sexta-feira, 15 de março de 2019

Cultura punk: anarquismo e juventude

Movimento punk

O punk é considerado um elemento indissociável da cultura britânica do século XX. Assim como os ônibus vermelhos de dois andares, policiais desarmados e o Big Ben, no imaginário popular o punk também faz parte do patrimônio cultural da Inglaterra. Quando surgiu, seu ideário e estilo refletiam o clima político, social e econômico do final da década de 1970. 


Nessa época, o punk aparecia como uma cultura jovem distinta e que, por sua vez, provocou verdadeiro pânico moral na tradicional sociedade inglesa. Mais significativamente, o punk mobilizou uma prática política e cultural contestadora, por parte de uma parcela da juventude ligada à classe operária, em resposta ao “thatcherismo” capitaneado pelo Partido Conservador. Suas letras e iconografia negavam, através de uma postura anarquizante, a política como um todo, ao mesmo tempo em que desafiavam os ditames e monopólios da indústria musical. O punk lutava acima de tudo contra a alienação e por liberdade plena, assumindo uma atitude de anticensura na qual questionava hierarquias sociais e a desigualdade social e econômica.


Mas apesar do punk oferecer um espaço de contracultura para vozes dissonantes, aqueles que nunca tiveram o direito de falar, os excluídos da cultura, da sociedade e das políticas tradicionais, permitindo assim uma diversidade de experimentação artística sem precedentes, que desafiava as normas da indústria cultural, bem como da ordem social vigente; com o tempo, o punk foi sendo mistificado e absorvido pela narrativa mais ampla da história da música pop. O movimento punk, que inicialmente questionava os alicerces do establishment, também acabou por ocupar as prateleiras dos grandes magazines, gerando lucros vultosos para a indústria fonográfica.


Política anti-política

O surgimento do punk como estilo e forma cultural, ideológica e musical, é reconhecidamente relacionado à banda inglesa Sex Pistols. As músicas "Anarchy in the UK" (1976) e "God Save the Queen" (1977) escandalizaram a mídia e a opinião pública britânica, o que acabou por definir o punk como uma cultura jovem abertamente politizada e de contracultura. Essa percepção foi reforçada pelos significantes políticos exibidos pelos punks (símbolos da anarquia etc.) e por grupos como The Clash, que fazia referência direta às tensões raciais, ao desemprego e às mazelas da vida cotidiana ocasionadas pela crise econômica.


Neste contexto, bandas punks se engajaram abertamente na campanha Rock Against Racism de 1976-1978, em resposta ao aumento das tensões raciais e ao crescimento de grupos neonazistas. Mesmo quando o punk começou a se fragmentar em diferentes tendências, ainda assim o foco crítico-político foi mantido como uma característica inerente. Se bandas pós-punk como a Gang of Four abordavam questões de consumo e relações de gênero, a cena Oi! ou skinhead se concentrava em questões de identidade de classe e Street Politics. No início dos anos 80, o anarquismo de bandas como o Crass defendia um ativismo contundente em torno da Campaign for Nuclear Disarmament (CND) – Campanha de Desarmamento Nuclear – e ações-diretas que ajudaram a iniciar o Stop the City, entre 1983 e 1984, ao qual foi descrito como um “carnaval contra a guerra, opressão e destruição” e que, de certa forma, antecipou o movimento antiglobalização dos tempos atuais. Enquanto isso, a cena musical se deslocava para a extrema direita da política britânica com a formação de bandas neonazistas.


Cultura jovem

O punk apresentou-se principalmente como uma cultura jovem. Seu principal meio de expressão era o estilo, cabelos e roupas extravagantes, a crítica social e a música punk rock ou hardcore. Seus principais adeptos eram adolescentes e jovens no início dos 20 anos. Esta juventude criticou o pacifismo de movimentos anteriores, como o hippie. O punk perdera a ingenuidade do Flower Power aprendendo que os poderosos não entregavam a paz e verdadeira justiça assim de mão-beijada. Como reação, a violência simbólica do seu estilo intencionava escandalizar e abrir brechas no sistema para depois destruí-lo.


Até certo ponto, portanto, o punk pode ser visto como um elo final na linha de "subculturas" juvenis que se estendia pelo menos até os anos 1950. No entanto, o punk surgiu em um contexto socioeconômico distinto. Se as culturas juvenis do pós-guerra se desenvolveram em conjunto com o crescimento econômico, o punk floresceu em um período de crise econômica. Consequentemente, o punk pode ser visto menos como uma cultura de aspirações idealistas e mais como uma cultura de revolta. Uma de suas características mais notáveis era seu desafio explícito aos costumes culturais e sociais predominantes.



Naturalmente, a extensão dos impactos causados pela cultura punk está sujeita a questionamentos e controvérsias. Mas, de fato, o legado punk se estendeu além do estilo e da música, influenciando amplamente a moda, as artes visuais e os espaços sociais, como clubes, lojas etc. Para muitos, o punk desenvolveu, sim, uma cultura, que convidava à criatividade e experimentações ilimitadas, através de um debate pluralista que justificava a base de um estilo de vida alternativo além do mainstream e da sociedade de consumo.

