Os eleáticos, por um lado, fizeram do ser substancial o fundamento na
sua concepção do mundo, considerando o devir pura ilusão dos sentidos. Heráclito,
por outro lado, descobre no devir, na sucessão causal dos acontecimentos, a essência
do mundo, convertendo o ser permanente em aparência. Só depois destas duas
afirmações se pôde fazer uma tentativa para harmonizar as duas tendências numa
unidade superior. Realizou-se da seguinte forma: reconheceu-se, com os
eleáticos, que o ser é aquilo que não devém, que é imorredouro e
qualitativamente invariável. Concedeu-se porém a Heráclito que a diversidade
das coisas e as suas variações não são pura ilusão. Existe, portanto, uma
multiplicidade de seres; as variações, porém, tais como as aparentes gerações e
destruições, reduzem-se a simples mudança de lugar, a movimentos.
Esta
reconciliação, entre as concepções fundamentais dos eleáticos e de Heráclito, realizou-se
incompletamente com Anaxágoras e Empédocles, e por forma relativamente perfeita
com Demócrito.
Anaxágoras
e Empédocles formam um estranho par de filósofos antagônicos. O primeiro é um
pensador mais simples, mais sóbrio, mais rude; o segundo é, sobretudo, um poeta
brilhante, cheio de inspiração e de orgulhosa consciência de si mesmo.
Anaxágoras
(500-428), nascido em Clasómenas, trouxe a filosofia da Ásia Menor para Atenas,
onde pertenceu (cerca de 463) ao círculo de amigos de Péricles, exercendo
grande influência sobre Eurípedes. Foi acusado de ateísmo pelos Inimigos de
Péricles e teve que abandonar Atenas.
Embora
partilhe a ideia fundamental de Parmênides acerca da natureza de “o que é”, não
parece, contudo, ter sido influenciado por ele; e, comparado com a estima que
os eleáticos têm pelo pensar como forma essencial do conhecimento, que nos
eleva para além do que os sentidos nos oferecem, o ponto de vista
epistemológico de Anaxágoras parece um pouco ingênuo e atrasado. Para ele, os
sentidos fornecem uma fiel imagem da realidade, embora sejam débeis e incapazes
de distinguir as pequenas partículas das coisas. E a suspeita da relatividade
das propriedades sensíveis, que já Heráclito entrevira, encontra-se em Anaxágoras
na afirmação de que um objeto parece tanto mais quente quanto mais fria está à
mão que pega nele. Em geral, afirma que as coisas contrárias se percebem pelos
seus contrários. As coisas possuem, realmente, todas as propriedades que os
sentidos percebem nelas em matizado conjunto. E como supõe que as propriedades
não podem variar, resulta daí que admite a existência de uma infinidade de
matérias qualitativamente distintas (spermata,
ou semente) que, em partículas infinitamente pequenas (homeomerias), preexistem
desde o começo. É esse o sentido de muitas considerações suas, como por exemplo
a seguinte: o pão, fabricado com plantas, ajuda ao desenvolvimento do nosso
corpo. Este contém todavia matérias muito diversas; pele, carne, cartilagens,
ossos, cabelo etc. Fica excluída qualquer transformação de umas matérias nas
outras. Portanto, devem preexistir no pão elementos de todas as matérias,
embora, devido à sua pequenez, não sejam perceptíveis aos nossos sentidos.
Porém, como puderam chegar estes elementos ao pão, e anteriormente ao trigo,
senão por meio da terra, da água, do ar e do fogo (isto é, pelos raios
solares)? Portanto, estas coisas, aparentemente as mais simples e mais
homogêneas, são, na realidade, as mais complicadas. Por muito que estas ideias
sejam contrárias aos resultados da ciência moderna, especialmente à química,
mostram todavia uma coincidência metódica geral com esta; os processos
fisiológicos e químicos aparecem despojados de qualquer animação mítica, e são
considerados puramente mecânicos; isto é, como fenômenos de movimento.
