Por Jean Fecaloma
Recentemente, recebi o disco Depende de onde olhar (2015), da banda Subviventes. Confesso que, por causa de meu relativo afastamento da cena punk, não conhecia a banda, formada nos já nostálgicos 1988. Nada que não possa ser corrigido. Mas antes de comentar o conteúdo do álbum, gostaria de fazer breves observações sobre o nome “subviventes”, que é, ao que tudo indica, já que não o encontrei no dicionário, um neologismo. Antes de mais nada, “subvivente” nos remete, por oposição, à “sobrevivente”, cujo significado pode ser escapar ou resistir às dificuldades, ao perigo etc. Ainda que a palavra possa estar permeada de conotação pejorativa, como, por exemplo, em “estou sobrevivendo” ou “os ricos vivem, os pobres sobrevivem”, ainda sobra um sentido positivo em “sobrevivência”, de “permanecer vivo”, graças ao prefixo sobre- (posição superior, mais do que etc.). Inversamente, em “subvivente”, não pode haver qualquer sentido favorável, porque significa literalmente “vida subtraída”, “vida inferiorizada”, “vida insuficiente”, “viver no subterrâneo ou subsolo” etc.; ou seja, o último estágio de uma escala hierárquica de valores relacionados à vida. Ora, essa breve digressão não é por acaso – como se verá mais abaixo –, pois parece refletir exatamente o que a banda Subviventes quer expressar, como podemos perceber logo na primeira música do álbum, Adeus. Esta canção bem poderia soar como um hino aos direitos dos animais ou a um tipo de socialismo que também incluísse os bichos, conclamando “A todos os animais!” contra a escravidão animal imposta brutalmente pela supremacia do ser racional: o Homem. O refrão não deixa dúvidas: “Igualdade, igualdade, sim! / Direitos aos animais, eu defendo sim / Igualdade sem nenhuma distinção / Exposição ao animal não há justificação”. O tema dos animais, tratados como objeto, ao bel-prazer dos seres humanos, e a crítica à razão (a ciência é associada à crueldade, por exemplo) também se repetem na segunda composição, Espiral racional, que traz à tona um perspectivismo relativista desconcertante que simboliza, intitula e ilustra o álbum. (Na capa, atrás das grades, os integrantes da banda, enclausurados em um cenário soturno, olhando para nós e, na contracapa, os integrantes na frente da grade, mas de costas para nós, olhando para uma paisagem montanhosa e colorida). Esta simetria contrastante, ou melhor, dissimetria perversa, é extremamente perturbadora quando se altera o referencial: “Se você não entende o que quero lhe dizer / Coloque o seu filho em uma jaula para ver / Vou fotografá-lo e até mesmo alimentá-lo / Será isso que eu quero estando do outro lado?”.
Na mesma
linha, Súplica animal, na qual a
sabedoria instintiva de um cachorro poderia dizer “Seja dez por cento do que
sou” para seu humano “evoluído”, desconstruindo qualquer sentido elevado de
humanidade e invertendo de ponta-cabeça a prepotência humana e sua pretensa
superioridade racional, também nos recorda a frase atribuída a Alexandre
Herculano e parafraseada depois por Raul Seixas: “Quanto mais conheço os
homens, mais estimo os animais”. (Rauzito: “Quanto mais conheço a humanidade,
mais eu amo meus cachorros”). Sim, tudo depende de onde olhar. Do ponto de
vista ético, é um soco no estômago! O que imediatamente me faz pensar: racional
para quê? Para fazer guerras, destruir o planeta, explorar o “homem pelo homem”?
(A mulher sequer é nomeada nas definições gerais da gramática patriarcalista,
sendo representada sempre pelo gênero masculino, tamanha é a subvivência
degradante a que foram submetidas na hierarquia social que forjou a linguagem formal).
Essa é a tônica do álbum, que nos incita a olhar não apenas pelos olhos dos
animais, mas de todos os que são “desumanizados” e, por isso, destituídos de
direitos, do direito à vida – que são muitos, por sinal, a maioria subjugada
por uma minoria que se autoproclama “elite”. A faixa seis recebe o sugestivo
nome de O levante, que é simplesmente levantar, mas também insurreição, revolta, rebelião, motim. “Levante povo oprimido”, introduz a
letra, povo esse que se rasteja, submisso, sujeitado, reduzido a mero objeto,
enquanto instrumento de trabalho, explorado pelos poderosos donos do capital. “Levante
povo oprimido / Vamos todos à batalha” e, abusando acertadamente de uma fórmula
irresistível, ao somar uma letra revolucionária a um refrão cativante, desses
que não conseguimos parar de ouvir, somos levados a erguer o punho cerrado e cantar:
“Vamos todos viver em paz / Nesta paz que a guerra trouxe / Onde todos são
iguais”. Já Futebol moderno é
sensacional e talvez seja o destaque do álbum. Resgata de algum modo o adágio
de um velho socialismo esquecido, isto é, “o futebol é o ópio do povo”,
ultrapassado na dita “pós-modernidade”, na qual, tragadas por um turbilhão de
valores nebulosos, esquerda e direita se confundem e se anulam; aquela a
defender princípios reacionários, esta a atacar por meios tortos o sistema! De fato,
nos últimos anos foram feitas tantas concessões em nome de uma falsa democracia, por parte de um liberalismo de
esquerda, que um esporte vinculado a uma empresa capitalista bilionária como a do
futebol, com seus cartolas corruptos e jogadores reacionários ostentando riqueza
em meio à decadência de milhares de torcedores miseráveis, deixou a muito de
ser objeto de crítica para se tornar fetiche de “esquerdistas” de plantão.
Felizmente, os Subviventes vêm nos socorrer e recolocar as coisas no seu devido
lugar. A letra é fantástica e merecia ser transcrita integralmente, mas é meu
dever de ofício selecionar algumas passagens. Para começar, o sentido de
alienação do futebol é escancarado: “Conto com todos vocês nessa enganação / Eu
quero ter dinheiro pra comprar o meu ‘carrão’ / Vocês querem ver o seu time
sempre campeão / Enquanto eu vivo aqui no luxo / Vocês com a miséria na mão”.
Em um dado momento da música, surge uma voz de locutor de futebol que narra uma
inconveniente partida que obviamente não passa na TV: “Apita o arbitro! Começa
o jogo. População recuada, governo no ataque. (...) a bola não chega na saúde
pública. O povo não aguenta mais! É muita corrupção, minha gente. E o tempo
passa, nação brasileira. Começa o contra-ataque perigosamente, pizza na cara do
povo, bateu, é fogo e é gol! GOOOOOOOL”. Para sentenciar com: “Sustente outro imbecil
como herói nacional / Assim fica em segundo plano / O que acontece no Planalto
Central”. É verdade que uma onda conservadora varreu a sociedade de uns tempos
para cá, mas o punk está aí para botar o dedo na ferida. E é isso o que fazem
os Subviventes. Todavia, questiona-se, a crítica à razão iluminista que permeia
todo o álbum oferece alguma esperança para os subviventes que sobrevivem à violência do Estado? E aqui retornamos ao
início de nossa resenha. A banda Subviventes retrata uma realidade
contraditória repleta de “criaturas” (animais, índios, povo oprimido,
invisíveis, viciados, trabalhadores robotizados, desempregados do exército de reserva, torcedores etc.) que tentam
sobreviver confinadas nos subterrâneos do mundo capitalista, lutando por respirar
o pouco de ar que ainda resta e enxergar uma fresta de luz num ambiente
sombrio, sufocante, opressor. Em toda parte, não há saída. Por outro lado,
descer ao submundo pode nos dar a chance de nos situarmos em um lugar
privilegiado, na medida em que podemos olhar por uma outra perspectiva, pela
qual aqueles que estão sobre a superfície e sob a luz intensa do sol não
conseguem. De todo modo, Depende de onde
olhar nos convida a olhar com os olhos de todos os subviventes, para
descobrirmos que olhamos para nós mesmos! Neste exercício de empatia absoluta,
irrestrita, altruísta, ao enxergar com olhos dos outros, dos que vivem uma vida
humilhante, vislumbramos todo o sofrimento que também sentimos, porque, no
fundo, somos iguais. O jogo de oposições, claro-escuro, racional-irracional,
superior-inferior, desaparece. Os limites, as fronteiras, idem. A partir desse
reconhecimento do outro em nós mesmos e de nossa convivência numa prisão, o valor mais alto é a liberdade e a paz só
pode ser conquistada por meio de uma guerra contra os inimigos da liberdade
(citação livre de O levante).
Entretanto: “O capitalismo não vai permitir / Não há igualdade nem justiça” (Não passarão, Subviventes). Em que pese o apartheid social e a repressão cotidiana, dentro da perspectiva dos subviventes, não há
alternativas senão romper as grades da jaula, para que todos os seres da Terra
possam conviver em plena justiça, liberdade e igualdade, levando os ideais
anarquistas às ultimas consequências “Hasteie a bandeira negra libertária / E
veja o mundo todo brilhar / Hasteie a bandeira negra libertária / E sinta a
vida em ti emancipar” (Bandeira Negra,
Subviventes). Porém, a questão fundamental não foi respondida. Como olhar pelos
olhos dos outros, dos injustiçados, dos ofendidos, relegados a uma subvida? A
letra de Razão limitada é categórica:
“Feche os olhos / Enxergue com o coração”. Utopia? Tenho a impressão de que a
mensagem dos Subviventes tem o potencial para uma transformação radical do
mundo... O problema é que a ganância cega... o ódio cega... Enfim, esses são os
meus destaques, entre um repertório de doze canções excelentes que compõem este
surpreendente álbum. No que tange a parte musical, esta transita entre um punk
rock e um hardcore tão empolgante quanto original. Espero não ter me alongado
muito e peço desculpas pelas minhas divagações filosóficas. Mas é que o
material em questão exige um cuidado redobrado e nos instiga a uma meditação
profunda sobre os diferentes pontos de vistas que nos cercam, quase sempre
divergentes e conflituosos, porém, vitais para a construção de um mundo mais
justo. E, cá entre nós, uma banda punk que sinceramente ainda levanta a
bandeira da Anarquia merece todo o nosso respeito. Realmente, durante muito
tempo não conheci a banda Subviventes, agora virei fã.
E você, está preparado para
olhar com os olhos dos Subviventes?
*****
SUBVIVENTES, Depende de onde olhar.
1 – Adeus; 2 – Espiral
racional; 3 – Índios; 4 – Mundo parado; 5 – Razão limitada; 6 – O levante; 7 –
Não passarão; 8 – Súplica animal; 9 – Homem invisível; 10 – Futebol moderno; 11
– Encenação; 12 – Bandeira Negra.
Formação: Galeão (voz),
Garrafa (guitarra), Vermelho (bateria) e Abutre (baixo). [Acho que a formação
mudou, entrou o Bolão].
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