No Meio do Caminho
No
meio do caminho tinha uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
tinha
uma pedra
no
meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca
me esquecerei desse acontecimento
na
vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca
me esquecerei que no meio do caminho
tinha
uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
no
meio do caminho tinha uma pedra.
(Carlos
Drummond de Andrade)
Por Jean Pires de Azevedo Gonçalves
Por
que nos encantamos tanto com o poema “No meio do caminho” de Carlos Drummond de
Andrade? Afinal, uma pedra no meio do caminho é algo tão banal que sequer
deveríamos dar atenção, não é.
Primeiro,
porque há algo de cômico em um poema dedicado a uma pedra. Segundo, porque, por
trás da aparente superficialidade temática do poema, deve haver algum sentido
universal que, sem sabermos, nos toca profundamente. Daí o seu encanto.
De
fato, uma pedra no caminho de alguma forma nos paralisa; pois, não deveríamos
esperar encontrar nada no percurso que pudesse perturbar nossa jornada, onde o
transito deveria fluir (livremente).
Uma
pedra no meio do caminho, portanto, é algo que está na ordem do imprevisível. E
a nossa vida é cheia de imprevistos.
Ao
ler o poema de Drummond é exatamente esta a sensação que temos: uma inquietação
diante de uma interrupção não prevista.
Caminho,
em sua definição mais elementar, pressupõe um percurso que interliga um lugar
de saída e outro de chegada. Pressupõe também o ato de caminhar e chegar a um
destino. Qualquer obstrução no meio do caminho implica um transtorno, um abalo,
uma desordem, em nossas expectativas, enfim, implica uma demora.
Mas
Drummond não nos esclarece em nada como é o caminho – se é de terra, asfalto,
pedra, se é uma trilha, uma estrada, longo, curto etc. – nem como é a pedra –
se é pequena, média, ou grande, etc.
Estes
elementos centrais do poema são totalmente imprecisos. A única exatidão
possível, que podemos ter, é o “meio”. Nada sabemos como é a pedra ou o
caminho, mas temos uma certeza, o meio:
uma medida que pode ser estabelecida, inclusive, numericamente.
Justamente
quando julgávamos deter desta certeza, o meio, eis que essa noção também nos
escapa, pois não sabemos se o meio está entre o ponto de partida e o de chegada
ou se está entre as margens do caminho.
Meio
pode ser também um modo de falar, e não uma medida exata, um ponto equidistante
entre polos extremos.
Perante
tanta indefinição, o poema nos aparece como um enigma.
Aquela
simples pedra no meio do caminho de repente se revela bem mais complexa do
parecia à primeira vista.
Por
isso, o poema tem sido comumente interpretado como uma metáfora para os
obstáculos que surgem na vida de todos nós. Embora haja alguma verdade nessa
interpretação, nenhum elemento no poema sugere que ela é correta. Ademais, eu,
particularmente, não posso acreditar numa interpretação tão extemporânea e
fácil, em se tratando de um dos poemas mais emblemáticos da antologia
brasileira. Se a vida é cheia de obstáculos, então qual é o seu sentido no
poema?
Diante
disso, tentarei trazer aqui uma análise e interpretação alternativa, sem, no
entanto, prescindir totalmente dessa que é a solução mais fácil.
Realmente,
o poema tem uma aparente simplicidade e é por ela que devemos começar.
A
princípio, poderíamos reduzir o poema a duas únicas frases:
“No
meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na
vida de minhas retinas tão fatigadas”.
Surpreendentemente,
não há nada de poético nessa passagem.
Há
sem dúvida uma certa irreverência no poema de Drummond. Não são os grandes
temas, heroico, trágico, sublime ou estético, que são retratados pelo poeta,
mas um acontecimento inesquecível, a saber, uma pedra no meio do caminho!
Drummond
parece estar zombando de nós.
Até
mesmo na escolha do léxico, como em “retinas tão fatigadas”, há um certo
gracejo. Pois para que complicar se ele poderia ter escrito a expressão muito
mais natural “vistas cansadas”?
Enquanto
quebramos a cabeça tentando entender o que Drummond pretendia com este poema e
lhe conferir uma interpretação, digamos assim, mais edificante, o poeta parece
estar rindo às nossas costas.
