quinta-feira, 7 de maio de 2020

Parmênides e Zenão: os Eleáticos - Nonas filosóficas

Enquanto no princípio cósmico (arché) da filosofia natural jônica estavam ainda confundidos os dois movimentos da conservação e da variação, ambos os conceitos vão se separar no desenvolvimento ulterior do pensamento filosófico. O conceito do ser, uno e invariável, será o conceito fundamental dos eleáticos. O conceito do eterno devir, pelo contrário, dominará na filosofia de Heráclito.


Um predecessor dos eleáticos foi Xenófones de Colofonte (570-480). A Crítica, livre e ampla, que fez as concepções religiosas e morais do povo, contribuiu para que, por causa da conquista da Jônia pelos persas (545), abandonasse a sua pátria, percorrendo até a velhice toda a Grécia como poeta ambulante. Enchia-o de mau humor o fato dever que gente de espírito tosco, vencedoras nos torneios, nas corridas pedestres, e nas de carros, fossem objeto da mais alta estima. "É injusto preferir a força do corpo a da boa sabedoria", dizia ele. E ainda: "vale mais a nossa sabedoria do que a força do homem e do cavalo".

A sua consciência moral, mas de exigente, protestava contra os excessos dos deuses, tais como Homero e Hesíodo os descrevem. Os homens não podem aprender destes deuses senão "o roubo, o adultério e o mútuo engano". Em geral, tende a superar a interpretação antropomórfica (ou humanizadora) do divino. "Se os bois ou os leões pudessem fabricar estátuas, representariam os deuses como bois ou leões". Não nega em absoluto a multidão de deuses, mas afirma a unidade do governo do universo: há um deus,  que é o maior de todos, e não é igual à forma e ao pensamento humanos. Não é um deus exterior e superior ao mundo, antes o interpreta num sentido algo panteísta, como um espírito universal, que anima todo o mundo, sem deixar de possuir certos caracteres materiais e humanos. "Ele vê tudo, ouve tudo, pensa tudo". "Eternamente permanente no mesmo sítio; todo movimento lhe é estranho, porque nada o força a se mudar de aqui para além". "É uma quimera os mortais crerem que os deuses nascem e possuem as sensações, a voz e a forma dos mortais".

Influenciando pelo panteísmo de Xenófones, assim como pela doutrina dos pitagóricos, encontramos Parmênides de Eleia (no sul da Itália), pensador original (1). Já nas doutrinas dos jônicos dominava a tendência para ir além do mundo dado aos sentidos, com todas as suas mudanças, por meio de uma substância permanente e fundamental. Mas consideravam ainda esta como algo vivente, que produz as múltiplas formas e variações do mundo dos sentidos. Parmênides, pelo contrário, procura determiná-la com todo o rigor, como o quê permanece idêntico a si mesmo, o especialmente permanente. "Como poderia o que é chegar a esgotar-se? Como poderia nascer?" "Não te permitirei que digas ou penses que procede do não ser, porque o não ser é inefável e impensável". "Também é proibido, pela força da evidência, crer que, junto do que é, haja algo distinto dele". O que é, é portanto inacessível e imortal, subtraído até à "mudança de lugar e de cor"; é "um todo indivisível, uno, compacto, igual a si mesmo em qualquer parte, que não é mais aqui e menos ali (incapaz, portanto, de condensação), semelhante à carga de uma esfera perfeitamente redonda e homogênea". Mas esta esfera não se move num espaço vazio, porque então haveria um segundo ser. Pois bem: não pode haver vários seres, porque para separá-los seria necessário a existência de algo que não é, e o não ser não existe. O que é, é, portanto, eterna unidade.

Parmênides

O conceito cujo esclarecimento por meio do pensamento se intenta aqui de maneira tão enérgica como rude - era necessário criar antes uma linguagem filosófica - é o conceito do que se conserva, o conceito de substância, cuja significação preocupava já os jônicos (§ 2, conclusão ). A importância deste conceito para a interpretação científica da natureza se revela no fato de ser a conservação da matéria e da energia ainda hoje o suposto fundamental da ciência moderna da natureza. Pois bem: este princípio não diz outra coisa senão que a matéria e a energia são "substâncias". Com esta tendência para interpretar a realidade como substância se encontra em Parmênides o pressentimento da lei suprema do pensar (a identidade, A = A), assim como também é inegável o apelo a experiência sensível: posto que, à semelhança da esfera celeste, crê que o ser é uma esfera sólida, homogênea. Mas desde o momento em que não distingue entre o ser e o espaço, era de esperar que Parmênides concebesse o ser como infinito. Mas isto repugnava ao sentido estético da plástica grega e à ingênua hipótese, arraigada no seu pensamento, segundo a qual somente podem existir, na realidade, as coisas dotadas de valores ótimos. O informe, o indeterminado, por assim dizer inacabado, parecia aos gregos desprovido de valor e, portanto, inexistente.

