quarta-feira, 1 de julho de 2020

Fernando Pessoa heterônimo de Shakespeare


Por Jean Pires de A. Gonçalves

O mundo inteiro é um palco
E todos os homens e mulheres não passam de meros atores
Eles entram e saem de cena
E cada um no seu tempo representa diversos papéis.
(William Shakespeare, As you like it)

Fernando Pessoa e William Shakespeare

Não seria de todo estranho se Fernando Pessoa fingisse verdadeiramente a loucura fingida de Hamlet e recitasse em versos o mais famoso monólogo da dramaturgia: Ser ou não ser... Fernando Pessoa? Nessa questão, ninguém poderia acusá-lo de plágio – conceito moderno que reduz a obra intelectual ou artística à produção-reprodução de mercadorias – porque, assim como na verdadeira arte, desde pelo menos a era clássica, para Fernando Pessoa, a obra de arte define-se enquanto emulação.

Fernando pessoa, cujo padrasto fora nomeado cônsul na África do Sul quando aquele contava seis anos de idade, estudou no colégio Durban High School, obtendo instrução na língua inglesa até seu retorno a Portugal, aos 17 anos. Admirador da literatura anglo-saxônica, portanto, é bem conhecida a influencia do “mais insincero de quantos poetas tem havido”, tal como se referia Fernando Pessoa a Shakespeare, na obra literária do poeta português autor de Mensagem.

O próprio Fernando Pessoa poderia ter sido um heterônimo de um poeta louco português, dado a manias de grandeza, representado por um personagem disfarçado em três em algum drama shakespeariano.

A fabulação não é gratuita. Portugal não é esquecido pelo dramaturgo. Numa peça de Shakespeare intitulada As you like it, traduzida para o português como Como gostais ou Do jeito que você gosta, o bardo menciona a melancólica terra lusitana num diálogo entre a personagem Rosalinda e sua prima Célia:

Rosalind: O coz, coz, coz, my pretty little coz, that thou
didst know how many fathom deep I am in love! But
it cannot be sounded: my affection hath an unknown
bottom, like the bay of Portugal.

(Ah, prima, prima, prima, minha linda priminha, se ao menos tu soubestes a quantos palmos de fundura estou enterrada na paixão! Mas isso não pode ser medido. Não se tem como saber onde está o fundo da minha afeição, que nesse ponto é como a Baía de Portugal. Tradução: Beatriz Viégas-Faria).

Ameaçada de morte por seu tio, o Duque Frederico, Rosalinda foge e se disfarça de homem, o jovem Ganimedes, identidade pela qual passa a ser reconhecida até se revelar ao seu grande amor, o nobre Orlando. Tal observação não desvia do nosso tema. Eis um ponto fundamental na obra de Shakespeare: as personagens constantemente se disfarçam assumindo personalidades muito diferentes de forma tão perfeita ao ponto de um pai não reconhecer o próprio filho. Não é incomum, também, uma peça de teatro ser representada dentro da peça que está sendo encenada. Estes procedimentos dizem respeito a uma concepção filosófica subjacente à visão de mundo do dramaturgo inglês.

Porém, antes de dar prosseguimento a esse raciocínio, que será retomado logo adiante, é necessário antes compreender mais exatamente a dimensão que Shakespeare ocupava na concepção literária de Fernando Pessoa e, então, registrar o que pensava Pessoa do maior poeta da língua portuguesa: Luis Vaz de Camões:

“É um grande poeta épico e um razoavelmente bom poeta lírico. (...) Mas é assinalavelmente desprovido de todas as qualidades puramente intelectuais com as quais a poesia mais elevada – e a literatura mais elevada – é construída. Não tem em si a profundidade; não tem uma profunda intuição metafísica (tal como poderia encontrar às dúzias numa página de Shakespeare)” (PESSOA, 1996).

Ainda que nos possa parecer bastante injusta essa afirmação, nota-se que na comparação a Shakespeare, Fernando Pessoa acusa Camões de não ter tido uma profunda intuição metafísica, qualidade inexorável a uma poesia ou literatura mais elevada. Considerando-se, deste modo, que, na obra de Fernando Pessoa, “o guardador de rebanhos” AlbertoCaeiro exerce o papel de mestre, não apenas dos heterônimos Ricardo Reis e Álvaro de Campos, mas do próprio Fernando Pessoa ele mesmo (um caso de “metonímia concreta”, em que a criatura supera o criador), é bastante possível que o protótipo do nosso “pastor amoroso” já estiva lá encarnado na peça de Shakespeare As you like it. Indagado sobre filosofia, pelo bobo da corte Touchstone, o pastor Corin disserta:

CORIN: No more but that I know the more one sickens the
worse at ease he is; and that he that wants money,
means and content is without three good friends;
that the property of rain is to wet and fire to
burn; that good pasture makes fat sheep, and that a
great cause of the night is lack of the sun; that
he that hath learned no wit by nature nor art may
complain of good breeding or comes of a very dull kindred.