Anaxágoras
interpreta também sob forma mecânica o fenômeno da evolução do universo: “No
princípio, todas as coisas estavam juntas”; existia um caos de homeomerias
completamente misturadas entre si. O nosso mundo nasceu do caos por um processo
mecânico de separação e de reunião. A transformação completa (isto é, o
movimento de rotação), que hoje ainda contemplamos nos corpos celestes, fez com
que o mundo nascesse do caos. Começou o torvelinho num ponto do universo (no Polo
Norte), e por choques e pressões ocorridas se propagou a toda a massa. As
massas de matéria igual se deslocaram juntas: “O pesado, fluído, frio e obscuro,
se apresentou junto ali onde se encontra atualmente a terra (que Anaxágoras
situava no centro do mundo); o leve, quente e seco, subiu pelo éter”. Esta
separação, contudo, não é completa: existem “em cada parte fragmentos de todas
as outras”. As coisas deste mundo não são completamente separadas como se
fossem cortadas a golpes de machado.
De
onde vem então o impulso que engendra esse torvelinho que faz nascer o mundo do
Caos? A resposta a esta pergunta se distingue das que deram todos os filósofos
anteriores (como foi observado e aplaudido por Aristóteles; v. § 23). A ordem
do mundo, ensina Anaxágoras, não pode se proceder senão do Espírito, do Nous. Este é “a mais fina e pura de
todas as coisas”, uma espécie de “matéria pensante”, possui “todo o saber sobre
tudo, sobre o passado, o presente e o futuro”, e, ao mesmo tempo, resultado da “máxima
força”. Mas no conceito do Nous não
está todavia contida a ideia de um espírito completamente imaterial e divino. O
Nous é suscetível de se dividir e se
encontra presente, em medida maior ou menor, em todo o ser vivo, inclusive nas
plantas. Quanto mais Nous há no
homem, tanto maior é o seu conhecimento. Assim como o fogo de Heráclito é ao
mesmo tempo o suporte da inteligência cósmica, igualmente o Nous de Anaxágoras não é uma substância
puramente imaterial, mas, por assim dizer, um éter inteligente, um fluído
dotado de razão e princípio de movimento, ao mesmo tempo que “um Deus que
impele de fora” (Goethe) (1).
Platão
e Aristóteles censuravam Anaxágoras por fazer do Nous uma espécie de segundo prato; pois servia unicamente para
explicar o impulso da evolução do mundo, mas não a ordenação, a finalidade e a
beleza do Cosmos. Porém, do ponto de vista da moderna ciência da natureza, Anaxágoras
merece menção especial: pois que, graças a este papel desempenhado pelo Nous, unicamente como introdutor no
processo cósmico, pode este ser explicado mecanicamente, assim como também a
natureza inteira, o que é precisamente o suposto fundamental da ciência. Por
meio desta ideologia mecanicista, Anaxágoras se colocou mesmo em nítida
oposição à interpretação mitológica da natureza, dominante entre os seus
contemporâneos. Para ele, por exemplo, o Sol não era o deus Hélio, mas sim “uma
massa brilhante de pedra” (2). Segundo a doutrina de que o Sol, a Lua e as estrelas
se desprenderam do centro cósmico, a Terra, pela força do movimento universal
de rotação, antecipa aos conceitos fundamentais da hipótese de Kant-Laplace,
acerca da origem do nosso sistema solar. De igual maneira parece pressentida a
significação cósmica da gravitação, quando, a propósito da queda acidental de
um meteoro em Egos-Potamos, diz que da mesma maneira todos os astros iriam cair
sobre a Terra, se a força do torvelinho não os que retivessem nas suas órbitas.
É também interessante observar que foi ele o primeiro a fazer uma observação
exata das fases e eclipses da Lua. Pelo contrário, é pueril a suposição de que
os solstícios se dão porque a densidade do ar obriga o Sol a retroceder. A Lua,
porém, devido à sua menor temperatura relativamente a esta densidade, seria
forçada a dar voltas mais frequentes (3).
(1)
Estes conceitos podem hoje nos parecer contraditórios; naquele tempo, porém,
não estavam separados e, portanto, não podia ainda notar-se a contradição que
envolvem.
(2)
É característica da ciência natural dessa época a afirmação de Anaxágoras,
segundo a qual o tamanho do Sol excede o da península grega do Peloponeso.
(3)
Chegaram até nosso conhecimento mais tentativas de Anaxágoras para explicar os fenômenos
naturais. O mesmo se deve dizer aos filósofos antigos. Para abreviar, não
podemos entrar em pormenores. Este fato revela que a própria filosofia era
então a ciência universal, da qual se foram separando lentamente as ciências particulares;
só algumas destas (matemática, medicina etc.) têm origem independente.
(August MESSER,
“História da Filosofia”, Editorial Inquérito: Lisboa, 1946 - obra em domínio público).
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