Lá pelos idos de 1989, eu mal entrava na adolescência e, fascinado com Surfin’ Bird, na versão dos Ramones (a versão original dos Trashmen também é muito massa), me tornei punk.
Acontece que eu vivia um grande drama, pois não sabia nada sobre punk. As músicas que eu conhecia eram as que tocavam na 89 FM e 97 FM (estação de rádio aliás muito mais bacana que a autointitulada Rádio Rock). O que rolava na programação era o basicão: Ramones, The Clash (Should I stay or should I go), Pistols (God save the queen), Dead Kennedys (Kill the Poor e Holiday in Cambodia), Garotos Podres (Anarquia Oi!), Inocentes (Pânico SP e Ele disse não) e Titãs (várias do disco “punk” Cabeça dinossauro).
Ávido
por conhecer mais sobre as bandas punks, a perspectiva não era muito boa. Na
época, não existia internet e o material especializado era muito escasso. De
vez em quando, o programa Realce (Clip
Trip) da TV Gazeta, Clip-tlip da
Globo ou Programa Livre da TV Cultura
rolava um especial punk. Porém, nada muito variado do arroz com feijão Pistols
e Clash.
Tinha
que dar sorte de alguém emprestar uma fita cassete com uma coletânea de músicas
de bandas que jamais algum dia você saberia qual eram (estou brincando, dez
anos depois, com o advento da internet, o nome e as bandas todas foram enfim
descobertos). Então você pegava a fita cassete, colocava no seu três-em-um
(vitrola, rádio e toca-fitas) e gravava uma cópia para você e outra para passar
pra frente. Essa era rede social daqueles tempos: solidariedade.
Certa
vez, eu estava andando pela avenida Paulista e vi pendurado num plástico em uma
banca de jornal uma revista com uma foto bem grande de um mina moicano. Perguntei
quanto custava para o jornaleiro. Sorte, o preço cabia no meu bolso. Voltaria
para casa, pegaria minhas economias juntadas com muito esforço (vendendo passe
de ônibus que sobrava por “descer por trás”) e no dia seguinte voltaria para
comprar.
Mal
consegui dormir à noite, tamanha a ansiedade. “E se alguém comprar e amanhã a
revista não tiver mais lá?” No dia seguinte, a primeira coisa que fiz foi ir
para a banca! Para o meu alívio a revista ainda estava no mesmo lugar do dia de
ontem. Nunca paguei algo com tanta justeza. Guardei a revista na mochila como
um tesouro precioso e fui pra escola.
Não
via a hora de chegar em casa e ler a revista, mas as horas passavam devagar.
Bateu o sinal então: hora da saída! Cheguei em casa rapidamente e tirei a
revista do invólucro de plástico que a revestia. Para minha surpresa a revista
era um pôster. Isso, a princípio, me deixou um pouco frustrado, mas depois eu
gostei. Havia muitas ilustrações e fotos de punks da gringa. Puxa, que visual
legal eles tinham, moicanos coloridos e roupas rasgadas. Eu mostrava orgulhoso
a revista para os meus amigos. Só eu tinha uma revista como aquela e a cambada
fazia fila pra ver.
A
revista é uma publicação da editora Som 3, mas não consta data (talvez 1982 ou
3). O texto é de autoria de Marília
Emília Kubrusly e traz um apanhado do movimento punk no mundo e no Brasil.
Como era de consenso nos anos 80, Marília atribui a origem do punk à Inglaterra
e não aos Estados Unidos. Se naquela época alguém insinuasse que o punk surgira
nos EUA era capaz de apanhar. Sim, algumas bandas ianques foram precursoras do
punk, assim como David Bowie também o foi na Inglaterra. O que é muito diferente
de inventar o punk. Punk, punk mesmo, punk de verdade, é e sempre foi inglês.