“Os Sex Pistols lançam God Save The Queen às beiras do Jubileu, em 15 de julho de 77. A música é uma feroz agressão e uma grande provocação. E a voz de Johnny Rotten passa, melhor que nunca, a mensagem punk, arrepiando a Inglaterra inteira. A letra da música começa assim: “Deus salve a Rainha/ e seu regime fascista”. É a política do confronto em plena semana comemorativa. Não pode ser mais shakespeareano, não pode ser mais teatral. A rainha é a estrela máxima do Império nesta semana em que se celebra seus 25 anos de reinado. E a outra figura-estrela nesta semana é Johnny Rotten. Faltam dois dias para o Jubileu. God Save The Queen, o compacto, está em segundo lugar no hit parade. No dia do Jubileu os Sex Pistols chutam fora Rod Stewart e se ocupam do primeiríssimo lugar. E a realeza não tem como evitar a ralé. E ao contrário do conto de fada, no qual o anão fazia vênia à rainha, aqui o Joãozinho Podre mandou uma cusparada na imagem da soberana e os punks ainda espetaram um alfinete de fraldas no rosto dela. Perfeito. Johnny Rotten declara: Não é nada engraçado estar na fila do desemprego. Mas nem por isso a música deve ser deprimente. A música deve oferecer assistência a esse lixo todo. Se o tema é a estagnação, a música deve apontar saídas e mostrar como vencer essa estagnação. Tem que ter verdade mas tem que ter humor também. Otimismo. E isso não é político” (BIVAR, Antonio. O que é punk. Editora Brasiliense: São Paulo, 1982).

sexta-feira, 1 de março de 2019

Camões vs Fernando Pessoa: Portugal

Resumo do texto “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”, de Cleonice Berardinelli.

Por J. P. A. G.

Dois poetas: Luis Vaz de Camões e Fernando Pessoa. O primeiro, eclipsando as gerações vindouras, com sua obra poética insuperável; o segundo, “o proximamente-vindouro”, destinado a receber o fardo histórico e literário de superar o “ainda-primeiro”. Pessoa, um Super-Camões.


Esta é a difícil tarefa, talvez megalômana, que se autoproclama Fernando Pessoa, pela voz de seu heterônimo Álvaro Campos, a saber, subir ao panteão dos maiores, ao lado de Dante, Shakespeare e, obviamente, Camões. Sua vontade de superação, entretanto, não é desprezo pelo ainda maior poeta lusitano, mas profunda admiração.

Muito embora a obra poética de Fernando Pessoa não referencie diretamente Camões, a reverência ao maior poeta da língua portuguesa é manifesta na intertextualidade sem precedente e marcada pelo tom ufanista sem limites de Mensagem (século XX) ao épico fundador Os Lusíadas (século XVI). O paralelo, não evidente por si, seria fácil perceber se Fernando Pessoa mantivesse o título provisório em sua coletânea de poemas: Portugal. Salta à vista, todavia, o tema retratado por ambos os poetas; em Camões lê-se: “um amor da pátria não movido De prêmio vil, mas alto e quase eterno...”; em Pessoa: “um nacionalista místico, um sebastionista racional”.  

Dissipada a névoa que os separam de início, os paralelos tornam-se ainda mais evidentes. Camões segue a tradição épica e inicia seu poema in medías res, para depois invocar a musa da epopeia Calíope, então passa a palavra ao navegador Vasco da Gama, a quem cumprirá a tarefa de narrar o poema, exaltando o grandioso reino Português. Dentre todos os reinos europeus, Vasco glorifica Portugal a um interlocutor, o rei de Melinde: “Quase cume da cabeça”. Por outra forma, em Mensagem, Fernando Pessoa alude aos versos do grande clássico da literatura portuguesa: “rosto com que fita” o “Occidente”.

N’Os Lusíadas, Camões introduz uma passagem histórica, através da narrativa de Paulo da Vasco da Gama, remetendo as origens da nação lusitana aos símbolos e brasões de nacionalidade que seguem a tradição de Ulisses até a guerra de Reconquista. Em Mensagem, Fernando Pessoa também esboça uma genealogia mítica e também atribui às origens portuguesas o herói da Odisseia. A menção a este passado é um recurso usado por Camões para introduzir na longínqua nação portuguesa o herói Viriato, líder da resistência do povo lusitano aos conquistadores de Roma. Fernando Pessoa também recorda Viriato como o segundo castelo. Ambos os poetas fazem referência a D. Henrique, do condado Portucalense. Nesta passagem, há uma citação, em Mensagem, mais especificamente a epígrafe em latim Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum, ao início de Os Lusíadas: “armas e os barões assinalados”.