Mas,
por outro lado, para além do tom de galhofa, Drummond lança mão de uma estratégia
bastante interessante. Não é o sentido literal que dá força ao poema, mas a sua
forma, que potencializa a carga poética e o eleva a um nível de riqueza de
significados que nos retira da mesmice dos chavões e clichês poéticos para nos
lançar a um nível de percepção incomum.
Neste
sentido, apesar do modernismo, avesso a convenções da tradição literária, o
aspecto formal de “No meio do caminho” é tão complexo quanto o de um soneto, e
merece uma atenção especial.
Portanto,
é a forma do poema, ou seu invólucro, que nos dará as pistas para uma análise
dos significados possíveis do poema.
Assim
sendo, a análise será dividida em quatro etapas. A primeira consiste numa
apresentação convencional dos elementos formais do poema. A segunda, numa
experimentação e manipulação dos versos do poema, tal como barro nas mãos do
oleiro. A terceira, numa análise semântica. A quarta, numa síntese dos
elementos analíticos como um todo. E, enfim, a conclusão.
1º ETAPA
Título:
“No
meio do caminho” – Anuncia um acontecimento: a pedra.
Duas estrofes:
(Quarteto)
No
meio do caminho tinha uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
tinha
uma pedra
no
meio do caminho tinha uma pedra.
(Sextilha)
Nunca
me esquecerei desse acontecimento
na
vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca
me esquecerei que no meio do caminho
tinha
uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
no
meio do caminho tinha uma pedra.
Versos (10):
1.
No meio do caminho tinha uma pedra
2.
tinha uma pedra no meio do caminho
3.
tinha uma pedra
4.
no meio do caminho tinha uma pedra.
5.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
6.
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
7.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
8.
tinha uma pedra
9.
tinha uma pedra no meio do caminho
10.
no meio do caminho tinha uma pedra.
Sílabas poética:
No-meio-do-ca-mi-nho-ti-nha
u-ma pe-dra (10)
ti-nha
u-ma-pe-dra-no-meio-do-ca-mi-nho (10)
ti-nha
u-ma-pe-dra (4)
no-meio-do-ca-mi-nho-ti-nha
u-ma pe-dra. (10)
Nun-ca-me
es-que-ce-rei-des-se a-com-te-ci-men-to (12)
na-vi-da-de-mi-nhas-re-ti-nas-tão-fa-ti-ga-das.
(13)
Nun-ca-me
es-que-ce-rei-que-no-meio-do-ca-mi-nho (12)
ti-nha
u-ma-pe-dra (4)
ti-nha
u-ma-pe-dra-no-meio-do-ca-mi-nho (10)
no-meio-do-ca-mi-nho-ti-nha
u-ma pe-dra. (10)
Sílabas tônicas:
No MEIo do caMInho TInha Uma PEdra
TInha Uma PEdra no MEIo do caMInho
TInha Uma PEdra
no MEIo do caMInho TInha Uma PEdra.
NUNca me esqueceREI DESse aconteciMENto
na VIda de MInhas reTInas TÃO fatiGAdas.
NUNca me esqueceREI que no MEIo do caMInho
TInha Uma PEdra
TInha Uma PEdra no MEIo do caMInho
no
MEIo do caMInho TInha Uma PEdra.
Destaque para aliteração nos fonemas "m" e "nh" (nasais), nas sílabas tônicas mei- e mi- e nas átonas -nho e -nha, e o fonema "p" (plosiva), na sílaba tônica pe-
E para a ocorrência de aliteração da vogal fechada "i" em mi-, ti-, vi-, mi-, ti- e -ti- e para a vogal aberta "é" em pe-
Que dão ideia de movimento e interrupção (pedra)
Rimas:
ABAA
No
meio do caminho tinha uma pedra (A)
tinha
uma pedra no meio do caminho (B)
tinha
uma pedra (A)
no
meio do caminho tinha uma pedra. (A)
B-BABA
Nunca
me esquecerei desse acontecimento (B)
na
vida de minhas retinas tão fatigadas. (verso
branco)
Nunca
me esquecerei que no meio do caminho (B)
tinha
uma pedra (A)
tinha
uma pedra no meio do caminho (B)
no
meio do caminho tinha uma pedra. (A)
2º. ETAPA
Nesta
segunda etapa, o poema será dividido em três momentos:
a)
Momento da objetividade: no meio do
caminho tinha uma pedra.
b)
Momento da subjetividade: Nunca me
esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas.
c)
Momento da objetividade e da subjetividade: poema inteiro.
a) Momento da objetividade
A
primeira coisa que se nota neste momento é a repetição exaustiva do verso no meio do caminho tinha uma pedra, que
se desdobra através de inversões numa estrutura cíclica ou espiral.
