sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Fecaloma: 30 anos de punk rock - entrevista

Por Nicolas Clash

Se eu tivesse que definir a banda Fecaloma em uma única palavra, não hesitaria em maldito. De fato, o Fecaloma é a banda maldita do punk nacional. E eu acho que o Jean Fecaloma, o vocalista histórico da banda, não se oporia a tal definição. Acho até mesmo contaria com sua aprovação. Para entender o que eu estou falando, basta ler a longa entrevista com o lendário vocalista, que me foi apresentado na Universidade de São Paulo como o “Chico Buarque do punk rock”.

Minha bandeira é minha roupa - 30 anos

“Longa entrevista” é até modesto para uma banda que há 30 anos está na estrada e tem no currículo uma discografia de três álbuns lançados na cena do rock independente: Transgredir por transgredir (1998), Rebelião adolescente (2001) e Ocupare resistir (2005) – todo o material – capa, encarte, disco e músicas – está disponível nos links AQUI, AQUI e AQUI. Atributos esses que por si só já justificariam uma atenção especial do leitor aficionado, mas a interpretação nada habitual e polêmica a respeito do movimento punk no Brasil, episódios desconhecidos atinentes ao cotidiano das tribos urbanas e revelações surpreendentes tais como apontar o escritor e compositor Jorge Mautner como uma das influências do Fecaloma são ingredientes a mais para encorajar a leitura até o final. Mais do que uma homenagem, esta entrevista é um presente a todos os fãs e interessados em punk rock.

ENTREVISTA

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Jean Fecaloma, 1994.

Verso, Prosa & Rock’n’Roll: Passados 30 anos de Fecaloma, algum projeto novo?

JF: No ano retrasado, por sugestão do Ronaldo, dos Excluídos, nós voltamos a tocar, depois de uns dez anos parados. Se há algum projeto? Eu considero os livros que escrevi – Des-tino, A saga de um andarilho pelas estrelas e A greve dos planetas e outros causos vulgares, no mínimo, singulares – como projetos do Fecaloma, porque guardam um pouco do mesmo espírito da banda. Agora, se a banda tem algum novo projeto musical, não. A gente conversa, diz que vai fazer isso e aquilo, só que não sai nada. Então, o projeto é, de vez em quando, tocar em lugar legal.

VPRR: Cara, conte quando e como começou a banda?

JF: Acho que em 1989 ou 1988. 1989! Acho. Não lembro. Oficialmente, 1989. Mas o início do Fecaloma não foi muito convencional. Quando começamos, a banda era mais ou menos uma ideia concreta. Vou tentar explicar melhor esse conceito. Eu era moleque e não gostava de rock nacional. Na época, eu só conhecia bandas que tocavam no programa do Chacrinha, tipo Ursinho Blau Blau, Lobão, Roupa Nova etc. Então, eu não gostava. As letras só falavam de amor e os caras faziam tipo de moçinhos bem comportados. Era tudo muito chato! Só que um dia minha irmã, a Paula Vanessa, conheceu na escola umas garotas que gostavam de rock alternativo, como Ira, Legião e, inclusive, punk rock. Um dia, fui com ela numa festa no apartamento de uma dessas amigas e lá toucou Titãs, Garotos Podres, Billy Idol, Ramones, “Surfin bird” etc. Tinha uma galera agitando punk rock e eu achei muito louco aquela dança. Parecia divertido. Só que eu ainda não estava muito convencido. Naquele tempo, tinha um programa na TV de vídeo clip chamado Realce, que era apresentado pelo Capivara e o Beto Rivera, e que nós, eu e meus irmãos, assistíamos. Certo dia rolou um vídeo dos Inocentes – acho que era “Pânico em SP”. Eu fiquei impressionadíssimo, porque eu nunca tinha visto um vocalista negro em uma banda de rock nacional. As bandas que eu conhecia da TV só tinham brancos. O vídeo também era sombrio, num lugar escuro, um beco, uma quebrada, e a letra falava de sirene, de rádio, que era pra correr... Puxa, aí então eu comecei a prestar mais atenção e até me simpatizar!

Jaqueta Fecaloma Punk Rock

VPRR: Sim, mas, e o Fecaloma?

JF: Peraí! Nessa época, meu irmão, o Diego Moicano, também conhecido por Porco, também começou a ouvir punk e comprou o disco “Tente mudar o manhã”, do Cólera. E aí virou uma febre. Nós começamos a querer conhecer mais e mais. Então fomos comprando todos os discos que pareciam ser punks, por causa de algum desenho, foto ou porque alguém falou. Compramos “Mais podres do que nunca”, dos Garotos Podres, Tropa Suicida, Dead Kennedys, Ratos de Porão e muitos outros.

Show no Dama Xoc
Sergio, Jean e Paula Vanessa - Ramones, Dama Xoc

VPRR: Mas e a banda, o Fecaloma?

JF: Eu escutava o som das bandas mas não achava que podia montar uma banda. Eu não sabia tocar. Então, eu não pensava em fazer uma banda. Mas, um dia, fui convidado para ir numa festa de um primo meu e, chegando lá, eu percebi que o pessoal estava mais a fim de conversar do que se divertir. Como ninguém estava controlando a vitrola, eu resolvi dar uma de DJ e, como ninguém se importou, fiquei discotecando. Na verdade, eu estava mais conhecendo os discos do meu primo do que realmente discotecando. Só que eu encontrei um disco do Ramones, “Rocket to Russia”, que eu não conhecia. Coloquei o lado A, ouvi, e depois virei, o lado B. Quando acabou o disco, olhei para a galera e o pessoal continuava animado, conversando, sem prestar muita atenção em mim. Então decidi repetir o disco. Quando acabou, olhei novamente para eles, que nem notavam a minha movimentação, então, repeti o disco. Que mal teria se eu ouvisse o disco de novo? Talvez, nem perceberiam que era o mesmo disco. Seria a última vez. A agulha percorreu todo o disco e, no sofá, o xaveco rolava solto. Será que eles iam ligar se eu ouvisse mais uma vez? Quer saber, dane-se. E assim foi. A certa altura, maluco, eu já não estava mais curtindo, apreciando, me deleitando com as músicas do disco. Eu estava analisando, examinando, estudando profundamente. Depois de tocar um único disco durante toda a madrugada e, provavelmente, encher o saco de todo mundo, que era muito educado e não queria cometer a indelicadeza de pedir para um doido que ficou a noite inteira sentado em frente da vitrola trocar de disco, eu olhei bem para o movimento de rotação do vinil, girando, girando, girando, e disse: Eureca! Isso eu também sei fazer! Quando voltei para casa, compus “Assassinos”.

Letra datilografada

VPRR: Você fez uma música, até aí há uma distância enorme entre uma música e uma banda!

JF: Pra mim, não. Naquele dia eu tinha fundado o Fecaloma. Mas eu não sabia disso ainda. Depois de “Assassinos”, eu escrevi outras músicas, tudo na sequência: “A peste e guerra”, “Os últimos espermatozoides radioativos”, “Armas não fazem a paz”, “América Latina”, “América Latina”, “O que há de errados com os vermes”, “Megalópole Onívora”...

VPRR: Mas você não sabia tocar. Como compôs as músicas?

