural norte-americana, e tendo por influência vários autores, como Freud, Adler, Kardiner, Erich Fromm, Carl Rogers e muitos outros.

A partir dessa concepção holística, Maslow compreende o conceito de motivação integrado ao humano como um todo, não diferenciando os motivos biológicos dos motivos culturais. Atribuir a fatores exclusivamente internos os impulsos motivacionais atrelados à gratificação, sem considerar uma inter-relação social e ambiental, como fazem muitos de seus comentadores, constitui um equívoco grosseiro de interpretação. O ser humano é um ser racional e, ao mesmo tempo, motivado por impulsos e desejos, não podendo ser abstraído de sua interação com a sociedade e o meio ambiente.

Sampaio afirma que as formulações de Maslow foram influenciadas por uma “visão organísmica de homem”, pois ressalta o papel da privação ou gratificação sobre as necessidades nas mais diversas áreas da vida humana. A partir disso, Maslow distingue as necessidades dos desejos e dos impulsos, ressalvando o caráter inconsciente das necessidades. Portanto, as necessidades básicas são em grande parte inconscientes, ainda que as necessidades complexas possam surgir de atitudes conscientes. A necessidade, portanto, é mobilizada por uma privação que se mitigada produz uma gratificação, suscitando uma nova necessidade. Todavia, as necessidades não devem ser compreendidas unilateralmente, pois a maior parte do comportamento humano é simultaneamente multimotivado e, por isso, tende a ser determinado por várias necessidades.

Como vimos acima, Maslow classifica a categorias básicas das necessidades como superiores e inferiores, o que implica uma ordem de prioridades na qual uma necessidade superior não se manifesta a menos que as necessidades inferiores tenham sido pelo menos parcialmente satisfeitas. Por exemplo, a partir do momento em que as necessidades fisiológicas são supridas, outras necessidades passam a emergir, e assim sucessivamente. Portanto, uma necessidade de nível superior ocupa a posição de uma necessidade inferior plena ou parcialmente satisfeitas. Ressalta-se, no entanto, que o esquema das necessidades, de acordo com Sampaio, não pode ser tomado de maneira fixa e por uma ótica mecanicista, pois, como vimos, as motivações têm um caráter múltiplo e simultâneo. Maslow desenvolveu, portanto, uma teoria da preponderância das necessidades, relativizando a importância de uma necessidade superior sobre uma inferior. Uma necessidade preponderante é aquela que tem maior poder ou influência sobre o comportamento na escala das necessidades. Obviamente, as necessidades de fundo puramente biológico deveriam ser resolvidas primeiro, senão a sobrevivência correria um sério risco. Ocorre que se qualquer uma das necessidades não for pelo menos relativamente gratificada, haverá uma preponderância dessa necessidade e não haverá desenvolvimento.

Para Maslow, esta dinâmica autoriza dois novos conceitos: a motivação baseada na deficiência (deficiency motivation) e a motivação de crescimento (growth motivation). Assim, obstáculos sociais que perfazem a trajetória de um indivíduo podem causar sérios danos e impedi-lo de avançar na direção da autoatualização. A motivação baseada na deficiência, segundo Sampaio, limita o psiquismo humano aos impulsos e instintos. A partir da ideia de homeostase, supõe-se que as necessidades mais baixas deveriam ser satisfeitas, para que outro nível seja alcançado. Caso uma necessidade de nível não seja suficientemente gratificada, a sua privação ou insatisfação levará a uma preponderância dessa necessidade, no sentido de restaurar o equilíbrio gerado pela tensão subjacente, ou melhor, a “falta de motivação”, tendo, por isso, maior poder sobre o comportamento e a psique de um indivíduo, que o impede para o crescimento. Em suma, as necessidades básicas, quando gratificadas, geram uma sensação de bem-estar psicológico que estimula uma tendência para que um indivíduo se engaje com ações que o levam a uma postura de crescimento, independência e autorrealização; por outro lado, quando não gratificadas, geram problemas de saúde mental e estagnação.

Ainda conforme Sampaio, a motivação de crescimento nunca pode ser de fato satisfeita porque sempre se quer mais. Ao contrário, na motivação para o crescimento, a gratificação aumenta em vez de diminuir a motivação. O que diverge fundamentalmente do conceito de necessidade básica posto em revista até agora. Tal distinção levou Maslow a compreender conceitualmente as motivações para o crescimento sob o termo de metamotivação e as necessidades ligadas a ela de metanecessidades. Assim, as motivações baseadas na deficiência receberam o valor D e as de crescimento o valor S (Sampaio lista, entre outros: verdade, beleza, justiça, perfeição, integração, unificação, tendência em direção à unidade, ordem).