(Nada além de eu saber que, quanto mais se adoece, pior se fica. Sei também que quem está precisando de dinheiro, trabalho e satisfação está sem três bons amigos. Sei que a chuva tem a propriedade de molhar, e o fogo, a de queimar. O bom pasto faz engordar carneiros e ovelhas; e que uma grande causa para a noite é a falta do sol. Quanto àquele que não é esperto por natureza nem foi ensinado a ser esperto, ele pode se queixar se não é de boa estirpe ou se vem de uma família de néscios. Tradução: Beatriz Viégas-Faria).

TOUCHSTONE: Such a one is a natural philosopher. Wast ever in
court, shepherd?

(Uma pessoa assim é naturalmente um filósofo. Já estiveste na corte, pastor? Tradução: Beatriz Viégas-Faria).

Agora, o nosso Alberto Caeiro, naturalmente um filósofo (nunca é demais reler Fernando Pessoa, não é mesmo?):

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

“Constituição íntima das coisas”...
“Sentido íntimo do Universo”...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Mas esta “metafísica inerente à física-natural”, de Corin e Caeiro, não é tudo: apenas os fundamentos de um edifício filosófico maior. Há um outro elemento interessante para se assinalar.

O divertido diálogo em que o astucioso bobo da corte Touchstone tenta seduzir a camponesa Audrey parece apontar para uma oposição entre campo e cidade permeada de implicações:

TOUCHSTONE: I am here with thee and thy goats, as the most
capricious poet, honest Ovid, was among the Goths.

(Estou aqui, Audrey, contigo e com tuas cabras como um fiel capricorniano, um poeta honesto como Ovídio, um pastor pastando por ti).

JAQUES: [Aside] O knowledge ill-inhabited, worse than Jove
in a thatched house!

([à paste] Ah, rico conhecimento em pobre morada, igual Júpiter em casebre com telhado de capim.

(...)

TOUCHSTONE: No, truly; for the truest poetry is the most
feigning; and lovers are given to poetry, and what
they swear in poetry may be said as lovers they do feign.

(Nem tanto, pois a verdadeira poeticidade é a mais fingida, e os apaixonados são dados a poetar, e o que eles juram e prometem nos poemas pode-se dizer que, enquanto apaixonados, estão fingindo.

AUDREY: Do you wish then that the gods had made me poetical?

(Você queria então que os deuses me tivessem criado com poeticidade?

TOUCHSTONE: I do, truly; for thou swearest to me thou art
honest: now, if thou wert a poet, I might have some
hope thou didst feign.

(Sim, eu queria, de fato. Pois tu me juras que és donzela. Agora, se tu fosses poeticamente criativa, eu poderia ter alguma esperança de que estás fingindo. Tradução: Beatriz Viégas-Faria).

Em que pese o tom hilário, essa conversa não poderia ter inspirado Fernando Pessoa na elaboração de sua obra poética resumida em Autopsicografia?

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

O poeta Fernando Pessoa parece vivenciar a filosofia shakespeariana e representar papeis dos quais atua ou finge tão bem. Do ponto de vista filosófico, pode se inferir que Shakespeare reproduz a ideia antiquíssima do mundo constituído por duas realidades distintas e opostas: natureza e sociedade. No senso comum ou no nível da opinião, natureza se caracteriza pela imediatez, espontaneidade, bondade, ingenuidade, um olhar direto sobre as coisas; enquanto, por outro lado, as relações sociais são marcadas pela artificialidade, falsidade, malícia e dissimulação. Em suma, o verdadeiro e o falso.

Mas, para o bardo, não é tão simples assim. Em sua concepção, o mundo humano artificialmente construído, a cidade, não é um simples simulacro desprovido de qualquer verdade e, sim, uma outra verdade tão verdadeira quanto (uma segunda natureza), ainda que fingida. A realidade urbana, palaciana, com sua etiqueta e educação, regras de conduta, formalidade, enfim, é análoga a um palco onde os atores representam personagens diversos determinados pelas circunstancias e condições de vida e que, de fato, são as diversas faces do mesmo ator. (Aliás, um bom ator é aquele que incorpora um personagem). Na cosmovisão shakespeariana, portanto, a vida em sociedade é um teatro complexo tão autêntico (em sua falsidade verdadeira) quanto à simplicidade do mundo rural, e o amor é a manifestação mais sublime disso.

Fernando Pessoa parece ter levado a sério esta lição shakespeariana sobre a obra de arte e a literatura. Pois, através de sua poesia dramática, o poeta-ator desempenhou múltiplos personagens que não era senão ele mesmo: Ser ou não ser Fernando Pessoa? Eis a questão!

Como diria a personagem Perdita em Winter's Tale (Contos de inverno):

I see the play so lies
That I must bear a part.

(Estou vendo que preciso encenar o meu papel nesse teatro. Tradução: Beatriz Viégas-Faria).

Bibliografia

PESSOA, Fernando. “Correspondência inédita”. Organização de Manuela Perreira da Silva. Lisboa: Livro Horizonte, 1996.

PESSOA, Fernando. “Poesia”. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor). Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).

PESSOA, Fernando. “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor). Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

SHAKESPEARE, William. “Como gostais” e “Contos de iverno”. Tradução: Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2009.

SHAKESPEARE, William. “As You Like It” (link) e "Winter's Tale" (link).

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