Tal qual seu compatriota, Fernando Pessoa não presta homenagem a Dona Tareja, esposa de D. Henrique, a primeira rainha de Portugal. Camões havia acusado-a de não saber ser boa mãe. Pessoa, porém, apenas a trata com indiferença.

Diante disso, nota-se uma ruptura com o nacionalismo laudatório, para aquilo que a autora, Cleonice Berardinelli, denomina de nacionalismo crítico, o que representa, no caso de Camões, um desvio conceitual da epopeia clássica.

Ainda traçando um paralelo intertextual entre Camões e Pessoa, em Os Lusíadas, o marco da fundação de Portugal dá-se com o reinado de Affonso Henriques, cantado em cinquenta e cinco oitavas. O poema de Fernando Pessoa é, no entanto, bem mais econômico e dispensa ao referido rei apenas dois quartetos, muito embora significativos. Camões também é mais perdulário ao descrever a dinastia real, enquanto Pessoa se detém a D. Diniz. E aqui a uma divergência entre os dois poetas. Camões canta a liberalidade de Affonso Henriques, marcada pelo progresso cultural. Já Pessoa traz à memória os epítetos de D. Affonso, omitidos por Camões, por meio de uma metáfora na qual indica o futuro de Portugal associado à terra e ao mar: rei trovador e rei lavrador.

Novamente, Camões e Fernando Pessoa diferem quanto à enumeração dos elementos da realeza, sendo o primeiro, como vimos, mais “generoso” e o segundo, “parcimonioso”. O alvo agora, em ambos, é D. João I e sua mulher Felipa, geradores da dinastia de Avis. Enquanto em Camões a figura de maior destaque é Inês, em Pessoa, dispensa-se atenção apenas a Tareja e Felipa, rainhas de impérios, às quais o poeta não emite qualquer juízo de valor. Fernando Pessoa também dedica especial atenção aos filhos de D. João I, notadamente, D. Sebastião. Mas, em ambos os poetas, nota-se uma história de fracasso relativa aos cinco irmãos. Camões, entretanto, limita-se ao sofrimento de D. Duarte, por ter o irmão, D. Fernando, cativo dos inimigos; a D. Pedro, poucas notas; a D. João, emudece; e a D. Sebastião, seu contemporâneo, o poeta o coloca a par dos deuses. Em Pessoa, porém, há algo de positivo nesse fracasso, enquanto “dever cumprido”, e que transparece nos celebres verso de “Mar portuguez”: “Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena”. A loucura aqui é um valor muito caro, o único que restou, já que o Império se desfez.

Divergem outra vez os grandes poetas. Para Camões, D. Manuel é patrono das navegações. Para Pessoa, D. João II.

Em “Mostrengo”, Pessoa aproxima-se bastante de Camões, no que se refere ao Gigante Adamastor. Neste sentido, segundo a autora, os dois poetas portugueses constroem seus versos “seguindo o roteiro dos reis” e, para ambos, o grande herói nacional é Nuno Álvares Pereira.

Neste ponto, a autora comentará o estilo de ambos os poemas, ao qual denomina “linha sinuosa descrita pelos dois poemas – ascendente, íngrememente descendente e, por fim, em ligeira ascensão”. Assim, ambos os poetas, mas em particular Fernando Pessoa, consagram os poemas a D. Sebastião.

José Régio chega atribuir ao poema Os Lusíadas o tema da aventura tresloucada do jovem rei em Alcácer Quibir, no intuito de conquistar o Quinto Império, O Império de Cristo na terra. Esse tom glorioso dedicado a D. Sebastião da dedicatória contrasta com o último canto, em tom bem mais pessimista, no qual o poeta lamenta a própria sorte. Então Camões acaba por realizar uma crítica abarcando toda a sociedade portuguesa. Segundo a autora, o final do poema transmite, ao tentar resgatar a inspiração das musas, uma sensação de “desalento, de desencanto”: os nautas já cumpriram sua missão. Enfim, o tom baixo do poema, imiscuído pela subjetividade do poeta, subverte o modelo da epopeia e coincide com a decadência das aspirações grandiosas de Portugal.

É, enfim, o idealismo desmedido, sebastianista, o tema central dos poemas, e pelo qual Fernando Pessoa irmana-se a Bandarra e Vieira nas profecias sobre o Encoberto e o Quinto Império. Portanto, há um desespero em Fernando Pessoa, compatível ao de Camões, que se observa na própria estrutura de Mensagem, como ao que é expresso no título “Nevoeiro”, dos versos finais, marcado por uma negatividade: “Ó Portugal, hoje és nevoeiro”.

Segundo a autora, os maiores poetas portugueses apontam para uma solução: em Camões, real; em Pessoa, transcendental. “Dois poemas épicos – ou épico-líricos? - ‘de espécie complicada’, diria Pessoa, e digo eu: como convinha a Portugal”.

BERARDINELLI, Cleonice. “Os Lusíadas e Mensagem: um jogo intertextual”. In: Estudos Camonianos. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.