O ser, pelo contrário, era para eles a esfera perfeitamente redonda, limitada, a bela forma. Finalmente, revela-se a deficiente análise dos conceitos em que este ser não é já puramente material, mas vai também compreendendo a pouco e pouco caracteres espirituais.

Visto que o ser é uno e imutável, toda a multiplicidade, todo o devir, toda a variação é apenas aparência e ilusão. Portanto, os eleáticos representam a mais autêntica tendência para um monismo rígido; somente "é", só "existe" realmente o uno, o absolutamente quiescente, o que permanece sempre idêntico a si mesmo. O mundo inteiro dos sentidos, com a sua multidão de coisas e propriedades, as suas incessantes mutações e radicais transformações, não existe. Nessa doutrina tão assombrosa se manifesta, porém, a total insuficiência do conceito de um ser sem propriedades, para pensar adequadamente a realidade.

Sem dúvida, os eleáticos não se assustam ante o que há de paradoxal nas suas doutrinas; afirmam que a percepção sensível, que nos representa a multiplicidade e a variação, é puramente subjetiva e, portanto, ilusória. Pela primeira vez na história, ensina-se que somente o pensar nos faz conhecer o conteúdo verdadeiro e objetivo das coisas; pois "o mesmo é pensar e ser", isto é: unicamente o ser verdadeiro (e não o não ser) pode ser pensado. E reciprocamente, só por meio do pensar podemos chegar ao ser.

Ao dizer visto, Parmênides esquece, sem dúvida, que a sua certeza da existência de uma realidade, que enche o espaço todo, repousa somente na percepção sensível.

Além disso, poderia dirigir-se-lhe a seguinte crítica: para pensar é preciso pensar em algo. Se se chama a este algo o ser, então coincidirão o "pensar" e "o pensar do ser". Pensamento (mais exatamente: "conteúdo do pensamento") e "ser" seriam idênticos.

(Se se pretende que o pensar e o ser no sentido estrito são idênticos, desaparece o dualismo entre a consciência e o seu objeto, dualismo que é essencial ao conhecimento).

Mas os eleáticos identificaram, simplesmente, o ser com o ser real, sendo assim que o ser, em geral, compreende além disso tudo o que é puramente pensado, irreal ou, simplesmente, "válido". Se em contraposição ao real chegamos a tudo isto "não ser", então poderemos dizer que pensamos ou não ser. (O melhor, certamente, é distinguir o ser ideal do ser real).

Além disso, Parmênides não pode deixar de tropeçar na percepção sensível e na opinião (doxa) nela fundada, e atribuir uma certa "existência aparente" ao mundo percebido, que não pode ser posto de parte pela filosofia. O seu poema "Sobre a Natureza" - do qual se conservam somente fragmentos - divide-se, pois, em duas partes: uma que trata da doutrina da verdade, e outra da doutrina da aparência. Enquanto a primeira desenvolve a teoria do ser que acabamos de expor, a segunda contém uma cosmogonia semelhante à de Anaximandro. Na medida em que somos homens, o mundo da "opinião" ("o mundo como representação", como diria Schopenhauer) tem realidade para nós. Aqui aparece, pela primeira vez entre os gregos, a teoria dos "dois mundos". O mundo intuitivo que nos circunda, o único que nos é dado na percepção, e de cuja realidade é praticamente não podemos duvidar, fica rebaixado ao nível de mundo aparente. O mundo verdadeiro, pelo contrário, é uma realidade oculta aos sentidos e acessível tão só ao pensamento. Com isso, o monismo eleático converte-se, no fundo, a um dualismo. Os opostos engendram o mundo sensível. De um lado encontra-se o luminoso, o cálido, o leve, o tênue, o ativo, ou masculino. Do outro, obscuro, o frio, o pesado, o denso, o passivo, o feminino. Por isto, todo o seu conhecimento se reduz ao conhecimento das oposições e da sua recíproca dependência (relatividade). Desta maneira, na escola jônica em que predomina a teoria da natureza (física), encontra-se o começo da reflexão sobre o conhecimento e sobre o que se encontra escondido por trás da natureza. Por isso é Parmênides o fundador da teoria do conhecimento e da metafísica. O quadro oposições pitagóricas pode ter influído neste ponto.