Assim,
como um rocambole, é possível desenrolar estes versos da seguinte forma:
(1ª.
estrofe) No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
(2º.
Estrofe) ...no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do
caminho no meio do caminho tinha uma pedra.
(1ª.
e 2º. Estrofes) No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do
caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra (...) no meio do
caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho
tinha uma pedra.
No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha
uma pedra (...) no meio do caminho tinha
uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(vermelho – azul – verde – preto – verde
– azul – vermelho)
Nota-se
aqui, apenas de passagem, que “tinha uma pedra” (em preto) está bem no meio de um continuum que pode e sugere não ter fim. Ao mesmo tempo, é possível inferir a estrutura circular da Mandala.
Se,
agora, tomássemos os três elementos principais (meio, caminho e pedra), deste
primeiro momento, e pontuássemos como se fossem tons musicais, dentro de um
campo harmônico, estabelecendo uma alternância de arpejos, ascendente (grave
para o agudo) e descendente (agudo para o grave), teríamos a seguinte sucessão
rítmica:
No meio˅ do caminho˄
tinha uma pedra˅
tinha uma pedra˅
no meio˅ do caminho˄
tinha uma pedra˅ no meio˅
do caminho˄
tinha uma pedra˅.
(...)
no meio˅ do caminho˄
tinha uma pedra˅
tinha uma pedra˅
no meio˅ do caminho˄ no meio˅ do caminho˄
tinha uma pedra˅.
˅˄˅˅ ˅˄˅˅ ˄˅
˅˄˅˅ ˅˄˅˄˅
˅˄˅˅ ˅˄˅˅ ˄˅ ˅˄˅˅ ˅˄˅˄˅
Nota-se
um padrão rítmico em três momentos (azul) e um desvio em dois outros momentos
(preto). O padrão ˄˅ está também no meio de uma sucessão de oito tons, padronizada,
e de outra de nove tons, de ritmos diferentes.
Se
computássemos a ocorrência em que aparecem os três termos no poema, o resultado
será:
Meio
= 6
Pedra
= 7 (cabalístico)
Caminho
= 6
Meio,
pedra, caminho = 19
1 +
9 = 10 (coincide com dez versos)
Pedra
= 7 = 3 + 1 + 3
Nota-se
o número 1 no meio.
b) Momento da subjetividade
Neste
momento, há também repetição de “nunca me esquecerei” e um momento central:
Nunca
me esquecerei
desse
acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca
me esquecerei...
Nota-se,
também de passagem, que “desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”
está no meio das duas ocorrências de “nunca me esquecerei”.
c) Momento da objetividade e da
subjetividade
Intercalando-se
os dois momentos se obtêm esta estrutura:
Objetividade
– Subjetividade - Objetividade
1.
No meio do caminho tinha uma pedra
2.
tinha uma pedra no meio do caminho
3.
tinha uma pedra
4.
no meio do caminho tinha uma pedra.
5.
Nunca me esquecerei
(meio) desse acontecimento 6. na vida de
minhas retinas tão fatigadas.
7. Nunca
me esquecerei
(...)
...no
meio do caminho
8.
tinha uma pedra
9.
tinha uma pedra no meio do caminho
10.
no meio do caminho tinha uma pedra.
Ou
ainda:
1. No
meio do caminho tinha uma pedra
2. tinha
uma pedra no meio do caminho
3. tinha
uma pedra
4. no
meio do caminho tinha uma pedra.
Meio: Eu
lírico poético (Sujetividade)
1. ...no
meio do caminho
2. tinha
uma pedra
3. tinha
uma pedra no meio do caminho
4. no
meio do caminho tinha uma pedra.
É
possível ainda pensarmos num verso oculto ou três estrofes possíveis em busca da simetria:
No
meio do caminho tinha uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
tinha
uma pedra
no
meio do caminho tinha uma pedra.
Tinha uma pedra (verso oculto)
(meio) Nunca me esquecerei desse
acontecimento
na
vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca
me esquecerei que no meio do caminho
tinha
uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
no
meio do caminho tinha uma pedra.