Isso
porque para o punk dos anos 80 a música era apenas um acessório. O que era
importante, era a “ideologia”. Música punk tinha que ser de protesto e quanto
mais tosco mais punk. Marília acerta porque o movimento punk é um conjunto de
atributos, constituído por um visual característico – cabelos moicanos e
espetados e coloridos, jaquetas, roupas rasgadas e coturnos, por uma posição
criticamente apocalíptica em relação à guerra fria e ao futuro, pela música
punk e, obviamente, pela ideologia anarquista (ainda que pouca gente conhecia bem
a teoria do anarquismo). Enfim, atributo essencial: todos deviam ser contra o
sistema e bradar o voto nulo.
Ora,
o movimento punk nasce nos bairros operários ingleses, como bem descreve
Marília, e não nos bairros de classe média dos playboyzinhos norte-americanos
que só queriam saber de cheirar cola. Marília até chega a exclamar com surpresa
que a onda punk, depois de contagiar o mundo todo, chega, enfim, com atraso na
terra do Tio Sam – tida como o lugar antipunk por excelência.
Não
resta a menor dúvida, a Meca do punk é a ilha Britânica e, gostemos ou não, não
será uma chinfrim MTV que vai roubar os louros da rainha.
Quando
Marília escreve, por sua vez, sobre o punk brasileiro, intitula a seção com o
sugestivo Punk Tupiniquim. Abre com
uma declaração de Clemente, da banda
Os Inocentes: Nós estamos aqui para revolucionar a música popular
brasileira. Para pintar de negro a asa da graúna, atrasar o trem das onze,
pisar nas flores do Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer.
Do mesmo modo que o punk inglês,
Marília se refere a “erupção” do punk brasileiro
restrita às “áreas mais pobres das regiões urbanas” da cidade de São Paulo já
no final da década de 1970.
São Paulo é pintada como uma cidade industrial poluída, cheia de “contrastes
sociais”, sem praia sem mar, ou seja, um terreno propício para o surgimento do
punk. Reporta sobre o Tuca, teatro da PUC, que abriu espaço para shows punks, e
o SESC Pompeia, que realizou, em 1982, “o 1º. Encontro Punk” (ela não menciona,
mas é o festival O Começo do Fim do Mundo),
quando do lançamento de O Que É Punk,
do escritor Antonio Bivar.
Menciona também “a loja e produtora de discos independentes Punk Rock, que
ficava no centro da cidade (ponto de concentração da maioria dos punks, que
trabalham em escritórios como office-boys ou recepcionistas)”. Como não poderia
deixar de se referir, trata do primeiro disco punk do Brasil, o Grito Suburbano,
com participação dos grupos Inocentes, Olho
Seco e Coléra, e também da
bolacha do Lixomania, de mesmo nome. Cita então as bandas daquela época:
Cólera, Skisitas, Mercenárias, Ratos de Porão, Estado de
Coma, Desequilíbrio, Negligentes, Guerrilha Urbana, Ira, Hino Mortal, Neuróticos, Dose Brutal,
Fogo Cruzado, Desertores, Psycose.
A partir disso, descreve como o punk se espalhou a partir de São
Paulo para o resto do país. A autora relembra então o 1º. Festival Punk antológico no Circo Voador em 1983
e menciona as bandas cariocas Coquetel
Molotov, Eutanásia, Descarga Suburbana, Desespero.
Conclui o texto nos seguintes termos: “O movimento punk está aí, mais vivo que nunca e com força total. Inútil tentar sufocá-lo ou pasteurizá-lo. Não vai ser tão fácil transformar o punk em marca de sabonete, como fizeram com o movimento hippie, porque essa turma não está pra brincadeira e seu lema não é paz e amor. Pelo contrario, estão a fim de enfrentar a batalha das ruas. Afinal, ‘garoto do subúrbio/garoto do subúrbio/você não pode desistir de viver’ (‘Garotos do Subúrbio’, dos Inocentes)”.
Mais de 40 anos depois e o punk continua na ativa, como podemos conferir com esse grande som Camaradas! da banda Fecaloma.
Êira Punk!!!
Trecho do texto publicado na Revista-poster Punk: Rock de Combate, Som Três/Editora 3: São Paulo, não consta ano, provavelmente entre 1983/1985.
Êira Punk!!!
Trecho do texto publicado na Revista-poster Punk: Rock de Combate, Som Três/Editora 3: São Paulo, não consta ano, provavelmente entre 1983/1985.
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