Diante do que foi exposto, fica claro que para Maslow a hierarquia das necessidades ganha um papel secundário no conjunto de suas descobertas e que sua aplicabilidade como uma ferramenta no sentido de, por exemplo, otimizar a produtividade dos trabalhadores em uma organização, implica muitos empecilhos conceituais que simplificam demasiadamente o arcabouço teórico da teoria das necessidades. Para Maslow, o trabalho motivado por valores S articula-se a um processo de identificação do self, pelo qual as pessoas buscam como gratificação o prazer que a atividade profissional pode proporcionar, valorizando muito mais a criatividade, autonomia, liberdade e independência do que a remuneração propriamente dita.

O artigo Hierarquia das Necessidades de Maslow: Validação de um Instrumento apresenta uma perspectiva inversa do primeiro, nem por isso menos importante.

Os autores reproduzem o quadro das cinco necessidades, relacionando seu desenvolvimento à saúde mental. Ao referenciar Maslow (1954), os autores explicam o funcionamento da teoria, de modo que a motivação só é acionada quando uma necessidade não é satisfeita; em contrapartida, a gratificação eleva a motivação para a necessidade seguinte, que passa a ser dominante, e precisa ser satisfeita.

Como Maslow não desenvolveu nenhum instrumental para testar sua teoria, argumentam os autores, Leidy (1994), em Operationalizing Maslow’s theory: Development and testing of the basic need satisfaction inventory, propôs-se a fazê-lo, desenvolvendo o Inventário de Satisfação das Necessidades Básicas (ISNB), que se mostrou adequado para vaiadas finalidades de pesquisa. Tendo em vista a sua validade fatorial, validade convergente e consistência interna, este instrumento foi adaptado para a realidade brasileira em dois estudos.

Os autores advertem que os estudos em questão seguiram todas as recomendações éticas vigentes e envolveu, no primeiro, 200 estudantes de uma universidade pública de João Pessoa (PB), com idade média de 23,8, dentre eles, a maior parte era do sexo feminino (56,5%), com estado civil de solteiro (84,5%) e de religião católica (40,5%); e, no segundo, 199 estudantes universitários da cidade de Parnaíba (PI), com idade média de 22,5 anos, sendo a maioria do sexo feminino (77%). Os participantes do primeiro estudo responderam a Escala de Satisfação com a Vida e um questionário com medidas ISNB e outro demográfico. Os do segundo, apenas o ISNB.

Os resultados da análise fatorial parecem ter demonstrado as primeiras evidências psicométricas que confirmam a adequação das teses de Maslow no Brasil. Apesar da limitação da amostra (não probabilística), o primeiro estudo resultou em um modelo de cinco fatores correlacionados com a satisfação da vida. O segundo estudo foi desenvolvido para testar modelos alternativos de tipo unifatorial e hexafatorial. Entretanto, o modelo com cinco fatores se revelou mais promissor.

Em que pese as possíveis críticas, este foi o primeiro estudo a testar a teoria das motivações de Maslow no Brasil, através do ISNB, contribuindo para o conhecimento das necessidades que podem afligir a sociedade brasileira como um todo.

Conclusão

Os dois textos ora analisados apresentam pontos de vistas e metodologias divergentes, o que não invalida as contribuições valiosas que ambos oferecem, cada um ao seu modo, aos estudiosos do tema. O primeiro visa explorar um aspecto pouco conhecido da teoria de Maslow, criticando as interpretações simplistas e reducionistas, através de uma crítica à instrumentalização da teoria que ignora seus desdobramentos ulteriores. O segundo, na direção oposta, testou experimentalmente e de forma inédita a teoria como uma ferramenta aplicada à realidade brasileira, no intuito de, posteriormente, entender as necessidades da população e, com isso, propor alternativas que possam atender as demandas suscitadas pelo contexto social do país.

Referências bibliográficas

Cavalcanti, T. M., Gouveia, V. V., Medeiros, E. D., Mariano, T. E., Moura, H. M., Moizéis, H. B. C. (2019). Hierarquia das necessidades de Maslow: Validação de um Instrumento. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-13.

Sampaio, J. R. O Maslow desconhecido: uma revisão de seus principais trabalhos sobre motivação,  R.Adm., São Paulo, v.44, n.1, p.5-16, jan./fev./mar. 2009.

Pirâmide hierárquica das necessidades de Maslow - Parte 1

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