Assim:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Tinha uma pedra (Eu lírico) no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(Três estrofes)
No
meio do caminho tinha uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
tinha
uma pedra
no
meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca
me esquecerei desse acontecimento
(meio) na vida de minhas retinas tão
fatigadas.
Nunca
me esquecerei que
no
meio do caminho
tinha
uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
no
meio do caminho tinha uma pedra.
O
que nos pode sugerir na divisão irregular entre duas estrofes (quarteto e sextilha)
uma pausa, ou melhor, um momento de silêncio, antecipando o momento da
subjetividade.
No
meio do caminho tinha uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
tinha
uma pedra
no
meio do caminho tinha uma pedra.
(SILÊNCIO)
Nunca
me esquecerei desse acontecimento
na
vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca
me esquecerei que no meio do caminho
tinha
uma pedra
tinha
uma pedra no meio do caminho
no
meio do caminho tinha uma pedra.
Para
finalizar, a pedra no meio do caminho não é vista pelo poeta como um fato
corriqueiro, da vida cotidiana, mas como um “acontecimento” inesquecível e de
dimensões extraordinárias. Este acontecimento inesquecível e extraordinário, a pedra no meio do caminho, aparece na vida das retinas fatigadas do poeta.
O que podemos supor, de um lado, que tudo não passou de ilusão ou devaneio
poético. Ou, por outro, de que há um grau de impessoalidade enorme ao se
transferir impressões subjetivas da sensação visual para um órgão da anatomia
humana, como se este fosse um objeto (retina) separado e “estranho” ao próprio
sujeito, justamente no momento de maior subjetividade do poema.
3ª. ETAPA
É
interessante destacar a escolha lexical pelo poeta, que não é fortuita.
Em
“no meio do caminho tinha uma pedra”, Drummond se utiliza do termo coloquial
“tinha” para se referir que existia (ou
havia) uma pedra no meio do caminho.
Em
sentido oposto, no sexto verso, o poeta se vale de uma palavra mais rebuscada,
dentro da norma culta, “fatigadas”, ao invés do usual cansadas.
Também
é interessante notar o desvio na expressão “minhas retinas”, ao invés de
“minhas vistas”, caracterizando-se um caso de sinédoque, quando se toma a parte
pelo todo.
“Retina”
(do latim retina, “rede”) é a
membrana interna do globo ocular onde, como numa máquina fotográfica, os sinais
visuais são captados invertidos (“de ponta-cabeça”), antes de serem
decodificados pelo cérebro.
Além
disso, é possível pensar em duas figuras de pensamento no verso “na vida de
minhas retinas tão fatigadas”. Hipérbole – quando se aumenta ou diminui a
realidade das coisas (retina ao invés de olhos) – e prosopopeia – quando se dá
voz a animais ou vida a objetos inanimados (vida das retinas fatigadas). Ora, a
vida não está nas retinas, que não é independente do todo, e, sim, no organismo
inteiro.
4ª. ETAPA
"Tudo que era sólido desmancha no ar" (Karl Marx)
Ao
analisarmos e estabelecermos relações entre as etapas acima, percebemos no poema
sempre uma frustração na busca pela simetria ou harmonia, interrompida por
lapsos, desvios ou dissonâncias. Assim, o título, que, por meio de uma presença,
anuncia uma ausência; duas estrofes irregulares (quarteto e sextilha ao invés
de duas quintilhas); versos com sílabas em numeração par (4, 10 e 12) e um
verso, o sexto, em numeração ímpar (13 sílabas); rimas que não são senão repetição
de palavras (pedra-pedra; caminho-caminho), uma má rima (-nho/-nto) e um verso
branco; um verso quebrado, “tinha uma pedra”, no meio de um continuum que segue um padrão alternado;
o deslocamento e contraste semântico da maneira usual de falar ou escrever,
entre a norma culta e a coloquial; o mundo invertido na percepção do poeta que
se aliena de si mesmo em seu próprio corpo, o qual lhe aparece como outro; a
realidade objetiva posta em xeque pela subjetividade; etc.