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Moicano

JF: Sim, eu não sabia. Mas nós tínhamos um violão Tonante, que era a pior marca de violão dos anos 80, e o nosso só tinha três cordas. Eu peguei o violão e fiz as músicas tocando só uma única corda, a primeira, a mizona. Aí, eu chamei o meu irmão e falei: “Vamos formar uma banda”. Ele topou na hora. Aí eu disse: “Vou tocar guitarra”. E ele: “E eu bateria”. Faltava um baixista. Então nós chamamos um amigo nosso, o Neno, que era um craque do futebol (infelizmente, não reconhecido, porque não passou pela peneira do Palmeiras, seu time de coração, apesar de ter marcado três gols, mesmo com o melhor jogador do time marcando ele; não passou porque já tava tudo esquematizado para um peixe entrar, filho de um diretor). Não sei como, o Neno também topou entrar na banda. O único problema é que ninguém sabia tocar.

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Neno

VPRR: Se não sabiam tocar, como formaram a banda?

JF: Por decreto, a tal da ideia concreta. A banda existia, só faltava todo o resto...

VPRR: Como assim?

JF: Nos anos 80, era pré-requisito para formar uma banda punk ninguém saber tocar.

VPRR: Não entendo como pessoas que não sabem tocar instrumentos musicais podem pensar em formar uma banda. Não tem sentido, não parece lógico.

JF: A lógica do punk era colocar tudo de ponta cabeça.

VPRR: Mas com o tempo vocês acabaram aprendendo a tocar.

JF: Naquela época, não existia YouTube (canal Fecaloma), nem internet, então tinha que aprender na marra. Minha mãe, Nilza Monti, toca piano erudito. Mas, quando eu e meus irmãos éramos pequenos, meu pai vendeu o piano por falta de grana. Para substituir o piano, minha mãe comprou o Tonante. Foi a minha mãe que gravou as musiquinhas do Bach no final dos CDs do Fecaloma com um teclado. Nós gravamos com um gravadorzinho caseiro, destes de fita cassete, tudo muito improvisado. Mas foi minha mãe que, vendo o meu interesse, me ensinou as primeiras noções de música.

VPRR: E os instrumentos, guitarra, baixo e bateria? Vocês não tinham?

JF: Não, não tínhamos. Instrumentos musicais eram muito caro. Um dia conseguimos uma guitarra Tonante emprestada. Ou era um baixo? Não lembro. Então, a gente improvisava. A bateria, por exemplo, o Neno fazia tambores com lata de leite Ninho, que naquela época era bem grande, o bumbo era um galão de gasolina e os pratos eram panelas. Era um som meio rock industrial. A gente fazia umas gambiarras num gravador de rolo, que era do meu pai, e distorcia o som da guitarra, que não parava de tocar um som contínuo, infinito, sem interrupção. Eu tinha feito uma música chamada “Abrigo nuclear” que, num dado momento, a gente dava uma pausa e então eu tocava uma nota, que soava continuamente, constantemente, sem parar, sozinha, infinitamente. Então, a gente saía e deixava o som rolar, ia para frente de casa ouvir, dava risada, ia jogar bola e quando voltava o som ainda estava rolando. Então a gente recomeçava a música de onde tinha parado, com um grito: “O abrigo nuclear!”

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Jean, Moicano e Sérgio

VPRR: Difícil de acreditar nisso. Não me parece possível!

JF: Meu, pode crê. Pergunta pro meu irmão e pro Neno. Eles são testemunhas, podem confirmar essa história. O gravador até acabou queimando, por causa disso.

VPRR: E vocês tocavam pra quem?

JF: Pra ninguém. Pra nós mesmos. Mas “O que há de errado com os vermes?” virou moda entre a garotada do nosso bairro.

VPRR: Cara, essa é a história mais estapafúrdia que eu já ouvi sobre a formação de uma banda, até parece brincadeira.

JF: E era.

VPRR: E o nome da banda, como surgiu?

JF: O primeiro nome foi “Espermatozoides radioativos”. Mas ninguém curtiu muito. Então o Moicano veio com o “Fecaloma”. Pela minha memória, uma conhecida de meu pai teve essa doença, então quando meu irmão sugeriu o nome, todo mundo deu risada. Mas o meu irmão alegou que encontrou o nome num dicionário. Só sei que o nome foi aceito por aclamação. Tem uma história engraçada, com o nome. O Neno tava doente e foi pro médico. Depois do exame, o médico começou a explicar pacientemente o diagnóstico, que era uma prisão de ventre e tal e tal. Então, o Neno interrompeu o médico e disse: “Doutor, seja franco, eu estou com fecaloma?” Mano, o médico quase caiu da cadeira e com os olhos arregalados exclamou: “Como é que você sabe?!!!” O Neno explicou que tocava uma banda com esse nome e então o médico quase surtou de tanto rir.

VPRR: Estas histórias são surreais, cara. Você não tá inventando isso não, né. Bom, mas nessa época vocês tinham contato com outras bandas punks?

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Jean Fecaloma (à direita) e amigos da escola.

JF: Não. O Neno, por exemplo, nunca foi punk. O Neno gostava de todo tipo de música. Ele gostava da zoeira. Agora, eu e meu irmão, o Moicano, queríamos ser punks, digamos assim, punks de verdade. Eu tinha uns amigos que curtiam na escola, mas era oba-oba. Porém, numa festa junina na escola, em 1989, eu e meu irmão conhecemos o Charada, o Zero e o Panela. Eles eram da Devastação Punk. Pouco depois, conheci o Beto, o Testa e outros caras. O Zero e o Charada iam na minha casa. Foi bem no começo. Foram os primeiros punks de verdade que nós conhecemos. Muito mais tarde, conheci alguns caras da City, como Jack e outros. Os caras eram legais. Só não entendo porque tem tanta treta entre punks. Mas, na verdade, eu e meu irmão andávamos mesmo com o Botijão, que era metaleiro, e o Bereta, que era punk independente.

Jean afinando guitarra
Jean Fecaloma

VPRR: Vocês quatro? Como era o rolê de vocês?

JF: Nós saíamos para pixar e cometer alguns pequenos atos de vandalismo. Por exemplo, um dia nós derrubamos um ponto de ônibus e resolvemos levar pra casa. Um guarda noturno viu a gente andando com o ponto e gritou: “Ei, aonde vocês pensam que vão com esse ponto de ônibus, seus pilantras!!!” E saiu correndo atrás da gente apitando. Às vezes, também corríamos atrás de uns metaleiros. Às vezes, nós é que fugíamos. Certa vez, estávamos andando em Santo Amaro quando passou um ônibus lotado de metaleiro, os Sarcófagos. Os caras viram a gente e se levantaram gritando para o motorista parar o buzão... Mano, como eu corri naquele dia! Naquela época, punk e metal era como água e óleo, não se misturavam. Mas já tava começando a mudar isso. Um dia, uns metaleiros da Vila Mariana, a Guerrilha, me chamaram para ir num show do Ratos de Porão com eles no sindicato dos aeroviários. Acabei conhecendo o Beka, líder dos Sarcófagos, que foi super gente fina comigo. Os metal respeitam demais o cara. Ele me disse, “pode agitar com a gente, não vai acontecer nada”. Mas não teve jeito, quando começou o show, era muita gente, tava lotado, e era joelhada, cotovelada, voadora. Nesse show tava o Papel, que tinha um moicano azul ou vermelho, não lembro, tava tomando muita porrada também. Só tinha a gente de punk. Eu fui para uma escada e sentei. Lá embaixo tinha um banheiro e eu vi o Papel e mais um outro maluco entrarem. Eu fiquei olhando e notei que metaleiro que entrava no banheiro não saía. Era um, dois, três... e não saía... tipo “Além da imaginação”. De repente descobriram que o Papel e o outro maluco tavam quebrando os caras lá dentro e foi uma confusão só. Os metaluco queriam invadir o banheiro. Acho que os dois tiveram que sair dali escoltados pela polícia. Foi nesse show que eu percebi que o Ratos não era mais punk.

