sábado, 27 de junho de 2020

Xintoísmo - Série Religiões


Após a Segunda Guerra Mundial, o Imperador Hirohito aboliu o xintoísmo como religião oficial e, assim, renunciou ao direito divino atribuído aos imperadores. Desde a promulgação da Constituição japonesa de 1889, o xintoísmo havia sido declarado uma instituição governamental, com o fim de reforçar a devoção do povo ao imperador. A terrível derrota do Japão na guerra, no entanto, abalou fortemente os alicerces da identidade cultural e nacional japonesa e a nova Constituição do país outorgou a liberdade religiosa. Neste cenário, o futuro do xintoísmo se tornou bastante incerto.

Religiões - xintoísmo

De origem antiquíssima, o xintoísmo é a religião nacional do Japão. ‘Kami-no-michi”, em japonês, é o caminho dos Kami (, deuses). Xinto (em japonês: 神道, transl. Shintō) é uma palavra de origem chinesa (Shin+Tao) e significa “caminho dos deuses”.

O xintoísmo envolve a adoração dos Kami, isto é, deuses xintoístas, que podem ser definidos como espírito, essência ou divindades do céu (como o sol e a lua), mas também os deuses lendários, os espíritos do ar, da terra, da água. Esta crença se caracteriza, portanto, pelo culto à natureza, aos antepassados e pelo politeísmo panteísta (elementos, substâncias, forças e leis naturais), com forte ênfase para a pureza espiritual, e que tem como uma de suas práticas honrar e celebrar a existência dos Kami associados a múltiplos formatos, tais como animais, plantas ou coisas, montanhas, pedras, rios etc. Neste sentido, os ídolos que se encontram nos templos são as representações dos vários Kami. No entanto, no xintoísmo antigo não havia ídolos; estes foram introduzidos apenas pela influência chinesa séculos mais tarde.

No xintoísmo não há uma série de preceitos morais (obrigações e tabus). Em termos práticos, é estipulado como um valor positivo a dependência absoluta à autoridade, encarnada desde a figura do Imperador até a dos pais, superiores, mestres, professores, a qual pode levar até o sacrifício da própria vida como limite de honra.

Neste religião, não existe um mito sobre a criação do ser humano. Em sua origem, o culto era celebrado em volta da árvore Sagrada e, mais tarde, passou a ser realizado em pequenos templos. A liturgia religiosa consiste em ofertas, orações e danças. As ofertas, originalmente apenas constituídas por alimentos e bebidas, compreendem também tecidos e fitas de papel colorido.

Rigorosamente, não há noção de pecado no xintoísmo, mas de pureza ou impureza. Há rituais e cerimônias de purificação das impurezas, cometidas tanto por deuses como por pessoas. Além das impurezas em âmbito espiritual divino e individual, é também considerado impureza provocar danos contra a coletividade, como, por exemplo, depredar diques, canais, cultivos agrícolas etc. Algumas doenças como a lepra, doenças mentais e até mordidas de serpentes também são consideradas efeitos das impurezas.

O sacerdócio é hereditário e o sacerdote só se diferencia do resto da população durante os cultos e as celebrações religiosas. Com a introdução do confucionismo e do budismo no Japão, no século VI, estas religiões começaram a se interagir e o xintoísmo adquiriu preceitos morais complexos e constituiu uma doutrina em relação ao além-mundo.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

The Diamonds - Pioneiros do Rock'n'Roll

The Diamonds foi um quarteto canadense de doo-wop, um gênero de rhythm and blues, que alcançou fama interpretando versões de canções de artistas negros dos anos 50 e grande sucesso entre 1956 e 1961.


Em 1953, Phil Levitt e seu amigo Stan Fisher foram passar as férias num balneário perto de Toronto. Naquele mesmo ano, ambos ingressaram na Universidade de Toronto. Certo dia, Phil caminhava pelo campus quando parou bem na frente do ponto de visão de um telescópio de um estudante que realizava uma atividade de agrimensura. O rapaz, chamado Tedd Kowalski, gritou: "sai da frente!" Em tom de brincadeira, Phil respondeu que Tedd parecia um tenor. Este retrucou, “e sou mesmo!” Phil então o convidou para que formassem um trio com Stan. Pouco tempo depois, Ted se lembrou de um amigo que cantava com extensão vocal tipo baixo e, assim, o trio virou quarteto. O nome desse amigo era Bill Reed.

