domingo, 7 de junho de 2020

Heráclito - Nonas Filosóficas


No tempo que medeia entre Xenófanes e Parmênides aparece Heráclito de Éfeso (535 475), que, embora influenciado pelo primeiro, se encontra em luta constante com o segundo. Pelas numerosas sentenças que dele se conservam e outras notícias, é mais fácil se fazer uma ideia da personalidade desse filósofo do que dos anteriormente tratados. Não é um investigador frio e intelectual, mas uma natureza apaixonada, artística e moral; soube captar com uma visão de gênio o essencial tal qual a multidão confusa e cambiante dos fenômenos, e com sutil perspicácia antecipa conceitos fundamentais da moderna ciência da natureza. Como os outros, teve Heráclito o destino próprio dos filósofos: ser um "solitário". Trata a massa com orgulho e desprezo: "Enche a barriga como animais". "Dez mil juntos não chegam a pesar tanto como um excelente". O orgulho aristocrata escreve unicamente para alguns raros, capazes de o compreender, e desprezando a multidão, "que, tal como os cães, ladra a quem não conhece e, como o burro, prefere o feno ao ouro". Provavelmente, procede desses "muitos" a fama de "obscuro" de Heráclito. Pelo menos, Nietzsche - pensador de análoga estrutura e intimamente aparentado a Heráclito - diz a este respeito: "Provavelmente, nunca homem algum escreveu com maior clareza e transparência. É sem dúvida breve, e será neste sentido obscuro para um leitor leviano". Sem embargo muitos dos seus fragmentos mostram uma linguagem de oráculo e alegorias dificilmente inteligíveis. Coincide com Xenófanes em excluir os deuses míticos dos poetas e os usos da religião popular. Homero e Hesíodo devem ser eliminados dos discursos públicos e açoitados; adoção das imagens não é para ele senão "querer falar com as paredes"; odeia a "impudica" prática dos cultos de Dionísio e as "pecaminosas consagrações dos mistérios".


Tal como os jônicos, Heráclito vê no mundo empírico a manifestação de uma matéria viva. Afirma, porém, mais e energicamente ainda do que Anaximandro, a incansável mudança e variação de todos os seres, e crê por isso que a substância fundamental é um fogo que incessantemente se acende e apaga. Este é, ao mesmo tempo, matéria e forma do universo e do curso cósmico. O fogo se transforma em água; metade daquele regressa ao céu sobre a forma de vapor ígneo, e a outra metade se transforma em terra. Essa torna a se converter em água, e, finalmente, em fogo. "O caminho para cima e o caminho para baixa são os mesmos". Ordenação das coisas não é obra dos deuses nem dos homens, mas existiu desde sempre, e é e será um fogo eterno e vivo, que se acende segundo medidas e se apaga segundo medidas" (Nota). Este fogo primitivo é simultaneamente o suporte da vida e do espírito; não é uma pessoa e, portanto, não deve se chamar Zeus; é porém uma matéria, dotada ao mesmo tempo de alma e de razão. A alma "seca" é melhor e a mais sábia; é um pouco do fogo divino; ao passo que as almas da massa são feitas de "barro úmido" e ignoram por isso a razão universal, e seguem o caminho das suas ilusões. Estas almas "úmidas" se assemelham aos bêbados, que não se podem ter em pé: para elas, "os olhos e os ouvidos são mais testemunhas da verdade".

No princípio cósmico (arché) dos jônicos se encontrava ainda indistintamente unidos o pensamento de uma substância permanente e o devir.

Os eleáticos depuraram o conceito do ser substancial; Heráclito o do devir e o da variação. As duas escolas desconhecem porém que ambos os conceitos se implicam mutuamente de forma necessária, e mesmo Heráclito não chegou a captar, na sua pureza abstrata, o conceito do devir; de fato, o seu fogo, eternamente mutável e variável, tem contudo certo caráter material. É assim que se deve interpretar o seu axioma fundamental: "Tudo devém". O símbolo mais exato da realidade é um rio. Visto de longe, o rio dá impressão de uma coisa permanente; mas é apenas ilusão; "ninguém pode se banhar duas vezes nas mesmas águas", porque sempre corre pelo leito uma nova água.

Até a moderna ciência da natureza mostra, com efeito, muito daquilo que aos sentidos parece em repouso, é, na realidade, movimento; recorde-se apenas as ondas aéreas, os processos químicos e os do crescimento, e os movimentos moleculares que condicionam a sensação do calor.

Porém, tal qual a transformação sucessiva de uma propriedade noutras, a sua própria coexistência atrai a reflexão do filósofo. "A água do mar é a mais pura e mais horrível: para os peixes, é potável e saudável; para os homens, salobra e daninha". "O bom e o mau são a mesma coisa". Pode se ter a impressão de que semelhantes frases aludem ao fato de as propriedades sensíveis das coisas e o seu valor não pertencerem a estas absolutamente (em si mesmas), mas sim relativamente, isto é, em relação com determinado órgão sensorial e determinadas condições de discriminação.

Esta legítima impressão se encontra porém exagerada aqui pelo pensamento jovem e turbulento do nosso filósofo, de tal forma que ele parece afirmar a identidade das coisas contraditórias. Em muitas outras sentenças encontramos todavia uma clara determinação do significado que têm as contrações em todas as ordens da realidade. "A doença fez a saúde desejável; a fome, a saciedade; a fadiga, o descanso". Mais ainda: a contradição, "a guerra", aparece como "pai e rei de todas as coisas". Inclusive o processo cíclico do universo se realiza graças a contradições, e o próprio conhecimento humano mostra as oposições entre sensibilidade e razão; e, finalmente, existe na vida prática uma acentuada oposição entre a liberdade e a escravidão.

Precisamente, este sentido geral da contradição serviu a Heráclito para se elevar à ideia do determinismo ou regularidade universal (que encontramos, formulada matematicamente, e que é, ainda hoje, o fundamento de toda a nossa concepção do mundo). "O sol não ultrapassará as suas medidas; se o fizesse, sobrevinham as Erínias (as vingadoras dos deuses), as defensoras do direito". "Aquele que fala segundo a razão deve se apoiar no que é comum a tudo, da mesma forma que o Estado se apoia sobre a lei, mas mais ainda, pois todas as leis humanas são alimentadas por uma lei divina". É este determinismo que produz a ilusão do repouso no seio do movimento; deve ser considerado como a razão (logos) do universo; e encontrar naquela a norma dos atos, é o problema da razão humana. Graças a esta doutrina panteísta da razão universal, Heráclito foi o ideal e o modelo dos estoicos.

Este vislumbre do determinismo universal e, especialmente, de uma causação regular dos fenômenos naturais (um "destino" ou "direito" que domina tudo, como ele diz sob forma mítica), não o impede de estruturar esteticamente todo o processo cósmico, de acordo com o gosto dos gregos. Não compara a essência do mundo com uma divindade que age segundo fins, mas com um "rapaz que brinca", sem finalidade alguma, construindo, à beira mar, castelos de areia para tornar a destruí-los. Isto não contradiz a ideia da regularidade. "A criança estraga o brinquedo; não tarda porém a voltar a ele com o mesmo ímpeto. Recompõe-no então e reconstitui-o, regularmente, de acordo com a sua estrutura interna" (Nietzsche).

Nota: Assim se repete, segundo ele, o “eterno retorno” (Nietzsche), o nascimento e destruição do mundo, e, tanto no começo como no final de cada período cósmico, o Sol é uma massa ardente.

(August MESSER, “História da Filosofia”, Editorial Inquérito: Lisboa, 1946 - obra em domínio público).

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