Entre os discípulos de Parmênides merece especial atenção Zenão de Eleia (provavelmente 490-430). Partilha a doutrina do ser do seu mestre, pondo em relevo as contradições existentes nos conceitos de espaço vazio e de movimento. Opõe a seguinte objeção ao conceito de espaço: se o ser se encontra num espaço vazio, este deverá ser algo e, portanto, deverá encontrar-se por sua vez no espaço vazio, e assim sucessivamente, até ao infinito (2).

Intenta provar da seguinte maneira que é impossível o movimento, isto é, a deslocação de um segmento qualquer: antes que se deslocasse a segunda metade do segmento, teve que deslocar-se a primeira, antes que a segunda metade desta primeira se desloque, terá que ter se deslocado a primeira, e assim sucessivamente. Portanto, se considerarmos uma parte qualquer do segmento, que não contenha o extremo inicial, veremos que contém infinitas partes que não podem se deslocar antes que o tenham feito outras.

Em confirmação da refutação do conceito de movimento, aduz Zenão a prova de que o mais rápido corredor, Aquiles, nunca poderá alcançar uma tartaruga. Suponhamos que Aquiles anda dez vezes mais depressa que a tartaruga, mas que esta sai com um metro de avanço. Enquanto Aquiles percorre este metro, a tartaruga terá progredido um certo segmento (1/10 m); enquanto aquele percorre este novo segmento, a tartaruga adiantar-se-á outro segmento (1/100 m) e assim até ao infinito (3). Ao raciocinar assim esquece que uma grandeza não deixa de ser finita pelo fato de ser infinitamente divisível (4).

Outra dificuldade (aporia) do movimento é a seguinte: uma flecha que voa se encontra em repouso. Demonstração: em cada momento do tempo ocupa a flecha um determinado espaço. Mas ocupar um lugar determinado do espaço se chama estar em repouso. Como será possível obter o movimento com vários repousos?

Contra isto haveria a observar que um corpo que se move continuamente nunca se encontra num lugar, por pequena que seja a parte de tempo que se pense, mas está sempre em transição de um lugar para o outro. O movimento, por breve que se suponha, será sempre movimento e nunca repouso. O movimento não pode se compor ou derivar-se de imobilidades. Mas se se considerasse um momento estritamente inextenso de tempo, então não se poderia dizer que a flecha se move nem que está em repouso; porque movimento e repouso só podem se dar onde há uma pluralidade (pelo menos uma dualidade) de movimentos sucessivos, nos quais a coisa está no mesmo ou em destinto lugar. Analogamente, o contínuo não pode se conceber como é formado pela adição de unidades separadas (discretas) (5). O conceito de continuidade é, logicamente (isto é, por motivo do seu conteúdo), anterior ao de descontinuidade. Por isso, o conceito de duração (que é continuidade) é anterior ao conceito de ponto temporal (instante, momento). É unicamente o limite de um segmento temporal, algo distinto do contínuo. É, com efeito, característico da consciência do tempo, pensar a pluralidade de momentos temporais separados, como imersa num lapso contínuo de tempo. Se se intentar pensar o movimento como uma série de posições estáticas no espaço, deixa-se, por esse simples fato, de pensar no movimento. Nem os seguimentos temporais, nem os espaciais, podem se considerar compostos de pontos inextensos.

Com razão chama Aristóteles a Zenão descobridor dá Dialética (arte da conversação científica, da "disputa").

(1) As indicações sobre a data do seu nascimento situam-se em 540. Provavelmente, a doutrina do ser, de Parmênides, influenciou a seu turno as teorias de Xenófanes.

(2) A isto haveria a que se observar que o lugar pertence à coisa; que a espacialidade pode ser uma determinação do ser (do real), mas não necessita por isso de ser algo real em si mesma.

(3) De fato, alcança-o depois de ter percorrido 1/9 m, pois como Aquiles corre dez vezes mais depressa, percorre durante este tempo 10/9 m (= 1 + 1/9 m). Isto não basta para uma refutação filosófica de Zenão, mas se trata unicamente de provar que o que é um fato indiscutível pode também pensar-se sem contradição lógica.

(4) A série infinita 1/10 + 1/100 + 1/1000 + .... não suporta o valor de 1/9.

(5) Os problemas aqui apresentados foram tratados mais tarde pelo cálculo infinitesimal.

(August MESSER, “História da Filosofia”, Editorial Inquérito: Lisboa, 1946 - obra em domínio público).

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