No início, cantavam vários estilos e se apresentavam em clubes, formaturas, igrejas ou em qualquer lugar que houvesse um público interessado em boa música. Um dia, Bill Reed ouviu dizer que um grupo de cantores, chamado The Revelaires, de Detroit, estava se apresentando em um pequeno hotel da cidade e os amigos foram assistir o show. O repertório dos Revelaires incluía spirituals - música inspirada nas canções dos escravos norte-americanos - e gospel. O quarteto canadense ficou absolutamente impressionado com os cantores e, depois do set, se apresentaram ao grupo de Detroit implorando para que os cantores ensinassem algumas de suas músicas. The Revelaires acabaram adotando os garotos e ensinaram técnicas de suas músicas para eles, tornando-se, então, a principal influência para os Diamonds.

Em 1955, The Diamonds chamaram a atenção da gravadora Coral Records que lançou um compacto do quarteto que não chegou a vender o suficiente para renovar o contrato. Porém, depois de algumas audições para caça-talentos da indústria fonográfica entoando o gênero musical spirituals, o grupo conquistou a Mercury Records, que decidiu escalá-los para tocar rock’n’roll.

Após o sucesso de algumas gravações, The Diamonds se tornaram razoavelmente conhecidos e saíram em turnê pelo Canadá e os EUA. No entanto, esse sucesso, embora satisfatório e bastante substancial, era bastante limitado, o que trazia, por um lado, certa frustração para o quarteto e, por outro, uma gana para alcançar o estrelato.

Em 1956, eles resolveram gravar uma demo de uma balada com sabor havaiano chamada “Faithful and True”. A Mercury concordou desde que o lado B do disco o grupo gravasse um cover de uma música chamada “Little Darlin’”, do grupo The Gladiolas. No entanto, os rapazes concentraram todos os seus esforços trabalhando em “Faithful and True”, para só depois criar uma versão para “Little Darlin’”, com um marcante solo de baixo falado.

Os cantores estavam realmente muito empolgados com a música “Faithful and True”, pois tinham certeza de que este seria o hit que marcaria a história da banda. Durante o lançamento, eles ficaram atentos nas paradas de sucesso esperando aquilo que lhes parecia certo e inevitável, mas ficaram surpresos quando “Little Darlin’” foi subindo rapidamente no ranking das músicas mais tocadas, enquanto “Faithful and True” não saía do lugar. “É só uma questão de tempo”, diziam para si mesmos, confiantes. Mas “Little Darlin’”, é claro, acabou se tornando o grande clássico do grupo, alcançando a segunda posição nas paradas de sucesso. Só não alcançou a primeira porque Elvis Presley emplacou "All Shook Up". E ficar atrás de Elvis pode ser muito mais honroso do que alcançar o topo num curto verão, não é mesmo?

Na época, a canção “Little Darlin’” ganhou o “Disco de Ouro” mas garantiu aos Diamonds um lugar na galeria eterna do rock'n’roll – Coisas da vida!

domingo, 7 de junho de 2020

Heráclito - Nonas Filosóficas


No tempo que medeia entre Xenófanes e Parmênides aparece Heráclito de Éfeso (535 475), que, embora influenciado pelo primeiro, se encontra em luta constante com o segundo. Pelas numerosas sentenças que dele se conservam e outras notícias, é mais fácil se fazer uma ideia da personalidade desse filósofo do que dos anteriormente tratados. Não é um investigador frio e intelectual, mas uma natureza apaixonada, artística e moral; soube captar com uma visão de gênio o essencial tal qual a multidão confusa e cambiante dos fenômenos, e com sutil perspicácia antecipa conceitos fundamentais da moderna ciência da natureza. Como os outros, teve Heráclito o destino próprio dos filósofos: ser um "solitário". Trata a massa com orgulho e desprezo: "Enche a barriga como animais". "Dez mil juntos não chegam a pesar tanto como um excelente". O orgulho aristocrata escreve unicamente para alguns raros, capazes de o compreender, e desprezando a multidão, "que, tal como os cães, ladra a quem não conhece e, como o burro, prefere o feno ao ouro". Provavelmente, procede desses "muitos" a fama de "obscuro" de Heráclito. Pelo menos, Nietzsche - pensador de análoga estrutura e intimamente aparentado a Heráclito - diz a este respeito: "Provavelmente, nunca homem algum escreveu com maior clareza e transparência. É sem dúvida breve, e será neste sentido obscuro para um leitor leviano". Sem embargo muitos dos seus fragmentos mostram uma linguagem de oráculo e alegorias dificilmente inteligíveis. Coincide com Xenófanes em excluir os deuses míticos dos poetas e os usos da religião popular. Homero e Hesíodo devem ser eliminados dos discursos públicos e açoitados; adoção das imagens não é para ele senão "querer falar com as paredes"; odeia a "impudica" prática dos cultos de Dionísio e as "pecaminosas consagrações dos mistérios".


Tal como os jônicos, Heráclito vê no mundo empírico a manifestação de uma matéria viva. Afirma, porém, mais e energicamente ainda do que Anaximandro, a incansável mudança e variação de todos os seres, e crê por isso que a substância fundamental é um fogo que incessantemente se acende e apaga. Este é, ao mesmo tempo, matéria e forma do universo e do curso cósmico. O fogo se transforma em água; metade daquele regressa ao céu sobre a forma de vapor ígneo, e a outra metade se transforma em terra. Essa torna a se converter em água, e, finalmente, em fogo. "O caminho para cima e o caminho para baixa são os mesmos". Ordenação das coisas não é obra dos deuses nem dos homens, mas existiu desde sempre, e é e será um fogo eterno e vivo, que se acende segundo medidas e se apaga segundo medidas" (Nota). Este fogo primitivo é simultaneamente o suporte da vida e do espírito; não é uma pessoa e, portanto, não deve se chamar Zeus; é porém uma matéria, dotada ao mesmo tempo de alma e de razão. A alma "seca" é melhor e a mais sábia; é um pouco do fogo divino; ao passo que as almas da massa são feitas de "barro úmido" e ignoram por isso a razão universal, e seguem o caminho das suas ilusões. Estas almas "úmidas" se assemelham aos bêbados, que não se podem ter em pé: para elas, "os olhos e os ouvidos são mais testemunhas da verdade".

No princípio cósmico (arché) dos jônicos se encontrava ainda indistintamente unidos o pensamento de uma substância permanente e o devir.

Os eleáticos depuraram o conceito do ser substancial; Heráclito o do devir e o da variação. As duas escolas desconhecem porém que ambos os conceitos se implicam mutuamente de forma necessária, e mesmo Heráclito não chegou a captar, na sua pureza abstrata, o conceito do devir; de fato, o seu fogo, eternamente mutável e variável, tem contudo certo caráter material. É assim que se deve interpretar o seu axioma fundamental: "Tudo devém". O símbolo mais exato da realidade é um rio. Visto de longe, o rio dá impressão de uma coisa permanente; mas é apenas ilusão; "ninguém pode se banhar duas vezes nas mesmas águas", porque sempre corre pelo leito uma nova água.

Até a moderna ciência da natureza mostra, com efeito, muito daquilo que aos sentidos parece em repouso, é, na realidade, movimento; recorde-se apenas as ondas aéreas, os processos químicos e os do crescimento, e os movimentos moleculares que condicionam a sensação do calor.

Porém, tal qual a transformação sucessiva de uma propriedade noutras, a sua própria coexistência atrai a reflexão do filósofo. "A água do mar é a mais pura e mais horrível: para os peixes, é potável e saudável; para os homens, salobra e daninha". "O bom e o mau são a mesma coisa". Pode se ter a impressão de que semelhantes frases aludem ao fato de as propriedades sensíveis das coisas e o seu valor não pertencerem a estas absolutamente (em si mesmas), mas sim relativamente, isto é, em relação com determinado órgão sensorial e determinadas condições de discriminação.

Esta legítima impressão se encontra porém exagerada aqui pelo pensamento jovem e turbulento do nosso filósofo, de tal forma que ele parece afirmar a identidade das coisas contraditórias. Em muitas outras sentenças encontramos todavia uma clara determinação do significado que têm as contrações em todas as ordens da realidade. "A doença fez a saúde desejável; a fome, a saciedade; a fadiga, o descanso". Mais ainda: a contradição, "a guerra", aparece como "pai e rei de todas as coisas". Inclusive o processo cíclico do universo se realiza graças a contradições, e o próprio conhecimento humano mostra as oposições entre sensibilidade e razão; e, finalmente, existe na vida prática uma acentuada oposição entre a liberdade e a escravidão.

Precisamente, este sentido geral da contradição serviu a Heráclito para se elevar à ideia do determinismo ou regularidade universal (que encontramos, formulada matematicamente, e que é, ainda hoje, o fundamento de toda a nossa concepção do mundo). "O sol não ultrapassará as suas medidas; se o fizesse, sobrevinham as Erínias (as vingadoras dos deuses), as defensoras do direito". "Aquele que fala segundo a razão deve se apoiar no que é comum a tudo, da mesma forma que o Estado se apoia sobre a lei, mas mais ainda, pois todas as leis humanas são alimentadas por uma lei divina". É este determinismo que produz a ilusão do repouso no seio do movimento; deve ser considerado como a razão (logos) do universo; e encontrar naquela a norma dos atos, é o problema da razão humana. Graças a esta doutrina panteísta da razão universal, Heráclito foi o ideal e o modelo dos estoicos.

Este vislumbre do determinismo universal e, especialmente, de uma causação regular dos fenômenos naturais (um "destino" ou "direito" que domina tudo, como ele diz sob forma mítica), não o impede de estruturar esteticamente todo o processo cósmico, de acordo com o gosto dos gregos. Não compara a essência do mundo com uma divindade que age segundo fins, mas com um "rapaz que brinca", sem finalidade alguma, construindo, à beira mar, castelos de areia para tornar a destruí-los. Isto não contradiz a ideia da regularidade. "A criança estraga o brinquedo; não tarda porém a voltar a ele com o mesmo ímpeto. Recompõe-no então e reconstitui-o, regularmente, de acordo com a sua estrutura interna" (Nietzsche).

Nota: Assim se repete, segundo ele, o “eterno retorno” (Nietzsche), o nascimento e destruição do mundo, e, tanto no começo como no final de cada período cósmico, o Sol é uma massa ardente.

(August MESSER, “História da Filosofia”, Editorial Inquérito: Lisboa, 1946 - obra em domínio público).

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segunda-feira, 1 de junho de 2020

Epistolografia em Cícero, Sêneca e Plínio, o Jovem


Por J.P.A.G

Realizar uma síntese de todo o curso envolvendo troca de correspondência de autores como Cícero, Sêneca e Plínio, o Jovem, não é tarefa fácil e nos obriga a fazer grandes generalizações. Por outro lado, até mesmo por questões de método e coerência teórica, em alguns momentos será necessário realizar aproximações de casos (do corpus em questão) de maior representatividade para análise. Tratar da epistolografia em torno dos autores citados é, em primeiro lugar, um campo bastante fértil, já que o material disponível constitui os fundamentos dessa especialização. Material disponível porque cartas privadas de autores antigos que chegaram até os dias de hoje são um caso único. Essas cartas eram feitas para serem publicadas e circularem e, portanto, o grosso das correspondências se perdeu com o tempo.

Os meios materiais das correspondências da época eram, basicamente, a charta (folha de papiro, que era importado do Egito) e os codicilli (tabuinhas). O papiro podia ser lixado ou polido e, numa das cartas de Cícero, o próprio se refere ao uso do papiro: “Em breve lhe escreverei sobre a situação [política], pois já começo a temer que o próprio papiro [da carta] nos traia” (Cic. Att. 2.20.3 [julho de 59]). O papiro era escrito com uma tinta, atramentvm, também mencionada por Cícero: “[Desta vez] vou usar um bom cálamo, tinta bem misturada e até uma folha bem polida” (Cic. Q. fr. 2.14.1 [julho de 54]).

Quando se queria apagar, a folha era raspada com um objeto chamado palimpsesto. Cícero também cita este objeto em suas correspondências: “Quanto ao palimpsesto, louvo sua parcimônia, mas fico me perguntando o que havia naquela folhinha para você preferir apagá-la a não escrever esta carta” (Cic. Fam. 7.18.2 [8 de abril de 53; a Trebácio]). As tabuinhas continham cera na parte interna, onde se escreviam mensagens breves, bilhetes, recados e anotações. Cícero também se refere a estas tabuinhas em suas cartas: “Esta carta foi exigida pela insistência das tabuinhas que me enviou” (Cic. Q. fr. 2.10.1 = 14 SB [Roma, começo de fevereiro de 54]). As tabuinhas eram escritas com o stilvs, um instrumento similar à nossa “caneta”, com uma ponta em um lado e um apagador de outro.

Cícero
Quanto ao acervo epistolográfico dos autores citados, constitui-se em: 37 livros de Cícero; 20 livros de Sêneca; e 10 de Plínio. Feitas estas considerações iniciais, referentes ao objeto de estudo, por uma questão de organização, decidimos começar nossa análise pelos textos teóricos que visam dar conta desse material. As codificações das cartas dos textos latinos se serviam das correspondências dos autores clássicos como modelo do gênero epistolográfico e foram redigidas posteriormente aos textos de sua referência. A primeira codificação do gênero epistolar, Arte retórica, de Gaio Júlio Vítor, é do século IV d.C., e, como as demais, era destinada a escolares. No capítulo “Das cartas”, o ator, baseado unicamente nas cartas de Cícero, introduz o tema com uma definição bastante inovadora, na qual: “Às cartas convêm muitos dos preceitos dados sobre a conversação. Duas são as espécies de cartas, já que ou tratam de negócios ou são pessoais”. A conversação, isto é, sermocinatione, pode ser entendida como diálogo no sentido literário, em tom conversacional. A partir deste princípio, o autor estabelece dois tipos de cartas, as de negócios, relacionadas à “coisa pública” ou demais atividades, e as pessoais, de fórum íntimo ou aos amigos; muito embora as cartas de Cícero não respeitem essa distinção.

Deste modo, o autor define o tipo de linguagem da carta, que deve ser breve, clara e simples, mas nunca grosseira. Isto tem a ver com o decoro ou adequação da carta, que deve levar em conta algumas “etiquetas” e também o destinatário a quem se tem em vista. Assim, a carta não pode ser jocosa a um superior, grosseira a um semelhante e arrogante a um inferior. Entre outras coisas, ainda formula prescrições em relação ao uso de palavras em grego, provérbios, passagens históricas ou filosóficas, que devem ser usados com moderação, para não parecer pedantismo, em virtude do princípio de que rege a redação da carta, como vimos, a conversação.

Outro texto teórico, que provavelmente é posterior ao Arte retórica, já que este lhe serve de modelo, é Das cartas, de autoria anônima. Este texto é muito mais focado na questão do decoro – “é preciso considerar quem escreve a quem e sobre o quê” – e rejeita o princípio da sermocinatione. Mas tal como Gaio Júlio Vítor, o autor anônimo ensina sobre as características da redação epistolográfica como a brevidade e expressividade, a clareza da linguagem, a citação parcimoniosa dos textos clássicos e o perfil do destinatário, que deve levar em conta a idade, o sexo, a posição social, familiar, amizade etc.

Outro texto importante é a monografia Da expressão, de Pseudo-Demetrio, escrito entre o século III a.C.? e o século I a.C.?. A partir da definição do editor das cartas de Aristóteles Artemão, para quem as cartas imitam um diálogo platônico ou são uma das metades do diálogo, Pseudo-Demetrio faz uma ressalva e afirma que as cartas devem ser escritas com mais esmero que o diálogo, pois, ao enumerar características do diálogo, sugere que a forma do diálogo é obscura, em contraste à simplicidade da carta. Segundo o autor, o diálogo convém mais a um ator do que a uma carta escrita. A partir desses apontamentos, Pseudo-Demetrio prescreve normas que repetem os tópicos da epistolografia, como concisão, simplicidade, cortesia, etc., sempre usando como exemplo Platão, Aristóteles e Tucídides.

Sêneca
O último texto é Os tipos de epístolas, de Pseudo-Libânio (segunda metade do século V d.C.). Pseudo-Libânio define a carta como uma conversação por escrito entre pessoas ausentes mas que se comportam como se estivessem presentes. O autor classifica, a partir disso, uma série de categorias ou subgêneros da carta que formam uma tipologia, para a qual, para nós modernos, vale a pena destacar as “cartas de amor”. Segundo ou autor, as cartas devem ser escritas com esmero sem perder a clareza e simplicidade (um lugar comum na epistolografia, como vimos) e sempre respeitando a justa medida.

Com relação à extensão da carta, Pseudo-Libânio foge à norma e diz que ela deve “ser proporcional a seus assuntos, e não é correto desmerecer, como regra geral, a extensão longa, sendo preciso, em determinados casos, prolongar algumas cartas conforme exigira necessidade”. Tendo em vista esses textos teóricos, que visavam extrair regras gerais através da praxe epistolográfica da época, podemos analisar o contexto e as especificidades em que se davam a troca de correspondência dos autores que lhes serviram de modelo, notadamente, Cícero, Sêneca e Plínio. Nas cartas de Cícero, o humor, um componente da eloquência, é quase onipresente. Esse humor é uma característica da vrbanitas, vrbanos, isto é, característica citadina, a qual denota pessoa civilizada, da cidade e, portanto, refinada, culta, fina, bem-humorada etc. O humor urbano é gracioso, leve e polido, indicando a origem social de um indivíduo. Na carta ao seu irmão Quinto Cícero, Cícero interpõe algumas palavras gregas, que também sugere distinção social e erudição.

Outro fato interessante, que revela uma prática social expressa nas cartas de Cícero, é que há uma diferença de etiqueta entre as cartas ditadas e as cartas escritas de próprio punho, que serviam como uma assinatura. Estas últimas, diferentemente das outras, tem um caráter de intimidade e, geralmente, são destinadas a familiares e amigos próximos. Isso podia causar confusão e, a depender de quem havia escrito a carta, que podia ser de próprio punho ou escrita por um copista, libraivs, o destinatário podia acusar uma desfeita ou pouco caso. Para evitar embaraços, é interessante observar como Cícero justifica suas “faltas” através de problemas menores da vida cotidiana, como o fato de estar acometido por uma conjuntivite.

Nas cartas de contexto político, uma das questões fundamentais era a dignitas, que pode ser definido por uma posição de destaque na hierarquia, prestígio, glória ou status social. Quando da guerra cível, provocada por César, teve início, muito do que se disputava, até mesmo como pretexto, era a dignitas. Numa carta, Cícero critica Pompeu por este não ter parabenizado seus “feitos” (dignitas), ainda que ambos fossem aliados. Porém, não se trata de rompimento já que Cícero compara Pompeu ao herói romano Cipião Africano e, ao mesmo tempo, para fortalecer os laços partidários, Cícero se compara a Lélio, que era aliado de Cipião, tanto na vida pública como na privada: “Meus feitos foram tais, que esperava alguma parabenização em sua carta, por conta de nosso vínculo e da conjuntura política. Creio que você não o fez por receio de ofender alguém. Fique sabendo, porém, que o que fizemos pela salvação da pátria tem a aprovação da estima e do testemunho de todo o mundo. Quando você voltar, percebera que meus feitos demonstravam tamanho discernimento e tamanha magnanimidade, que você, que já se mostrou mais importante do que o Africano, não terão dificuldade em aceitar a mim, que não me mostrei menos importante do que Lélio, como aliado tanto na vida pública como na amizade” (Cic. Fam. 5.7 [abril de 62 a.C.]).

Em Sêneca também é possível identificar um dos tópicos da epistolografia: a linguagem simples. Diz ele em carta a Lucílio: “Queixas-te de receber de mim cartas pouco esmeradas. Ora, quem é que fala com esmero, senão quem quer falar com afetação?” (Sen. Ep. 75.1–4). É nesse sentido que Sêneca critica a eloquência de Cícero, que “fala o que vem à cabeça”, mesmo quando não tem assunto. A justificação é a de que Sêneca faz filosofia, que é tida por ele como um assunto importante, e daí o uso de máximas filosóficas e exortações morais, tais como: “Nossas palavras não devem deleitar, mas ser uteis” (idem). Trata-se da utilidade da filosofia que não é agradável e para ele, Sêneca, é uma atividade compatível a do médico: “Tua atividade e tão importante quanto a de um médico numa epidemia” (idem).

Plínio, o Jovem
Já Plínio, o Jovem, foi aluno de Quintiliano, que foi professor de retórica e tinha por referência Cícero. Em carta de Plínio a Sabino, Plínio se compara a Cícero mas se desculpa por não ter o mesmo brilho, não porque lhe faltava, a ele, Plínio, talento, mas, sim, porque sua época era menos rica do que a de Cícero. Nas palavras de Plínio: “Sem contar que nossa condição não é a mesma que a de Marco Túlio [sc. Cícero], cujo modelo você me exorta a seguir. É que ele tinha um engenho riquíssimo, alimentado por uma fartura de temas a um só tempo variados e grandiosos, à altura de seu engenho” (Plin. Ep. 9.2). Um dos capítulos mais célebres referentes às cartas de Plínio é a sua correspondência com o imperador Trajano a respeito dos cristãos. Plínio fora designado para governar o Ponto quando se viu diante de acusações anônimas em que os cristãos praticavam canibalismo e, ao mesmo tempo, conspiravam em reuniões secretas à noite contra o Império Romano. Assim, escreve ao imperador relatando sua conduta perante os processos envolvendo cristãos, de todas as idades, por uma questão legal, e os procedimentos adotados por ele para descobrir praticantes do cristianismo. Porém, Plínio, através de investigação, constata que os cristãos eram inofensivos e a denúncia provavelmente provinha de comerciantes prejudicados com a paralisação da venda de carne de sacrifício.

Na carta a Trajano, Plínio chega a falar em “infestação” de cristão, sendo um testemunho importante do crescimento desta religião no Império Romano em pleno o início do século II. No exórdio da carta, Plínio vai se apresentar ao imperador de maneira humilde, procurando aprovação de suas condutas hesitantes: “É um costume meu, Senhor, consultá-lo acerca de qualquer assunto em que não saiba bem o que fazer. Ora, quem melhor para poder por fim a minha hesitação ou sanar minha ignorância?” (Plin. Ep. 10.96 [Ponto]). Em seguida, adota uma justificação apologética para o imperador: “Nunca participei dos inquéritos sobre os cristãos, razão pela qual não conheço a natureza ou o limite dos castigos e das investigações” (idem). Ele segue a carta relatando que cumpriu o protoloco, que não foi injusto nem cruel e que puniu os mais renitentes. “Não tinha dúvida de que, qualquer que fosse a natureza do que confessavam, sua teimosia e obstinação inflexível deviam ser punidas” (idem). Percebendo que as denúncias não procediam e que o cristianismo além de não representar risco algum não passava de “superstição equivocada e desmedida” (idem) resolveu suspender o inquérito e se aconselhar com imperador. Mas avisa que, por causa das medidas tomadas por ele, Plínio, os templos, que estavam abandonados, voltaram a ser frequentados e o comércio de carne foi restabelecido.

Conclusão

Acredito ter abordado aqui os principais temas da epistolografia envolvendo autores clássicos como Cícero, Sêneca e Plínio. Um ponto a ressaltar é a sofisticação das cartas, para a qual elementos da retórica são evocados. Evidentemente, o material é muito farto e haveria muito a se discutir ainda a respeito; porém, o limitado espaço não permitiria um aprofundamento dessa natureza, haja vista o caráter introdutório do curso. A base para a elaboração deste trabalho provém de anotações das aulas e da leitura dos textos traduzidos pelo professor Adriano Scatolin (USP).