sexta-feira, 1 de julho de 2016

Amor e anti-poesia poética em Rousseau

Para o filósofo Jean-Jacques Rousseau, o ser humano em estado de natureza é um ser dócil e solitário, incapaz de ter pensamentos e se comunicar por meio da linguagem. Na compreensão do filósofo francês do século XVIII, o ser humano primitivo age instintivamente, movido apenas por impulsos, e, como qualquer outro animal, grunhe, rosna e grita. Surpreendentemente, Rousseau é um precursor do romantismo em pleno século das luzes. O filósofo desloca a questão ontológica centrada no pensamento, por Descartes, para o sentimento. É o sentimento que define a essência humana e não a racionalidade. É o corpo e não a alma. É o coração e não a razão. Assim, em estado natural, o ser humano é livre, bom, puro, ingênuo e sincero; sua verdadeira natureza. Entretanto, tem o seu pecado original: a propriedade privada. Segundo Rousseau, a propriedade é o logro que corrompe o bom selvagem; mas, ao mesmo tempo, o marco civilizatório, a fundação da sociedade civil, que transforma o ser humano em um ser perverso, malicioso, traiçoeiro, ou seja, em homo homini lupus (para usar a expressão latina popularizada pelo filósofo Thomas Hobbes um século antes para descrever o ser humano em estado natural). Portanto, quanto mais distante da natureza, mais civilizado, mais social, mais prisioneiro de convenções, mais pérfido se torna. No campo, ainda conserva um pouco da pureza; na cidade, é um ser degradado. Porém, a sociabilidade não se faz sem a linguagem. Esta é um ardil e quanto mais sofisticados o pensamento e o discurso, mais dissimulado é o ser humano, habituado a enganar e mentir em sociedade.

Seria, então, impossível a poesia, para Rousseau? E o amor, irredutível à linguagem?

Talvez Fernando Pessoa tenha a resposta quando caracterizou o poeta em eternos versos: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente. Que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente”.

(Jean Pires de Azevedo Gonçalves)


Vejamos então como Rousseau entende o amor em um trecho do prefácio de seu romance epistolar Júlia ou Nova Heloísa:

(Nota: na passagem dramática que se segue, “R” é o próprio Rousseau)

(...)

R. Aprendemos a amar a humanidade. Nas grandes sociedades somente aprendemos a odiar os homens.

(...) É somente em sociedade que se aprende a falar com energia. Em primeiro lugar, porque deve-se dizer sempre de outra maneira e melhor do que os outros, e depois porque, forçado a afirmar a cada momento o que não se acredita, a exprimir sentimentos que não se têm, procura-se dar ao que se diz um tom persuasivo que supre a persuasão interior. Pensais que as pessoas verdadeiramente apaixonadas têm essas maneiras de falar vivas, fortes, coloridas que admirais em vossos dramas e em vossos romances? Não, a paixão transbordante exprime-se com mais abundância do que força, nem mesmo pensa em persuadir, não suspeita que se possa duvidar dela. Quando diz o que sente, é menos para expô-la aos outros do que para desabafar. Pinta-se mais forte o amor nas grandes cidades, nela ele é mais fortemente sentido do que nos lugarejos?

N. Quer dizer que a fraqueza da linguagem prova a força do sentimento?

R. Algumas vezes, pelo menos, ela mostra a sua verdade. Lede uma carta de amor escrita em seu gabinete, por um pedante que quer brilhar. Por mais fraco que for o fogo em sua cabeça, sua carta vai, como se diz, queimar o papel, o calor não irá mais longe. Ficareis encantado, mesmo agitado, talvez, mas será uma agitação passageira e seca que somente vos deixará palavras de lembrança. Ao contrário, uma carta que o amor realmente ditou, uma carta de um Amante realmente apaixonado, será frouxa, difusa, arrastada, sem ordem, cheia de repetições. Seu coração, cheio de um sentimento que transborda, repete sempre a mesma coisa e nunca acaba de ter o que dizer, como uma fonte viva, que corre sem cessar e nunca se esgota. Nada de brilhante, nada de notável, não se retém nem palavras, nem giros, nem frases, não se admira nada, não se é impressionado por nada. Contudo, sentimos a alma enternecida, sentimo-nos comovidos sem saber por quê. Se a força do sentimento não nos choca, sua verdade nos toca, e é assim que o coração sabe falar ao coração. Mas os que nada sentem, os que apenas têm o jargão enfeitado das paixões, não conhecem estas formas de beleza e as desprezam.

N. Estou esperando.

R. Muito bem. Neste último tipo de cartas, se os pensamentos são comuns, o estilo, contudo, não é familiar e não deve sê-lo. O amor é apenas ilusão, por assim dizer, constrói para si um outro universo, rodeia-se de coisas que não existem ou às quais só ele deu vida e, como exprime todos os seus sentimentos em imagens, sua linguagem é sempre figurada. Mas tais figuras não têm precisão nem sequência, sua eloquência reside em sua desordem, prova tanto mais quanto menos raciocina. O entusiasmo é o último grau da paixão. Quanto está no apogeu. Quanto está no apogeu vê o ser amado perfeito, faz dele então seu ídolo, coloca-o no céu, e, como o entusiasmo da devoção toma a linguagem do amor, o entusiasmo do amor toma também a linguagem da devoção. Nada vê a não ser o paraíso, os anjos, as virtudes dos santos, as delícias da morada celeste. Nesses arrebatamentos, rodeado de tão altas imagens, falará delas em termos rastejantes? Resolver-se-á ele a rebaixar, a aviltar suas ideias com expressões vulgares? Não elevará o estilo? Não lhe dará nobreza, dignidade? Como podeis falar de cartas, de estilo epistolar? Ao escrever a quem se ama, é bem disso que se trata! Não são mais cartas que se escrevem, são hinos.

N. Cidadão, vamos ver vosso pulso?

R. Não: vede o inverno sobre minha cabeça. Há uma idade para a experiência, uma outra para a lembrança. O sentimento extingue-se no final, mas a alma sensível permanece sempre. Volto a nossas Cartas. Se as ledes como a obra de um Autor que deseja agradar ou que tem a presunção de escrever, elas são detestáveis. Mas tomai-as pelo que são e julgai-as dentro de seu gênero. Dois ou três jovens simples, mas sensíveis, conversam entre si sobre interesses de seu coração. Não pensam em brilhar uns aos olhos dos outros. Conhecem-se e amam-se por demais, mutuamente, para que o amor próprio tenha ainda algum interesse entre eles. São crianças, pensarão como homens? São estrangeiros, escreverão corretamente? São solitários, conhecerão o mundo em sociedade? Interessados apenas pelo sentimento que os ocupa, vivem no delírio e pensam filosofar. Quereis que saibam observar, julgar, refletir? Nada sabem sobre tudo isso. Sabem amar, relacionam tudo à sua paixão. A importância que dão as loucas ideias será menos divertida do que todo o espírito que poderiam mostrar? Falam tudo, enganam-se sobre tudo, nada dão a conhecer a não ser eles próprios, mas, fazendo-se conhecer, fazem-se amar: seus erros valem mais que o saber dos sábios, seus corações honestos levam por toda parte, até em seus erros, os preconceitos da virtude, sempre confiante e sempre traída. Nada os ouve, nada lhes responde, tudo os desilude. Recusam verdades desalentadoras, não conhecem em parte alguma o que sentem, dobram-se sobre si mesmos, afastam-se do resto do universo e, criando entre si um pequeno mundo diferente do nosso, formam nele um espetáculo verdadeiramente novo.

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