Neste
sentido, parece haver sempre no poema um jogo de oposições, no qual oscila, num
vai e vem incessante e repetitivo, deixando-se sempre alguma sobra ou coisa
fora de lugar:
-
ausência-presença
- concreto-abstrato
- microcosmo-macrocosmo
- reta-círculo
-
cheio-vazio
-
fluidez-obstrução
-
imprecisão-exatidão
-
certeza-incerteza
-
previsível-imprevisível
-
pequeno-grande
-
infinito-finito
-
comum-extraordinário
-
par-ímpar
-
exterior-interior
-
igual-diferente
-
harmonia-dissonância
-
objetividade-subjetividade
-
sujeito-objeto
-
norma culta (padrão)-linguagem coloquial
Etc.
Este
jogo de oposição nos dá conta de que estamos diante de uma realidade altamente
fluida, movediça, em constante transformação, o que parece estar de acordo com
o que vimos mais acima: nada podemos saber ao certo neste mundo difuso, só temos
uma única certeza: o meio. O resto está fora de lugar.
O
problema é que não sabemos onde é exatamente o meio. O que nos remete à questão
colocada por Nicolau de Cusa, na Idade Média, e retomada por Blaise Pascal,
sobre o centro do Universo (infinito) estar em toda a parte e a circunferência
em nenhuma.
Assim,
o meio é uma presença tão indefinida quanto aquilo que está em seu lugar. O
meio é, rigorosamente, uma ausência, está em todo lugar e, ao mesmo tempo, em
nenhum.
No
poema, a ausência do meio é o meio pelo qual se manifesta a verdadeira
presença: a pedra.
A
nossa análise, entretanto, demonstrou a pedra e o Eu lírico poético ambos
situados bem no centro ou no meio do poema. Objetivamente, a pedra; subjetivamente,
o Eu lírico. Conclui-se daí que o Eu lírico e a pedra coincidem no meio, o que
nos remete a uma identificação entre ambos, pelo menos em relação à posição.
Geometricamente,
o Eu lírico é a pedra (refletida na retina) e vice-versa – já que dois corpos,
segundo as leis da física, não ocupam o mesmo lugar no espaço.
Há,
contudo, um terceiro fator complicador implícito nesse meio físico: o centro
realmente subjetivo do Eu lírico identificável apenas em “nunca me esquecerei”,
e que aparece entre as duas objetividades: realidade (objetiva) e retina
(subjetiva). Existe uma pedra no meio do caminho e existe a imagem refletida e invertida
dessa pedra no meio do caminho numa retina, de onde o Eu lírico assiste a um
acontecimento, para ele, inesquecível e, daí, extraordinário.
O
Eu lírico é esta tênue camada definida por uma negatividade: nunca me
esquecerei.
Recurso
bastante semelhante à dúvida metódica de Descartes, pela qual, por meio da
redução ou negação, se descobre o cogito,
isto é, ‘penso, logo existo”, no poema de Drummond, o Eu lírico é a única
certeza: esquecer é desaparecer.
Altamente
reflexivo, diante de uma realidade passageira, na qual se coloca uma
interrogação de ordem intelectual, o Eu lírico se afirma pela memória em um
mundo instável e volátil.
O
que nos faz retomar a pergunta central: o que é a pedra? A pedra existe?
Tal
como a pedra filosofal dos alquimistas, que podia transformar qualquer metal em
ouro, a pedra de Drummond transforma um fato corriqueiro em um problema
ontológico. Pois bem, a pedra é um ardil para se tocar nos problemas da
existência. (Segundo Carl Gustav Jung, em Psicologia e Religião: "Não existe praticamente qualquer dúvida de que não poucos, entre aqueles que a buscavam, se convenceram de que a natureza da pedra é o si mesmo humano. (...) A pedra era um mundus minor como o próprio ser humano, ou seja, de certo modo, uma imagem interior do cosmo que, entretanto, se estende não em uma amplidão imensurável, e sim em uma profundidade imensurável, isto é, do pequeno ao infinitamente pequeno"). O infinitamente pequeno é incomensuravelmente grande, porque infinito: o ser. Damos voltas e mais voltas e não saímos do mesmo lugar: nós mesmos.
Então,
o que é a existência?
Vimos
mais acima que a pedra era o imprevisto, o inesperado.
Entretanto,
a pedra sempre se repete ao longo do meio do caminho, que é infinito.
Ler
o poema é caminhar por esse infinito fadado a repetir imprevistos, que, afinal
de contas, são bastante previsíveis.
Portanto,
imprevistos sempre acontecem. Talvez, nossa única certeza objetiva: esperamos
sempre o inesperado (o futuro).
