domingo, 1 de setembro de 2019

Mayombe, entre o tribalismo e o nacionalismo

Por J.P.A.G.

Sob o contexto histórico da descolonização da África durante o século XX, em meio à dura rotina de um pequeno grupo de guerrilheiros engajados na luta pela libertação de Angola, suscitam conflitos entre os personagens que, embrenhados e isolados na floresta do Mayombe, se veem na singular circunstância de se confrontarem com suas diferenças e identidade que, na verdade, refletem características e especificidades do próprio continente africano. Ao desenrolar a trama do romance, o livro Mayombe, do escritor angolano Pepetela, pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, aborda um dos temas mais caros da independência de Angola – e, por óbvio, dos demais países africanos –, a saber, a questão antagônica do tribalismo e da construção de uma identidade nacional. Merecem alguns destaques:


a) O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) seguiu os moldes de um típico movimento de guerrilha de inspiração cubana e socialista na luta de independência de Angola contra o colonizador português. No livro, um grupo de guerrilheiros se instala numa selva na região norte do país, Mayombe. Pelo fato dos guerrilheiros provirem de diversas etnias, as contradições são inevitáveis e refletem a composição multicultural da sociedade angolana, ao mesmo tempo em que perante a necessidade da construção de uma identidade unitária nacional torna-se um empecilho. Neste sentido, o projeto nacional do MPLA devia apagar as diferenças culturais em prol de uma unidade comum, haja vista que a dominação do império português se lograva da velha máxima romana divide et impera (dividir para reinar). No romance, a questão do tribalismo é uma constante e é, no geral, um fator desagregador, uma “fraqueza”. Portanto, há o ideal de destribalização como oposição ao jugo europeu que, a princípio, superou o problema de suas minorias nacionais. Porém, é justamente o tribalismo que vai minando a própria unidade do grupo e os conflitos vão surgindo. Portanto, a libertação da Angola só poderia ser feita se os diversos grupos étnicos fossem suprimidos em torno de um mesmo objetivo, a construção do Estado nacional.

b) A resposta a essa pergunta tem relação com o que foi dito acima. A narrativa de muitos personagens, polifônica, foi o recurso para dar voz aos diferentes pontos de vistas que estão em conflito sem o privilégio de uma verdade. De certa forma, a polifonia retrata as diferenças e semelhanças dos personagens que estão envoltos na questão do tribalismo. A unidade nacional almejada passa por diversas interpretações que muitas vezes são contraditórias. Diante disso, como construir uma identidade comum e a do outro, o colonizador europeu, a quem se quer libertar, se os próprios dominados não se reconhecem como iguais? Assim, a superação das diferenças tradicionais significa que as múltiplas vozes devem descobrir-se diferentes do português na identidade angolana e assim emancipa-se do domínio colonial.

c) Homem novo é o homem que surgirá como superação do estado colonial na Angola pós-independência, um homem educado, culto, um arquétipo do homem no ideal de igualdade preconizado pelo socialismo; nas palavras de Sem Medo: “é um homem novo que está a nascer, contra tudo e contra todos, um homem livre de baixezas e preconceitos”. O homem novo na Angola independente significa a superação da tradição enraizada no tribalismo, que divide, desorganiza e gera xenofobia, a luta de todos contra todos, isto é, significa a ruptura com o passado subjugado. No projeto de futuro angolano não cabe a herança colonial permeada por distinções tribais que permitiram que invasores ocupassem a nação, explorando as riquezas e a mão de obra. O homem novo, portanto, é o homem to futuro, livre e dono do seu destino.

d) A região do Mayombe é uma região no norte de Angola dominada por uma mata muito fechada onde o grupo de guerrilheiros instala a sua base e que, guardadas as proporções, seria um equivalente, à guerrilha do Araguaia, no Amazonas. Nenhum dos guerrilheiros tinha familiaridade com o local, muitos, aliás, provinham de áreas urbanas. O Mayombe é impenetrável e insólito, não se restringindo à apenas geografia propriamente dita, pois representa um grau de significados que transcendem o espaço físico. Tal é o grau de estranhamento com o local que o próprio personagem Sem Medo chega a formular uma metáfora bastante apropriada quando compara o grupo de guerrilheiros a náufragos numa ilha chamada o Mayombe. Além disso, o Mayombe aparece como uma entidade sobrenatural, divina, o deus-Mayombe, detentor do destino trágico de seus devotos. É o espaço da alteridade por excelência, onde os personagens são obrigados a abandonar seu próprio “eu”, o que significa esquecer a sua história, o seu passado. O Mayombe é precondição para o surgimento do homem novo. 

e) Teoria é filho de uma mãe negra e um “comerciante português”, e daí o uso do “inconciliável”. Inconciliável porque, por um lado, ele é filho de um branco, que, de alguma forma, representa o colonizador, e, por outro, de uma mulher negra, representação do colonizado. Ou seja, o professor Teoria vive na pele o maniqueísmo do bem contra o mal, já que no mundo há pouco espaço para os “outros”. Curiosamente, teoria reconhece esta contradição como aquilo que o move, “o seu motor”, tal qual um movimento dialético, em que os termos contraditórios se superam. Porém, num universo em que todos devem abandonar as singularidades de sua identidade e se constituir no futuro como um novo homem, Teoria não apenas carrega no âmago do seu ser o seu passado, mas também se vê obrigado a escondê-lo.

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