segunda-feira, 3 de julho de 2017

Schopenhauer por Thomas Mann - parte (1)


Arthur Schopenhauer foi um filósofo romântico da primeira metade do século XIX, autor de Mundo como Vontade e Representação (1818) e Parerga e Paralipomena (1851), entre outros. Discípulo de Kant, para Schopenhauer o mundo é representação, isto é, apreensão subjetiva do objeto que pode ser intuitiva, conceitual e ideal; mas discorda do mestre quanto a incognoscibilidade da coisa-em-si, que pode ser intuída e conhecida como Vontade, princípio irracional e metafísico fundamental da realidade que aparece sob a forma de fenômenos que não são mais do que ilusões da consciência (transvestida por uma racionalidade). A Vontade, cega e irracional, não tem qualquer finalidade, sendo motivo de grande sofrimento, pois jamais poder satisfazer seu apetite voraz de querer-viver. Influenciado pela filosofia oriental, Schopenhauer aceita o princípio budista de que tudo neste mundo de aparência é dor e que só pode ser mitigada pelo não querer. Assim, a superação de todo sofrimento só é possível pela renúncia quietista às tentações do mundo e pela contemplação da obra de arte, principalmente, a música.

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SCHOPENHAUER

Por Thomas Mann

Nossa alegria diante de um sistema metafísico, nossa satisfação em presença de uma construção do pensamento, em que a organização espiritual do mundo se mostra num conjunto lógico, coerente a harmônico, sempre dependem eminentemente da estética; têm a mesma origem que o prazer, que a alta satisfação, sempre serena afinal, que a atividade artística nos proporciona quando cria a ordem e a forma a nos permite abranger com a vista o caos da vida, dando-lhe transparência.

A verdade e a beleza devem ser postas em relação; tomadas em si mesmas, sem o apoio que mutuamente se prestam, são valores muito instáveis.     A beleza que não se fundasse na verdade, que não pudesse apelar para ela, que não nascesse dela, não vivesse graças a ela, seria pura quimera - e "que é a verdade"? Tirados de um mundo de fenômenos, de uma visão do mundo submetida a múltiplas condições, nossos conceitos, como o discerne e o reconhece a filosofia crítica, não são para uso transcendente mas só imanente; esse material de nosso pensamento e, com maior razão, os juízos que nos permite construir, não são meios adequados para quem quer apreender a própria essência das coisas e a verdadeira conexão do mundo e da existência. Mesmo que, por uma experiência intimamente vivida, se determine mais convencida e mais convincentemente o que está na base dos fenômenos ainda não se terá trazido à luz a raiz das coisas. Só isto encoraja o espírito humano a tentar este ensaio, que se lhe impõe a isto e o justifica; é a hipótese necessária de que também o nosso próprio ser, o nosso mais profundo Eu, é um elemento desse "substractum" do mundo, que aí deve ter raízes e que, por conseguinte, dele talvez se tirem alguns dados que permitam esclarecer a ligação do mundo dos fenômenos a da essência verdadeira das coisas.

A história do pensamento de Schopenhauer faz-nos remontar à fonte do conhecimento em que se abeberou o Ocidente, onde o espírito científico tanto quanto o senso artístico da Europa tem origem aonde se encontram ainda unidos: ela conduz a Platão. As coisas do mundo, ensinava o pensador grego, não têm existência verdadeira; sempre em "devenir", jamais são. Não valem como objetos do verdadeiro conhecimento, pois só existe conhecimento que é em si, por si e sem mudança; ora, em sua multiplicidade , na relatividade de seu ser de empréstimo, que bem se poderia chamar um não-ser, jamais podem ser senão o objeto de uma opinião provocada por uma sensação. São sombras. O que só é verdadeiramente, o que não cessa de ser, sem jamais se transformar nem se perder, são os arquétipos, realidades a que essas sombras correspondem, são as Ideias eternas, os protótipos de todas as coisas. Ignoram estes a multiplicidade, porque, por essência, cada um deles é único, é precisa- mente o original, cujas cópias ou sombras não são mais que coisas ostentando o mesmo nome que ele, coisas isoladas, perecíveis e semelhantes. As ideias não poderiam nascer nem desaparecer com eles, porque são intemporais e verdadeiramente "existentes". Para elas não há "devenir" nem aniquilamento, como para suas cópias caducas. Só delas, pois, há um conhecimento verdadeiro, como do que é, em todos os tempos e de todos os pontos de vista.