Todavia,
ainda temos um problema. A pedra não é apenas um imprevisto dentre milhares de
outros, e, sim, um acontecimento extraordinário, que traz marcas inesquecíveis
ao poeta, que, a julgar pelas retinas cansadas, é uma pessoa experiente e que
já viu muitas coisas no mundo.
Ora,
um acontecimento extraordinário e inesquecível não pode ser tratado como um
simples imprevisto do cotidiano. Um acontecimento extraordinário é um
acontecimento que raramente acontece.
O
que lhe confere um caráter extraordinário à pedra é que a pedra é singularmente
uma pedra.
E
cada pedra que surge no caminho é tão extraordinária quanto à primeira.
A
pedra é a pedra é, logicamente, a mesma e, ao mesmo tempo, outra. O um que é
múltiplo.
Isso
faz da pedra, a qual nunca deixou de ser uma pedra, uma outra coisa que não uma
pedra.
Sem
dúvida, um simples acontecimento é tão prenhe de significações que pode nos provocar
uma meditação tão profunda sobre nós mesmos que só é compreensível, não por
meio de palavras ou pela razão, mas somente pelo silêncio.
Eis
o ponto central do poema. A existência é tão extraordinária que não temos
respostas sobre a sua questão. Logo, é o silêncio que define a existência.
CONCLUSÃO
Apesar
de o tema vulgar, ao mesmo tempo, tratado com certa eloquência, ou mesmo o tom
de galhofa modernista do poema, avesso às convenções literárias tradicionais, e
do qual não escapam da crítica nem o poeta nem o ofício de escritor de poesia,
Drummond deixa em aberto uma liberdade infinita de interpretação no poema,
contra tudo o que ensina a crítica literária.
O
poema poder ser uma simples piada e nesse caso Drummond nos prega uma peça.
Podemos
rir e virar a página. Mas a piada pode ficar sem graça e nos conduzir a uma
reflexão mais profunda.
Heidegger
indaga sobre o ser do ente pedra, ao qual o coloca imediatamente diante de uma
questão de natureza muito mais radical: o que é o ser que questiona o ser do mundo? Ou
melhor, o que é o dasein (ser-aí,
pre-sença, ser-no-mundo, ser humano)? O filósofo da floresta negra responde:
tempo.
Mas,
para mim, o poeta trata das dificuldades do verdadeiro amor em se realizar e,
assim, eu poderia repetir Shakespeare:
for
aught that I could ever read,
Could
ever hear by tale or history,
The
course of true love never did run smooth;
“Em
todas as histórias e romances que eu pudesse ter ouvido me contarem, a
trajetória de um amor verdadeiro nunca transcorreu em caminhos suaves” (Trad.:
Beatriz Viégas-Faria).
Pois
bem, a pedra é o ponto de partida para o poeta falar sobre uma questão central:
a existência.
É
disso de que se trata. O poema fala da existência, dos ciclos da vida, das
contradições (noite e dia, quente e frio, harmonia e dissonância etc.), de como
algo vulgar é tão repleto de significados e remete a indagações que não podem
ser respondidas nunca: o mistério da vida, o eterno retorno, as origens, o ser,
o amor etc.
Na
vida, nossos sonhos nunca coincidem com a realidade e, no entanto, a vida e
realidade coincidem num sonho, extraordinário. Além disso, não podemos ter
muitas expectativas grandiosas ou gloriosas sobre os acontecimentos da vida. O
cotidiano é sempre medíocre, mesquinho, irrisório; mas há sempre beleza nele, a
paixão e o amor, por exemplo. Neste sentido, o escárnio de Drummond é o mesmo
de Oscar Wilde: “A vida é muito importante para ser levada a sério”. Esta é a
força do poema.
A
perplexidade diante do Universo, a falta de sentido da vida, a condição
miserável da existência, os imprevistos do cotidiano, os obstáculos do amor etc.,
só fazem sentidos em nossas lembranças.
Uma
pedra é apenas uma pedra e o quanto isso pode nos ensinar.
Não
há de se ter grandes expectativas e buscar um sentido nas alturas de uma
metafísica inalcançável em torno da existência. A vida é como uma pedra no meio
do caminho, sem explicações e sem porquê, e isso é o que é de fato
extraordinário e inesquecível.
Eis
a sua ridícula verdade.
*****
Jean Pires é autor: