sábado, 1 de agosto de 2020

Jubiabá entre a Casa Grande & Senzala


Por J.P.A.G

Este artigo procura estabelecer, através da literatura comparada, possíveis relações entre o aspecto do ponto de vista da câmera do filme Jubiabá, de Nelson Pereira dos Santos (1986) e o capítulo lido do livro Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre (1a ed. 1933).


Muito embora Gilberto Freyre seja considerado um conservador, como de fato fora, ainda mais quando pensamos em sua contribuição ao regime salazarista e o projeto lusitano de manutenção do império colonial em terras africanas, sua obra, em especial Casa Grande & Senzala, representou uma ruptura na historiografia da época, que preconizava ou uma suposta e irreal origem ariana do brasileiro ou a sua inferioridade física e intelectual, determinada por condições climáticas e, acima de tudo, pela mestiçagem racial. De fato, as teses de Freyre neste aspecto foram bastante revolucionárias, pois, ao invés de renegar a origem mestiça da formação do povo brasileiro, o sociólogo atribuía um valor positivo à mistura de raças que caracterizava a colonização brasileira. O negro então, em sua obra, aparece como um elemento de cultura positivo e não como algo incômodo que deveria ser eliminado. Essa origem mestiça, como explica o autor, em sua obra Casa Grande & Senzala, é anterior aos ditos descobrimentos e remonta à própria metrópole portuguesa, não só por causa das condições climáticas de Portugal, similares às de suas colônias, mas, sobretudo, porque Portugal foi palco de inúmeros contatos populacionais, acolhendo, portanto, povos de diversos matizes étnicos, como, por exemplo, romanos, visigodos, judeus, mouros etc. Neste sentido, a colonização das terras brasileiras seguiu esse padrão inerente à nação portuguesa. Dono de um estilo de escrita sensual, às vezes, chocante, Gilberto Freyre procura com isso dar conta da própria característica da povoação em território colonial, no qual o português aparece, para ele, como uma raça viril, enquanto o elemento indígena e africano como raças afeminadas por natureza. É neste contexto de adaptação “lusotropicalista” que vai surgir a célula da sociedade brasileira, ainda em estado de embrião e em vias de desenvolvimento: a família patriarcal. A família patriarcal, assentada no latifúndio, monocultura e trabalho escravo, constituí-se através de um antagonismo promíscuo entre casa grande, sede da família patriarcal de origem portuguesa, portanto, branca, e senzala, local onde ficavam os escravos, normalmente, negros de origem africana. Esta distinção fundamental caracterizou a estrutura formativa da sociedade brasileira.

Feitas estas considerações, pode se dizer que a estrutura de fundo das cenas selecionadas em aula do filme Jubiabá é reflexo do binômio casa grande-senzala de que fala Freyre. A primeira cena, enquadrada em plano panorâmico, mostra uma correria de garotos descendo um morro, que de tão longe, aparecem como um grupo de quatro ou cinco vultos. A cena, ao ar livre, retrata uma árvore no canto esquerdo da tela, o que sugere um lugar não urbano ou a periferia de uma cidade. A sequência, ainda em panorâmica, já localiza os meninos em uma área de construções residenciais pauperizadas, uma favela ou um bairro de periferia. Na cena seguinte, em plano médio, alguns homens cantam e tocam pandeiro num bar. As cenas que se seguem focam o menino Antonio Balduíno indo para casa, onde mora com sua tia Luísa. A essa altura, já está claro de que se trata realmente de uma favela. Nela, os personagens são em sua maioria negros e há uma atmosfera de desamparo sobre a ambientação retratada. Essa situação de desamparo é intensificada com o surto de loucura da tia de Balduíno, responsável por sua criação. Traçando um paralelo com o livro de Freyre, aqui, fica bastante claro que o diretor do filme enfoca a favela, que seria uma espécie de atualização da senzala. O segundo momento, a se destacar, é quando Balduíno é levado para ficar aos cuidados do comendador Pereira. O filme retrata ambientes internos, isto é, dentro de uma casa, e, cena simbólica, a família do comendador ao redor de uma mesa se prepara para a refeição. Todos os personagens são brancos, incluindo a cozinheira Amélia, que com a chegada do menino negro desperta sua desconfiança. Neste momento, claramente, há uma referência evidente à esfera da casa grande. Na cena em que a família almoça, em plano médio, há uma sugestão de encantamento entre Balduíno e Lindinalva, menina loira, filha do comendador. Daí se deriva toda a trama do enredo e, do ponto de vista sociológico, remete à proibição de um relacionamento de um homem negro com uma mulher branca, algo que, a julgar pelo texto de Gilberto Freyre, não seria tão escandaloso se como costumava acontecer um homem branco, o patriarca, se relacionasse, desde que para fins carnais apenas, com uma mulata ou negra da senzala. O amor impossível por Lindinalva, tornado claro na cena em que Balduíno toma conhecimento de seu casamento com um homem branco, reforça ainda mais sua condição de marginalizado, o que o leva, simbolicamente, a perder uma luta de boxe contra um alemão, caracterizando ainda mais sua posição social de excluído.


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