Ter espírito científico e preparar-se para a ciência é manifestamente subordinar à ideia a multiplicidade dos fenômenos, combinar somente com ela a verdade e a autêntica realidade e firmemente se ater à abstração contemplativa, à espiritualização do conhecimento. Por esta distinção de valor entre o fenômeno e a ideia, a matéria e o espírito, o mundo da aparência e o mundo da verdade, o temporal e o eterno, Platão representa um acontecimento prodigioso na história do espírito humano e, pois, na ordem da ciência e da moral.

Sentem todos que a esta elevação da ideia, realidade única, acima dos fenômenos e da sua efêmera multiplicidade, se liga uma ideia profundamente moral, a desvalorização do sensível em benefício do espiritual, do temporal em proveito do eterno, e isto está inteiramente no espírito do futuro cristianismo: porque, por assim dizer, o passageiro fenômeno e a afeição sensual que inspira, com isso se transportam para o domínio do pecado: - só aquele que se volta para o eterno encontra a salvação, a verdade. Vista sob esse aspecto, a filosofia de Platão mostra o parentesco e a aliança entre a ciência e o ascetismo moral.

Mas outro valor tem esta distinção: o valor artístico. De acordo com essa doutrina, com efeito, o tempo é simplesmente esta visão recortada e fragmentada que um ser individual pode ter Ideias, as quais, situadas fora do tempo, são eternas. "O tempo, segundo uma bela fórmula de Platão, é a imagem móvel da eternidade". Com isso, essa doutrina pré-cristã e já cristã apresenta-nos também, em sua ascética sabedoria, um atrativo, um encanto de sensualidade infinitamente artística. Com efeito, conceber o mundo como uma fantasmagoria, multicor e móbil de imagens que deixam transparecer a Ideia, o Espírito, é atitude eminentemente artística, que, por assim dizer, de pronto restitui o artista a si mesmo. Na verdade, é ele quem, pleno de alegria sensual e pecaminosa, pode sentir-se preso aos fenômenos do mundo, às imagens do mundo, pois sabe que pertence ao mesmo tempo ao mundo da Ideia e do Espírito, porque é o Mago, graças ao qual podem estes nos aparecer através dos fenômenos. Surge aqui a missão mediadora do artista, seu papel de mediador nas encantações herméticas entre o mundo do alto e o mundo de baixo, entre a Ideia e o fenômeno, o espírito e a sensualidade; porque tal é, de fato, a posição verdadeiramente cósmica da arte; sua estranha situação e a comprometida dignidade de sua ação no mundo não podem definir-se nem explicar-se de outra maneira. O símbolo da lua, este emblema cósmico de toda mediação, é próprio da arte.

Platão artista... Uma filosofia, não o esqueçamos, não age somente - e por vezes age muito pouco - por sua moral, pela doutrina que põe na sua interpretação e na sua experiência do mundo, mas também e sobretudo por esta própria experiência que, aliás, constitui a parte essencial, primeira e pessoal de uma filosofia - e que não é absolutamente um simples acréscimo intelectual e moral à doutrina de salvação e de verdade. Muito resta ainda quando se arrancou de um filósofo sua filosofia e grave seria se nada restasse. Nietzsche, o discípulo de Schopenhauer, que renegou seu mestre em espírito, escreveu sobre ele estes versos:

O que ele ensinou não mais existe,
O que ele viveu permanece de pé,
Contemplai-o, pois!
Nada pôde submetê-lo.

A doutrina de Schopenhauer, de que falaremos agora, e o dinamismo de sua verdade têm-se prestado a tantos abusos como a mensagem de Platão, a qual, não obstante seu ascetismo científico, pôde ser amoedada em valores de arte e especialmente ser explorada por um artista de colossal talento, Ricardo Wagner (de quem talvez tratemos mais tarde). Mas a culpa não cabe certamente ao outro mestre e iniciador de Schopenhauer, àquele que o ajudou a construir seu sistema de pensamento: Kant, puro espírito, cuja natureza tanto o afastava da arte quanto o dispunha à crítica.

Emanuel Kant, crítico do conhecimento, que, do domínio da especulação, onde seu voo a extraviara, reconduziu a filosofia para o espírito humano, tomou-o por objeto de suas investigações e traçou limites à razão; Kant, na segunda metade do século XVIII, ensinava em Kõnigsberg, na Prússia, princípios muito semelhantes aos que dois milênios antes o pensador ateniense havia exposto. Toda a nossa experiência do mundo - dizia ele - está submetida a três leis e condições que são as "formas em que necessariamente se elabora todo o nosso conhecimento. Chamam-se tempo, espaço, causalidade. Mas não apreendem o mundo tal como ele pode ser em si e por si, independentemente de nosso esforço por percebê-lo, a "coisa em si"; atêm-se somente à sua aparência fenomenal, porque não são mais que as formas de nosso conhecimento. Nenhuma, multiplicidade, nenhuma aparição e desaparição é possível senão por elas três; elas são, pois, sustentadas unicamente pela aparência e absolutamente nada podem saber da "coisa em si", à qual não se poderia de maneira alguma aplicá-las. Isso se estende mesmo até ao nosso próprio Eu: conhecemo-lo somente como aparência, não em sua essência. Em outros termos: espaço, tempo, causalidade, são dispositivos de nossa inteligência, e a concepção das coisas que nos chega em imagem, condicionada por eles, se chama, pois imanente; transcendente seria a que poderíamos atingir se a razão, voltando-se sobre si mesma, se tornasse crítica da razão, depois de ter peneirado o caráter de meros modos de conhecimento que essas três formas interpostas têm''.
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Tal é a concepção fundamental de Kant. Vê-se que muito se aproxima da de Platão. Apresentam ambas o mundo visível como uma aparência, isto é, como uma parição inconsistente, que só adquire importância e alguma realidade pelo que nela transparece e se exprime. Para ambas, a verdadeira realidade se encontra acima, atrás, em resumo, "para além" de sua aparência e pouco importa, em suma, que se chame "Ideia" ou "Coisa em si".  Schopenhauer abrigava esses dois conceitos no mais profundo de seu pensamento.

Com predileção, cedo estudou Platão e Kant (em Gottingem 1809-1811). A todos os pensadores preferia esses dois, tão afastados no espaço e no tempo. Tomou-lhes emprestado o que podia ser-lhe útil e, para o seu temperamento tradicionalista, foi grande satisfação poder utilizá-lo tão perfeitamente; mas, transformou-o totalmente, conforme a sua própria natureza, que era inteiramente diferente, muito mais moderna, mais impetuosa e mais dolorosa.

Tomou as "Ideias" e a "Coisa em si". Mas, com esta, ousou temerária tentativa, quase interdita, cuja necessidade, porém, sentia, profundamente, com o ardor de possante convicção: definiu-a, chamou-a por seu nome, afirmou - posto que após Kant fosse impossível saber qualquer coisa a respeito - que sabia o que ela é: a Vontade. Seria a causa primeira e irredutível do ser, sua base mais profunda, a fonte de todos os fenômenos, a potência presente e operante em cada um deles, a criadora de todo o mundo visível e de toda a vida, porque seria o querer-viver. Ela o seria a ponto que dizer "vontade" seria falar precisamente da vontade de vida e servir-se da fórmula mais explícita, enunciar de fato um pleonasmo. Jamais a vontade quereria outra coisa senão a vida. E por que a quereria? Por que a achasse desejável? Por que tal era o resultado de alguma investigação objetiva sobre o valor da vida? Oh? Não! A esse querer, qualquer conhecimento continuaria a ser perfeitamente estranho; seria algo que não dependeria absolutamente dela, algo de primordial e de incondicionado, um impulso cego, um instinto absolutamente gratuito, de uma profundeza sem fundo e dependeria tampouco de quaisquer juízos sobre o valor da vida que, ao contrário, seriam estes juízos que dependeriam inteiramente do grau de potência do querer-viver.

A vontade, pois, este absoluto, exterior ao espaço, ao tempo e à causalidade, cegamente e sem razão, mas com o irresistível ardor de seu desejo e de sua alegria de existir, reclamaria a vida, a objetivação, e esta objetivação se realizaria de tal maneira que sua unidade primitiva se tornaria multiplicidade, o que caracteriza perfeitamente o princípio de individuação. Para saciar seu desejo, a vontade ávida de vida objetivar-se-ia segundo esse princípio, espalhando-se em miríades de parcelas que constituiriam o mundo dos fenômenos, o do espaço e do tempo e, entretanto, até no menor e no mais isolado desses fragmentos permaneceria inteiramente produto e expressão da vontade, sua objetivação no espaço e no tempo. Mas, além disso ainda: seria representação, minha representação, como a tua, a de todo indivíduo e a representação que cada qual faz de si para si - especialmente por meio da inteligência que conhece e que, nos graus superiores de sua objetivação, a vontade criou para torná-la para si - especialmente por meio da inteligência que produziria a vontade, mas, ao inverso, esta que engendraria aquela. Não seriam a inteligência, o espírito, a faculdade de conhecer, que constituiriam o elemento primeiro e dominador; seria a vontade, e a inteligência, sua serva. Seria possível o contrário, uma vez que a própria faculdade de conhecer se liga à objetivação da vontade nos graus superiores e que, sem ela, não teria nenhuma ocasião de se realizar? Num mundo que é inteiramente obra da vontade, do instinto de viver absoluto, gratuito, ignorando razões e juízos de valor, não poderia a inteligência necessariamente pretender senão segundo lugar. A sensibilidade, os nervos, o cérebro, tanto como outras partes do organismo - em particular da mesma maneira que o oposto do cérebro, órgão de conhecimento, seu polo contrário - o aparelho reprodutor - seriam a expressão da vontade num dado momento de sua objetivação e a representação resultante, igualmente destinada a seu serviço, não teria mais seu fim em si, mas constituiria um simples meio, um instrumento, que permitiria à vontade atender a seus fins, exatamente como esses outros órgãos. Essas relações da inteligência e da vontade, essa afirmação de Schopenhauer de que a primeira era apenas o dócil instrumento da segunda implicam muito de cômico e de humilhante angústia; determinam o conteúdo de todas as inclinações e aptidões do homem para se iludir e imaginar que sua vontade recebe instruções e dados da inteligência, ao passo que, segundo o nosso filósofo, é precisamente o contrário; a inteligência - independentemente de sua tarefa, que consiste em projetar um pouco de luz na vizinhança imediata da vontade e em ajudá-la em sua luta pela existência num grau mais elevado - tem por única missão servir de porta-voz à vontade, justificá-la, provê-la de motivos "morais", em suma, racionalizar nossos instintos.

Era uma apreciação notavelmente pessimista; e, de fato, todos os compêndios nos ensinam que Schopenhauer foi em primeiro lugar o filósofo da vontade e, em segundo lugar, o do pessimismo. Mas, não há primeiro nem segundo; as duas coisas não são mais que uma: ele foi a segunda, porque foi a outra e ao mesmo tempo; ele foi necessariamente pessimista, porque era o filósofo e o psicólogo da vontade. Se a encaramos como o oposto da satisfação beata, a vontade é em si mesma uma infelicidade fundamental: é insatisfação, esforço em vista de algo, inteligência, sede ardente, cobiça, desejo, sofrimento, e um mundo da vontade outra coisa não pode ser senão o mundo do sofrimento. Objetivando-se em tudo que existe, a vontade expia no mundo físico sua alegria metafísica e a expia no sentido próprio da palavra: "expia" da maneira mais terrível no mundo que ela criou e que, sendo o mundo do desejo e do tormento, se revela sinistro. É que, tornando-se mundo segundo o princípio de individuação, pela sua fragmentação na multiplicidade, a vontade esquece a unidade primitiva e, embora, não obstante todo o seu esmigalhamento, continue una, torna-se uma vontade que está milhões de vezes em luta consigo mesma, que se combate e se desconhece a si própria, que, em cada uma de suas manifestações, procura seu bem-estar, seu "lugar ao sol", a expensas de outra e, ainda mais, a expensas de todas as outras, não cessando, pois, de morder a própria carne, como aquele habitante do Tártaro que avidamente se devorava a si mesmo. É preciso compreender isso literalmente. As "Ideias" de Platão adquirem, em Schopenhauer, uma voracidade incurável, porque, graus atingidos pela vontade que se objetiva, disputam uma à outra a matéria, o espaço, o tempo. Deve o mundo vegetal servir de alimento ao mundo animal e cada animal, por sua vez, de presa e alimento a outro, e assim a vontade de vida não cessa de se devorar a si mesma. O homem, enfim, considera o todo como criado para seu uso e contribui por seu lado para assinalar com a mais espantosa evidência o horror do combate de todos contra todos, o auto-estraçalhamento da vontade, segundo a máxima "Homo hominis lupas".