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VPRR: Então havia muita treta entre metal e punk?

JF: E carecas! Certa vez, teve uma treta do Toupeira, que era Headbenger ABC, com um função da Aclimação. Os caras estavam em maior número e o Toupeira levou a pior. Então os Carecas do Subúrbio compraram a treta do Toupeira e apareceram na Aclimação em dois carros e um caminhão lotado e arrepiaram todo mundo. Foi um dia histórico. Nunca mais aqueles função mexeram com punk ou metaleiro. Foi nesse dia que eu conheci o Donald, que montou mais tarde o Gritando HC.

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Módis e Moicano

VPRR: Você esteve no show do Toy Dolls, em 1988, não é. Conte como foi...

JF: Acho que de 1986 até o final dos anos 80 não tinha pra ninguém e os Carecas do Subúrbio arrepiavam todo mundo. Só que eu não sabia. Eu era moleque. Então eu fui com a minha irmã e aquelas amigas dela no show do Toy Dolls, no Projeto SP, Barra Funda. Coloquei uma jaqueta preta e saí me sentido o cara mais punk do mundo. Quando chegamos lá, tinha um cara de cabeça raspada, suspensório e coturnos. Eu pensei: “Caramba, que visual legal!” Entramos numa fila e continuei a ver cada vez mais lókis de cabeça raspada, suspensório e coturno. Então, lá dentro, o Cólera abriu o show e depois o Redson desceu para agitar na pista. Cara, até aí tava tudo muito louco. Então, o Toy Dolls entrou no palco e pá, começou o som. Meu, era igualzinho o disco!!! O Olga supersimpático, sorridente... De repente, o Redson passou correndo por mim e entrou no backstage. Na hora eu não entendi. Mas havia uma confusão. Alguns daqueles caras de cabeça raspada e suspensório passavam com a mão fechada olhando feio pra todo mundo. Aí foram se juntando no meio da pista. De repente, eram milhares. Mano, se você me perguntar quantos carecas tinham, eu não saberia dizer, mas pelo menos uns mil ou dois mil ou até mais. Era impressionante! Na quarta ou quinta música, não lembro ao certo, um careca, o Paraná, subiu no palco e acertou um soco no Olga. Os caras da banda acudiram o Olga e saíram imediatamente do palco. Nisso, ascenderam as luzes. Os carecas pulavam com o punho fechado para o alto e gritavam oi! oi! oi! oi! Parecia que iam pruma guerra. O tempo passava, a tensão aumentava, o palco vazio, um impasse. Parecia que o show ia ser cancelado quando, pouco depois, os caras do Toy Dolls voltaram pro palco. Olha meu braço, mano, até arrepia! E aí foi aquele aêêêêêhhh!!!. O Olga sorrindo e fazendo joinha com as duas mão. Os carecas pulando no meio pista. Então o show recomeçou e os carecas abriram uma clareira enorme no meio da multidão. As pessoas desesperadas começaram a se esmagar nas paredes. Eu pensei: “Vou sufocar, vou sufocar”. Muita gente em pânico começou a escalar as torres, essas que seguram os holofotes, que ficam ao lado do palco e nas laterais do salão. Não sei como, minha irmã conseguiu me puxar e me levou para o hall de entrada do Projeto SP onde estavam as amigas dela. Entre o hall e a pista havia umas quatro ou cinco portas de ferro, grossas, pesadas, de abrir e fechar, tipo navio ou faroeste. A todo instante essas portas eram escancaradas por multidão desesperada e no meio da multidão apareciam uns quatro ou cinco seguranças correndo e carregando alguém desmaiado. Eram levas e mais levas que fugiam, tropeçavam... Parecia até Titanic. Aí as amigas da minha irmã decidiram ir embora e nós saímos. Nas ruas, gente correndo para tudo quanto é lado. Nós fomos levados por uma correnteza humana para algum lugar onde, de repente, passou um busão que recolheu todo mundo. No ônibus, todo mundo ria, aliviado. Olhei pela janela e vi um carro em chamas. Depois, o Projeto SP devolveu os ingressos e fomos de novo, no dia seguinte, acho, só que desta vez foi tudo tranquilo. Segundo o que o Nojento me contou muito tempo depois, os carecas foram para o show do Toy Dolls em três caminhões, alguns carros e também de trem. O motivo da agressão ao Olga teria sido uma aposta entre os Carecas do Subúrbio que se sentiram traídos pela Toy Dolls, porque os integrantes tiraram fotos para uma revista de skate, que na época era skatepunk.

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Neno, Jean e Daniel

VPRR: Você andou com a Irmandade Punk. Fale sobre a Irmandade.

JF: Nessa época, entre 1990 e 1993, os Carecas do Subúrbio tinham praticamente desaparecidos. Então ficou mais tranquilo andar pela cidade. Só que não tinha show em nenhum lugar. O máximo que rolava era um som na garagem de algum conhecido. O que era raro. O nosso rolê era ficar perambulando pela cidade à noite e, se tivéssemos sorte, entrar em alguma festa de penetra – normalmente, nós éramos barrados ou chamavam a polícia. Se você quer uma definição de como era o punk naquela época, leia o livro Movimento punk na cidade da antropóloga Janice Caiafa. Nesse livro, ela fala de um “novo nomadismo”, alguma coisa assim, ou um “nomadismo urbano”. Era exatamente isso. Nós passávamos a noite vagando pela cidade, sem destino. A Irmandade Punk era um entre muitos outros desses grupos nômades. Mas teve um começo. Certo dia, o Vietnã, um Careca do Subúrbio, e o Canibal, um punk, resolveram unir todas as bancas da cidade (era assim que a gente chamava os grupos, nunca gangue) unir todas as bancas de São Paulo e lutar contra o sistema, tipo o filme Warriors – selvagens da noite

Reportagem sobre filme

Então os dois se encontraram no galerias e saíram pela cidade recrutando todo mundo que encontravam, desde metaleiros, punks e carecas. Era madrugada e eu e meus amigos estávamos perto da estação Ana Rosa quando eu vi um bando, de uns cem caras, se aproximar. Não tinha como fugir. Então eu pensei: agora ferrou! Então, os caras chegaram e, para o meu alívio, o Vietnã estendeu a mão e explicou a proposta. Não precisou nem terminar a explicação e topamos na hora. E aí seguimos com o bando. Tinha um tal de Rato Core, que depois virou meu amigo, que morava na Saúde e sugeriu para que nós fôssemos para aquela direção. Passamos por uma praça onde uma viatura da polícia estava estacionada e pela janela saía fumaça. Um cara se aproximou de mim e disse: “Os ratos estão fumando maconha”. Quando estávamos perto da Saúde, um carro branco passou na toda por nós. Era Devastação Punk com os Headbengers ABC, que tinham se unido. O Naval (Calibre 12), que estava do meu lado, disse, “esses caras são pilantras”, e saiu correndo. Nisso, o nosso grupo resolveu se dividir e uma parte, inclusive eu, desceu para uma rua e a outra metade ficou para fazer a diplomacia com os caras do carro branco. As ruas estavam desertas e nós estávamos esperando uma solução pacífica para aquele impasse. De repente, um carro, uma variant vermelha, caindo aos pedaços, passou por nós devagar e, então, desapareceu no final da rua.


Poucos minutos depois, a mesma variant vem chegando, os faróis apagados, desce a rua, passa por nós devagar, desce um pouco mais, para, volta, volta de marcha-ré, volta devagar e, quando chega bem perto, eu só vejo um cara no banco do passageiro puxar uma metralhadora e apontar para nós. Meu, foi uma correria só. Eu ainda escutei alguém gritar: “Não corre, não corre!”. Era o Vietnã. Alguém gritou: “É justiceiro! É justiceiro!” Olhei de novo para trás e o Vietnã corria também. Quando chegamos correndo na rua de cima, onde estava a outra metade, os caras do carro branco se assustaram e puxaram os ferros, gritando: “Chega não! Chega não!” Alguém respondeu: “Justiceiro tá vindo aí!” Os caras do carro branco gritaram: “Se vier a gente troca!” De repente, eu vi o Toupeira, que era meu amigo desde a infância, no meio deles. O Toupeira me viu e falou: “Jean, chega aí! Que cê tá fazendo no meio desses caras? Fica esperto! Nós vamos pegar o Naval. O Naval é pilantra”. Foi preciso muita diplomacia pra esfriar os ânimos bastante exaltados. Depois, eles entraram no carro branco e saíram na captura do Naval. O Rato Core deu a ideia de ir para a goma dele. Chegando lá, tornou-se consenso que era preciso resgatar o Naval a tempo. O Vietnã disse: “Vai você, Rato Core”. Depois olhou para mim, apontou e falou: “Você também, vai com ele”. Eu pensei: “Puxa, justo eu!” Mas era porque eu conhecia o Toupeira e podia tentar colocar panos quentes na situação. Então eu e o Rato saímos atrás do Naval. O lugar era um labirinto, cheio de vielas e ruas escuras. A gente gritava: Naval! Naval! E nada. Mas, de repente, a gente ouviu um assobio fino, baixinho, muito agudo. Era o Naval. Ele pula de um muro bem alto e, rindo, vem até nossa direção. Trocamos ideia sobre a casa do Rato, mas não deu nem tempo de respirar e, quando estávamos indo embora, eu olho pra trás e vejo o carro branco dobrando a esquina e descer rapidamente a rua. Desta vez não dava pra correr. Os caras pararam bem do nosso lado e já saíram cercando o Naval, que estendeu a mão em sinal de paz. Mas os caras não estavam lá para conversa. Não sei como, o Naval pulou pra cá, pulou pra lá, passou o cerco e correu mais rápido que o Usain Bolt. Os caras foram atrás mas era impossível alcançar. Então voltaram, entraram no carro e saíram cantando pneu. Não tinha mais nada a fazer e eu e o Rato Core resolvemos voltar. Depois de andar bastante, gritando pelo nome do Naval, ouvimos novamente o assobio fino em algum lugar. Era o Naval de novo, que conseguiu escapar mais uma vez. Como agora estávamos perto da casa do Rato, conseguimos levar o Naval até lá, onde a banca esperava. Foi uma festa. Mas era preciso ter pressa e esconder o Naval logo. (Na casa do Rato, que era muito pequena, não podia por algum motivo que não me lembro). O Rato Core sugeriu que ele se escondesse dentro de uma dessas casinhas de registro d’água. Ele se encolheu lá dentro, um homem elástico numa caixa, e nós fechamos a portinha e fomos embora. 

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Moicano, Fábio, Jean e Billy

E fomos, nos esgueirando pelas quebradas de um labirinto, até que chegamos numa pracinha de uma igreja cheia de arbustos. O lugar parecia completamente vazio. Mas, do nada, do meio dos arbustos, começaram a sair vultos, um atrás do outro. Uns caras então se aproximaram da gente, não sei quantos, talvez uns dez ou quinze ou mais. Um deles chegou pra gente e disse muito apreensivo: “O que que vocês estão fazendo aqui?! Acabaram de matar um cara na favela e os justiceiros estão na captura. Vocês têm que ir embora daqui, rápido. Mas cuidado. Os caras estão em um uno azul e numa variant vermelha”. Nós contamos sobre nosso encontro com a variant e, então, o cara disse: “O Ferrolho disse no Globo Repórter que nunca matou ninguém. Como não? Mentira! Eu vi ele matando um cara bem na minha frente!!!” Então, saímos rapidamente dali. Pouco depois, para o nosso alívio, começou a amanhecer. O dia já estava claro quando vimos o carro branco passar na toda, numa rua, bem longe. Demos risada  Esse foi o dia inaugural da Irmandade. Quando cheguei em casa, escrevi a música “Delinquentes ou Inocentes”.

Letra datilografada

VPRR: Caramba, que estreia...

JF: Mas ainda não era Irmandade Punk, porque muitos metaleiros e carecas andavam com a gente, daí irmandade. Mas os metaleiros e carecas foram saindo, pouco a pouco, e só restaram punks. Daí virou só Irmandade Punk. Mas o Vietnã e o Nojento continuaram andando com a gente, e, às vezes, também o Mazinho.


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Fanzine da Irmandade Punk, feito por Canibal.

VPRR: E os anarcopunks? você também conheceu...


JF: Os anarcopunks foram uma mudança de paradigma no rolê e você vai entender o motivo. O visual punk no Brasil sempre foi muito discreto. Era uma camisa de banda, jaqueta preta, coturno e, raramente, alguém usava um moicano, meio escondido, pelo boné. Hoje é fácil você pintar o cabelo, erguer um moicano e sair. Naquela época não. O pessoal mexia, xingava, provocava, sempre tinha treta por causa disso. A polícia sempre tava no pé. Não dava para sair sozinho. O que rolava é que a gente só botava o visu quando se encontrava com a banca. Aí dobrava a calça, para mostrar o coturno, levantava o moicano com sabonete. Mas quando a gente conheceu os anarcos, a gente ficou desapontado com o nosso visual, porque os caras pareciam ter saído de uma revista com fotos de punks da Inglaterra, Holanda ou Finlândia. Eles usavam moicanos ou cabelos espetados, muito coloridos, brincos, alfinetes na orelha, na bochecha, correntes, roupas rasgadas, jaquetas rabiscadas, cheia de rebites, enfim, pareciam da gringa!


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Em 1991, eu conheci o Carlinhos, o Valo-Velho, a Maria e muitos outros, quando ainda eles se encontravam na Estação da Luz e numa casa em cima de um morro em Franco da Rocha. Eles também vinham com uma proposta nova. Diziam: “Os punks nunca souberam o que realmente é o anarquismo, agora nós vamos estudar e vamos colocar em prática”. Eles também foram vanguarda nisso que hoje em dia se chama “pauta identitária”. Naquela época, o preconceito era muito grande. Nos anos 80, por exemplo, muitas meninas ainda queriam casar virgem – e não eram evangélicas (se é que alguma evangélica casa virgem hoje em dia). O lance do “ficar”, beijo casual em uma festa, show etc., era notícia em matérias jornalísticas de TV, revista e tal, onde especialistas discutiam se era uma prática saudável e por aí vai. Homossexualismo, então, nem pensar. Estava restrito a guetos no centro da cidade, à noite, na boca do lixo. Os anarcopunks foram os primeiros a ostentar relações homoafetivas em lugares públicos. Para você ter uma ideia, se você for hoje na FFLCH-USP, vai ver muitos casais homossexuais. Normal. Mas e se eu disser pra você que no ano de 1996, no Festival USP Core, os anarcopunks escandalizaram a FFLCH quando em grupo e aos beijos múltiplos rolavam no chão. Os estudantes da FFLCH ficaram boquiabertos!

VPRR: Quem mais vocês conheceram?

JF: Naquela época nós também conhecemos os Anjos do ABC, banca da antiga, mas que já restavam bem poucos.

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Fábio

VPRR: Tinha outras gangues no rolê?

JF: E tinham aqueles que ninguém gostava, os White Powers, que tinham saído dos carecas e se tornaram nazistas. Ou seja, era um caldeirão de treta.

VPRR: Tem muito coelho pra tirar dessa cartola...

JF: Então, irmão, não sou eu que vou abrir a caixa-preta do movimento punk, morô.

VPRR: Bacana esse contexto histórico, mas vamos voltar para o Fecaloma.

JF: Até agora eu contei sobre a primeira fase do Fecaloma. Para falar sobre a segunda fase é necessário falar um pouco mais da Irmandade Punk. Naqueles tempos, tinha uma guerra entre dois grupos de punks, os do Subúrbio (ZL e ABC) contra os da Cidade ou City (ZN). Veja bem, a distinção não era geográfica, mas histórica. A treta começou com os punks da ZN e do ABC e durou mais de uma década. Desde o princípio, a Irmandade tomou uma posição de neutralidade. Mas com o tempo, começou uma pressão muito grande de ambos os lados para a gente tomar uma posição e alguns caras da Irmandade realmente queriam tomar partido. Eu e mais alguns, entre eles, o Sérgio e o Fábio (depois baterista do Gritando HC), fomos contra isso e fundamos uma corrente divergente dentro da Irmandade Punk, os Vira-Latas (nome, aliás, dado pelo Sergio). Não era uma ruptura, era apenas uma tendência dentro da Irmandade. A gente não queria comprar uma treta que não era nossa. Então, eu argumentava: “Se for pra se unir com alguma banca, então vamos se unir com anarcopunk”. Mas alguns caras interpretaram mal e resolveram nos pilantrar na quebrada. Muitos deles, no entanto, tinham se tornado punk ou entrado na Irmandade por minha causa. Então os caras não tiveram coragem da pilantragem. Acho que, no fundo, eles ficaram envergonhados, quase pedindo desculpas. O Scania comentou depois: “Não dá pra zoar os caras não, senão a gente nem vai conseguir se olhar no espelho depois e eu tô fora do rolê”. A Irmandade Punk continuou neutra, não por causa do Vira-Latas, que acabou, mas porque era a atitude mais digna a tomar. Os caras que queriam comprar a treta saíram e sumiram do rolê. Mas foi do Vira-Latas que surgiu a segunda formação do Fecaloma: Eu, Sérgio e o Fábio.

VPRR: Em que ano eles entraram no Fecaloma?

JF: Para ser exato, 1993.

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Fábio, Sérgio (fundo) e Jean

VPRR: E como vocês faziam pra tocar, era também improvisado?

JF: Não. Eu já tocava melhor, mas, como eu disse, os instrumentos musicais eram caríssimos. Então fui trabalhar e comprei uma guitarra usada, uma Jennifer vermelha e depois uma Giannini preta; o Sérgio comprou um baixo usado, Giannini também; e o Fábio, uma bateria caseira, que um cara fazia e vendia num jornal de coisas usadas, chamado “Primeira Mão”. A aparelhagem era de segunda também, emprestada e até furtada. Mas o duro foi descobrir que não era só ligar a guitarra e o baixo nos amplificadores e sair tocando. Os instrumentos precisavam estar afinados um com o outro e nós não sabíamos como fazer isso. Depois, quando eu ouvi uma gravação nossa, descobri que eu não sabia cantar. Mas, aos trancos e barrancos, a banda seguiu assim mesmo... até hoje.

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Sérgio

VPRR: Vocês chegaram a se apresentar em algum lugar?

JF: Não. Como eu disse, nessa época não tinha lugar pra tocar. Tocar mesmo, só muito mais tarde, no final dos anos 90, quando teve o segundo boom do movimento punk.

VPRR: Como foi esse “segundo boom”?

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Edição de 1982

JF: Até o final dos anos 80 e começo dos 90, se você perguntasse para qualquer punk onde surgiu o movimento punk, ninguém tinha dúvida: Inglaterra. Essa versão era confirmada pela mídia também. Veja qualquer revista, jornal, programa de televisão de época. Leia O que é punk? de Antonio Bivar. Neste livro, o autor atribui a origem do punk à Inglaterra e menciona o Pistols como a primeira banda punk do mundo.

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Mas com a queda do Moro de Berlim, o colapso do socialismo real e a abertura de mercado no governo neoliberal de Fernando Collor, a opinião pública decretou o “fim das utopias” e a vitória da economia de mercado. Isso significou uma grande mudança do ponto de vista ideológico. Neste contexto, a MTV, que começou a operar no Brasil, lançou uma intensa campanha para mudar a origem do movimento punk da Inglaterra para os EUA. A princípio, parecia uma questão trivial, banal, mas não era. Na verdade, era uma parte irrisória de uma conjuntura avassaladora da qual os efeitos estão culminando nos dias atuais. O que estava em jogo, e isso em todas as frentes, era uma limpeza ideológica de todos os vestígios de utopia dos anos passados. E o movimento punk não escapou. Veja só, o punk inglês provinha da classe trabalhadora, surgiu nos bairros operários quando a juventude amargurava o desemprego provocado pelo neoliberalismo da senhora Margaret Thatcher, a dama de ferro. (Lembra-se da música: “Let’s star a war said Maggie one day with the unemployed masses”). Na Inglaterra o punk era um movimento engajado politicamente, de esquerda, anarquista, e representava um protesto violento da juventude “no future” contra todas as convenções sociais hipócritas que conviviam em perfeita harmonia com a guerra fria. Já o punk estadunidense vinha da classe média liberal e alienada que só pensava em curtição e cheirar cola. Isso só começou a mudar na Califórnia, nos anos 80, depois da influência do punk inglês. Pois bem, embora produto da indústria cultural, o punk inglês negava seus pressupostos através da destruição que lhe era inerente e serviu de modelo para a rebeldia juvenil em todo mundo, inclusive, dos EUA. Então o punk, como um fenômeno sociológico específico, definido por um estilo de vida, uma visão de mundo e um modo próprio de vestir e cortar o cabelo surgiu na Inglaterra. Então, mudar a origem do punk implicava um esvaziamento dessa essência contestadora e, consequentemente, abria terreno para o ideal conservador das classes médias.

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Nos anos 80, a origem do punk era atribuída à Inglaterra.

VPRR: E Bandas como NY Dolls, Ramones etc, não eram punks?

JF: Como disse, o punk não é um gênero musical, mas um estilo de vida, um movimento assim como foi o hippie. Sinceramente, eu adoro Ramones, mas Ramones sempre foi mamão com açúcar, sempre teve livre-trânsito em vários grupos, inclusive, dos metaleiros, que, majoritariamente, sempre foram uma raça reacionária pra caramba (com exceções, claro).

VPRR: Eu sou de uma geração diferente da sua. Para mim é irrelevante a origem do punk. Qual a importância do punk inglês para geração dos anos 70 e 80 no Brasil?

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JF: Total. Na minha época, final dos anos 80, se uma banda punk colocasse um solo de guitarra numa música já era considerado traidor. O pessoal dizia que estava se vendendo, que traía o movimento e tal. Eu mesmo presenciei uma briga de soco por causa de uma foto de um disco do Exploited em que na calça de um dos integrantes da banda estava escrito Metallica. O que importava para a punkaiada não era a música em si, mas o protesto, a crítica, a atitude, a letra das músicas. Letras de protesto! Isso tinha muito a ver com o que eu falei sobre o punk inglês. Mas para compreender melhor isso é preciso entender o contexto em que surgiu o punk no Brasil, que é muito mais amplo e envolve toda a sociedade brasileira. A crise do petróleo tornou o regime militar insustentável politicamente. O caso do jornalista Vladimir Herzog desencadeou uma comoção muito grande abalando fortemente a opinião pública e minando o cada vez mais frágil apoio à ditadura. O processo de abertura política era inevitável, irreversível e tinha dado início a tal da dita “transição lenta, gradual e segura” para a democracia liberal e civil. Com a lei de anistia, os opositores do regime militar voltam do exílio e se organizam politicamente. Na região do ABC, em São Paulo, com o novo sindicalismo, os metalúrgicos se mobilizam num movimento significativo que culminou num processo grevista. Nascia o PT, a CUT, a burocracia sindical e os partidos comunistas saiam da clandestinidade. A censura sufocava a arte, a liberdade de expressão, mas bandas como o Ira! desafiavam e cantavam: “Eu tentei fugir, não queria me alistar, eu quero lutar, mas não com essa farda”. A panela de pressão do regime militar estava por explodir. É nesse cenário de intensa efervescência social e cultural que o punk chega ao Brasil e encontra terreno fértil para produzir uma das cenas mais originais e criativas do mundo. Bandas como Ratos de Porão, Cólera, Garotos Podres e Olho Seco, entre outras, ultrapassaram fronteiras e foram reverenciadas até mesmo no berço do punk, a Europa. Mas o punk no Brasil não foi algo homogêneo. Aqui, o punk surgiu simultaneamente em dois polos, Brasília e São Paulo, e com extração social distinta. O punk de Brasília era de classe alta, filhos de diplomatas, políticos e altos funcionários que tomavam contato com o punk através de viagens ao exterior de seus pais ou deles próprios. Todas as bandas de Brasília, no entanto, acabaram virando pop. O punk de São Paulo, ao contrário, vinha das classes baixas, da classe trabalhadora da periferia, e descobriu o punk através de uma revista. Conhece aquela música do Gilberto Gil: “Sou o punk da periferia, sou o punk da Freguesia do Ó, Ó! Ó! Ó! Aqui pra você”. Esse punk, de origem proletária, tinha laços de identidade muito grande com seu congênere inglês, que ia muito além de uma moda musical. O punk brasileiro, surgindo em um contexto social riquíssimo culturalmente, pôde germinar em toda sua extensão a semente que o punk inglês havia lançado, dado que ambos compartilhavam da uma mesma situação social de classe explorada.

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VPRR: Só não entendi aonde você quer chegar com toda essa retrospectiva histórica? E o boom do punk?

JF: Depois da lavagem cerebral da MTV, o punk foi cada vez mais migrando para a classe média e com isso perdendo a originalidade. As bandas de classe média, ou até mesmo de classe alta, que surgiram, eram todas cópias de bandas gringas e cantavam uma realidade que não tinha nada a ver com a brasileira. A partir daí, houve um fenômeno que nunca ocorreu no punk antes: banda punk brasileira cantando em inglês. Eu te desafio a mostrar pelo menos uma única banda punk dos anos 80 com letras em inglês. Uma única! Mas, você não vai achar, sabe por quê? Porque não tem. Então, a atitude punk foi reduzida a mera performance, espetáculo vazio, visual oco, e buscou-se desta forma uma inserção através do mercado. Agora você entendeu a mudança? Parafraseando um famoso rabino: nos anos 70 e 80 o punk surgiu como tragédia; nos anos 90 e 2000, como farsa.

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VPRR: Você não gosta dos anos 90?

JF: Os anos 90 anteciparam e prepararam o atual cenário ultraconservador e obscurantista no qual estamos vivendo hoje. Isso não foi à toa. A juventude emburreceu.

VPRR: Mas tá, você mesmo disse que Fecaloma surgiu em 89, primeira formação, e 93, segunda. O Fecaloma só lançou o CD Transgredir por transgredir nos anos de 1998. A impressão que eu tenho é que vocês são mais dos anos 90 do que 80. Ou eu tô errado?

JF: Você está errado. Quer dizer, você está certo. Quer dizer, você está certo e errado ao mesmo tempo. Na verdade, a minha fala tem muito de provocação. Eu escuto e gosto de muitas bandas surgidas nos anos 90, como Paranoia Social, Execradores, Invasores de Cérebros, Excluídos, Colisão Social, Los Mortadelas, Phobia, Deserdados, Juventude Maldita, Flicts, Voz Ativa, Gritando HC, Calibre 12 e tantas outras que eu não consigo me lembrar agora. Além disso, têm as bandas que surgiram nos anos 2000, como Ratas Rabiosas, Geração Suburbana, Detestáveis... Eu adoro de todas essas bandas! Desculpa se estou esquecendo alguma, é que minha memória já não é tão boa, assim. Mas com certeza existem muitas bandas novas excelentes por aí. Também não dá pra ficar louvando só os anos 80. Por exemplo, a sociedade era muito preconceituosa, muito machista. Por isso, as pautas identitárias, que surgiram a partir dos 90, são uma grande conquista social, que hoje estão ameaçadas novamente.É que são duas coisas diferentes, até nos 80 havia um projeto coletivo; nos 90 em diante, as saídas são todas individuais. É preciso chegar a um meio termo.

Donald, Pulgão, Jadson, Jean, Carlos, Sérgio, Naval e Greg
Donald, Pulgão, Jadson, Jean, Carlos, Sérgio; sentados: Naval e Greg 

VPRR: Não sei se entendi muito bem, mas fale sobre o CD Transgredir por transgredir.


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JF: O Fecaloma sempre manteve alguma coisa do experimentalismo dos anos 80, da liberdade criativa e da irreverência. A gente desafinava, errava e não tava nem aí. O Fecaloma é uma banda que pegou a transição. A música “Transgredir por transgredir”, por exemplo, foi escrita em 1991 e diz muito sobre a situação em que nós vivíamos. Eu assisti o colapso da URSS. Foi algo desapontador, porque representava o fim de uma alternativa à hegemonia do discurso único. Além disso, o Brasil não saiu da recessão da década perdida e as políticas neoliberais apenas pioraram a situação. Eu, meu irmão e nossos amigos ficávamos o dia inteiro largados, sentados na calçada, sem ter um emprego descente, sem ter o que fazer. Então eu escrevi “Transgredir por transgredir”. Eu queria passar a seguinte mensagem: “Não importa que o mundo desabe, que todas as teorias sejam falsas, que tudo não passa de hipocrisia. Não importa, levante-se daí e vá mudar o mundo”. Eu tinha em mente um projeto, fazer do nada o princípio de transformação. Transgredir por transgredir é uma tautologia, uma redundância, forma pura, vazia de conteúdo, de significado. Seu sentido provém de sua ausência de sentido. Seu efeito é a própria causa. Se alguém diz que uma determinada organização social chegou ao seu fim mais racional, então a transgressão sem motivo vai colocar a prova isso e produzir significação, um sentido. Desafiar a ordem e experimentar as consequências disso. Então aquela ordem racional vai ruir e mostrar sua verdadeira face brutal, irracional. Acho que tem alguma coisa do dadaísmo. Eu pensava: se a luta de classes não transforma a sociedade, então alguma coisa transforma. Eu pensei numa negação de todos os valores de nossa civilização. Pretensioso, né! Na época, eu não conhecia, mas tinha alguma coisa do conceito de “transmutação de todos os valores”, do filósofo alemão Nietzsche. Isso veio indiretamente. Vou contar uma coisa que pouca gente sabe. Uma das maiores influências do Fecaloma é o maldito, digo, o vigarista Jorge. Jorge Mautner foi um dos primeiros a ler a obra de Nietzsche no Brasil, porque sabia alemão. Na Alemanha, até foi chamado de Nietzsche do samba. Nos anos 60, Mautner fundou o Partido do Kaos e reivindicou a “nova coisa”. Ele foi amigo de meu pai. De certo modo, as músicas deles, que eu conhecia desde a infância, devem ter influenciado bastante o Fecaloma.

Jorge Mautner
Jean Fecaloma e o vigarista Mautner

VPRR: Jorge Mautner! Essa é a influência mais inusitada para uma banda punk.

VPRR: Meu pai dizia que o Mautner tinha sido o primeiro punk do mundo.

VPRR: E “Primeiro da classe”, é uma música bem polêmica...

JF: A função da escola é domesticar, adestrar, disciplinar. A escola forma para a linha de montagem, para a divisão do trabalho. A escola segrega. Como definiu um amigo meu, o Zá, ex-anarcopunk, a escola é um sistema de constrangimentos. O que eu passei na escola, as humilhações, não dá nem pra contar... Na escola, o professor personifica a autoridade, do patrão, dos governantes. Ele está lá para oprimir e reprimir, inculcar na criança o princípio de realidade, do trabalho, sobre o princípio do prazer. Mas, a crítica radical à escola não tem nada a ver com este projeto que querem nos impor. Imagine como será a sala de aula quando instaurarem um ambiente de denúncia na escola. O aluno transformado em um dedo-duro em potencial. Nada mais deplorável! Eu assisti um vídeo de uma professora que ensinava seus alunos a colocar uma camisinha com a boca. Ela própria demonstrou isso em sala de aula com uma prótese presa a um aluno. Eu achei isso fantástico. A professora conseguiu transpor a linha hierárquica que separa aluno e professor e ensinar de modo marcante algo muito importante sobre a prevenção de DST e gravidez precoce. Mas qual foi a reação das pessoas, inclusive, de professores? Xingaram, chamaram ela de vagabunda. Ou seja, em nome de um falso moralismo tacanho, tentaram desqualificar uma aula formidável que visava estimular o uso de preservativos entre adolescentes. São os mesmos hipócritas de sempre. Então, eu estou do lado dessa professora e quando eu assisto uma aula como a dela eu penso que há ainda na escola espaço para educar para uma sociedade solidária e livre de preconceitos. Quando eu escrevi “Primeiro da classe”, eu era um estudante de escola pública. Talvez, hoje, não teria escrito ou mudaria muita coisa na letra. Mas o alvo não eram os indivíduos, mas a estrutura. Era uma metáfora, fazer da vida um recreio, que é o fundamento de toda utopia.


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Jean Fecaloma, 2002

JF: Eu tinha um projeto, que era gravar todas as músicas do Fecaloma, que foram escritas no final dos anos 80 e início dos 90. Então, nós fomos para um estúdio e gravamos.


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VPRR: Eu sempre gostei da música Luisa mas algumas pessoas dizem que a letra é contra o aborto. Foi você que fez a letra? Você é contra o aborto?

JF: Fui eu que fiz. Honestamente, a minha opinião pouco importa. Mas, se você quer saber, eu digo. Eu sou a favor do aborto. Ponto final. Mas quando eu digo que minha opinião pouco importa é porque estou colocando a questão em um outro nível, não o da subjetividade mas o da objetividade. Eu conheci muitas garotas que fizeram aborto, algumas até cinco. Não tenho nenhum juízo de valor quanto a isso. Bom, mas eu te pergunto: essas garotas eram pobres? Essas garotas eram negras? A resposta é um NÃO bem grande! Elas fizeram aborto em clínicas de fachada, no bairro do Jardins, super seguro, com equipamentos de alta tecnologia, tudo muito higienizado. Sim, porque tem muita burguesia aí... Cê tá entendendo esse treco? Mas e as meninas pobres, negras, elas podem fazer aborto nessas clínicas, que são caríssimas? A resposta é outra vez um NÃO bem grandão. É muito fácil você ser de uma classe privilegiada e usar do argumento liberal de que o corpo é seu e que faz o que bem entende com ele e tal. Tipo, o corpo é minha propriedade. Quem foi que disse isso mesmo? John Locke, não é? O corpo como propriedade e, por extensão, o trabalho, o produto do trabalho... Sim, foi um desses liberais ingleses. Mas, e quem não tem propriedade, nem o seu próprio corpo, que é reduzido a uma ferramenta de trabalho, espoliado, expropriado? O proletariado, que por definição é aquele que é dono unicamente de sua prole? De fato, as meninas pobres, negras, da periferia, não podem se dar ao luxo de fazer aborto sem riscos, sem infecções, nas clínicas de fachada dos bairros nobres. Afinal, são elas que geram a massa de trabalhadores, em abundância, que farão parte no exército de reserva de trabalho, derrubando os salários lá pra baixo. Afinal, alguém tem que gerar o peão de obra, a empregada doméstica... Então, eu vou cair no lugar comum e dizer que a questão do aborto não é uma questão pessoal, de convicção, e, sim, de saúde pública. Por isso, deve ser urgentemente legalizado. Só que isto está muito longe de acontecer. O que rola é a hipocrisia de sempre: mulheres ricas, independentes e poderosas, acima da lei; enquanto mulheres pobres, dependentes e exploradas, sob o tacão da lei. É sempre assim. Quando eu escrevi a letra “Luisa”, não foi para as garotas de classe média alta ou alta. Eu escrevi para as garotas pobres. Estas, quando querem fazer um aborto, tem que procurar clínicas clandestinas, que são verdadeiros açougues, onde alguém sem qualquer qualificação espeta uma agulha de tricô na mulher e fica perfurando o útero. Conheci uma mulher que para abortar encheu a cara com aqueles venenos verdes, espirais, que vendem em caixinha, para espantar pernilongo. Ela quase morreu mas a criança acabou nascendo. A criança era uma coitada, totalmente rejeitada. Olha, faz tempo que a gente não toca essa música, mas eu me lembro que a letra diz mais ou menos assim: “Luísa está grávida e ainda é uma adolescente, foi abandonada, está sozinha, sozinha no mundo, mas com um começo de vida” – aqui há uma ambiguidade, porque esse começo pode ser o do bebê ou da própria Luisa, que é uma adolescente. Depois a letra diz assim: “(...) morando num cortiço, trampando noite e dia, a coragem de enfrentar as decepções da vida (...) foi difícil decidir entre arriscar a sua vida num aborteiro clandestino ou perder a juventude (...) mas talvez você terá alguém pra mudar o mundo”. Acho que é mais ou menos isso. Ou seja, a mina, uma adolescente, ficou grávida, o babaca do namorado não assumiu a criança e fugiu, ela é pobre, tem que trabalhar, mora num cortiço e, se quiser abortar, terá que procurar um aborteiro clandestino. Escrevi essa letra baseado numa pessoa real.

Luisa


Luisa está grávida
E ainda é uma adolescente
Foi abandonada, está sozinha
Sozinha no mundo
Mas com um começo de vida

Morando num cortiço
Trampando noite e dia
A coragem de enfrentar
As decepções da vida

Ausência dos amigos
O quarto sempre escuro
Ninguém apareceu
Nas noites em que você chorava

Garotas estão grávidas
E ainda são adolescentes
Foram abandonadas, estão sozinhas
Sozinhas no mundo
Mas com um começo de vida

Foi difícil decidir
Entre arriscar a sua vida
Num aborteiro clandestino
Ou perder a juventude

Injustiças e preconceitos
Desta sociedade
Mas você terá alguém
Pra mudar o mundo?


O final é uma interrogação. Mas a letra passa uma mensagem positiva, apesar de tudo. Que ela pode ensinar seu filho ou filha a mudar o mundo, caso optou por ter a criança. Me lembrei de uma história. Conheço outra mulher que criou quatro filhos sozinha. Foi atrás da pensão mas o ex-marido sumiu. Quando seu filho engravidou uma moça, não assumindo, e a tal moça pediu pensão, sabe o que ela disse? Que a moça era uma aproveitadora. Ou seja, ela foi vítima e não aprendeu nada com a vida! Por isso, só mudando o mundo poderemos algum dia sonhar em direitos iguais. Quando todas as mulheres puderem fazer um aborto seguro, aí sim, vamos transformar a questão do aborto numa questão pessoal, numa escolha subjetiva, ou numa discussão filosófica, teológica ou seja lá o que for.

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Sérgio e Daniel


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Sheilla, baixista, gravou o CD "Ocupar e resistir" 

JF: É engraçado, depois que os estudantes ocuparam as escolas em 2016, o lema “ocupar e resistir” virou moda. Muita gente pensa que o Fecaloma lançou o CD depois das ocupações e se surpreendem quando digo que saiu em 2005. Eu dou risada, porque o lema “Ocupar, resistir, produzir” vem lá do início dos anos 80, com o MST. A ideia do CD veio porque eu desenvolvia um trabalho de pesquisa numa ocupação de sem-teto.


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Bom, a intenção foi a mesma dos outros CDs, eu queria registrar todas as músicas do Fecaloma. Porém, para esse CD, eu acabei compondo algumas músicas novas, como a que dá o nome para o CD, “Ocupar e resistir”. Só que foi difícil porque eu já não tinha mais inspiração para compor. Pegava o violão e não saía nada. Até que a falta de inspiração me inspirou a escrever “Acabou a inspiração”.

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Moicano, Fábio, Gordo, Modis, Jean e Sérgio

VPRR: Algum tempo atrás, eu conversava com uns caras de uma banda e eles culpavam os preços baixos dos CDs do Fecaloma pelo CD deles terem encalhado. O que você acha disso?

JF: Bom, então eles estavam nos acusando de praticar dumping, que é um jargão dos monopólios capitalistas para denunciar empresas que abaixam os preços e prejudicam os interesses monopolistas de mercado. Puxa, é chato dizer, mas o punk reproduz muitas vezes a lógica do sistema. Uma vez, um amigo me disse: “Jean, você tem que aumentar o preço do CD do Fecaloma, senão o pessoal não vai valorizar, vai achar que é ruim”. Essa é lógica da mercadoria, não da arte. Quando eu comecei a curtir e ouvia dizer que bandas como Black Flag colocavam um preço na capa bem barato com a seguinte inscrição, “não pague mais, senão roube”, eu admirava essas bandas. Quando nós participamos da coletânea SP Punk Vol. 2, nós descobrimos que a produção de um CD era baratíssima; na época, custava um a dois reais a unidade, com caixinha de acrílico, capinha com foto, encarte e tudo. A gravação que saía caro. Mas não muito também e, se você procurasse bem, alguns estúdios eram baratos, como os que nós gravamos. O preço de custo do Transgredir por transgredir foi cerca de 4 reais a unidade, Rebelião adolescente, R$ 2, e o Ocupar e resistir, uns 5 reais, talvez. A gente vendia a preço de custo mas as lojas não queriam vender, com exceção da loja do Fábio (Olho Seco) e do Xinês (Excomungados). Reclamavam que não tinham retorno. Por isso que no CD Ocupar e resistir deixamos 2,5 reais de lucro para as lojas, o preço de um botton. Mesmo assim nenhuma loja queria. O erro foi baixar demais e não se dar conta que a distribuição ficava inviabilizada. Mesmo assim, acho que 10 reais seria um preço justo: 5 pra banda; 5 pro lojista. Então, por que vender um CD a preço de mercado, que na época era de 20 reais? Mas essa banda não devia nos culpar por isso. O CD deles não encalhou por causa dos nossos, mas porque o produto CD se tornou uma mercadoria obsoleta com a chegada de novas tecnologias, como a intenet, o MP3. Aliás, o último CD do Fecaloma, Ocupar e resistir, também encalhou. E eu simplesmente doei tudo. Tudo, tudo, tudo. Tudo de graça. No cômputo geral, a gente só teve prejuízo com a banda, porque o que vendeu demorou muito para sair e acabou desvalorizado, e os que encalharam foram dados. Com o Fecaloma, a gente nunca ganhou nada, em termos monetários. Para produzir os CDs, foram todas as minhas economias, que eu juntei, que eu trabalhei. Mas o ganho real foi poder divulgar as músicas e saber que elas tiveram algum significado para a vida de algumas pessoas.

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Neno e Moicano

VPRR: Você é bastante crítico com a “mercantilização” do punk. Recentemente publicou uma postagem na fanpage do Fecaloma no Facebook intitulada “Show punk é de grátis”.



JF: Sim. Mas não vamos misturar o joio com o trigo. Não vamos generalizar. Tem muita casa de show legal por aí que não pode deixar de cobrar ingressos, vender cerveja, por causa do aluguel, da conta de luz, de água etc. Mas, por outro lado, têm uns lugares que exploram descaradamente as bandas e o público se utilizando das referências da contracultura como rótulo de mercadoria. Não têm qualquer respeito com as bandas, principalmente com as pequenas, e se aproveitam da boa vontade da galera para ganhar dinheiro, não apenas com a bilheteria, mas com um comércio bastante lucrativo de cerveja, refrigerante e essas coisas. No ano passado, fomos tocar num desses lugares, só que um dos responsáveis do lugar, do alto de sua prepotência, me ofendeu porque eu questionei uma prática da casa que considerei antiética. Ou seja, a gente foi tocar lá de graça, em plena tarde de domingo, sem jantar, gastando dinheiro com condução, sem ganhar um centavo em troca, e ainda um dos responsáveis do lugar se sentiu no direito de me xingar, mesmo estando errado. Nunca aconteceu isso antes. Sabe, tipo minions, que ficam se xingando na internet, porque não sabem dialogar e se ofendem por não ter razão. Atitude tipicamente fascistóide. O Fecaloma nunca cobrou cachê pra tocar e, toda vez que a gente ganhou cachê, esse dinheiro não ficou com a gente. Ou o dinheiro era para pagar o amplificador que quebrou, ou para pagar a gasolina da banda que veio do interior... Esse tipo de coisas, sabe. Certa vez, e o Xinês dos Excomungados é testemunha, nós recebemos uma parte da bilheteria antecipadamente, mas uma galera que foi ver a gente não tinha dinheiro para entrar. Adivinha o que fizemos? Pegamos o dinheiro e distribuímos para a galera entrar. É por isso que o Xinês brinca que o Fecaloma é a banda mais punk do mundo. (Risos).

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Excomungados

VPRR: E o movimento anarquista?

JF: Que movimento anarquista? Feirinhas alternativas, artesanato, livrarias, bibliotecas libertárias, playboys e professores universitários? Xará, uma vez eu fui num lugar chamado ICAU, que ficava na Vila Madalena. Quando eu entrei nesse lugar, tinham uns caras barbudos – aliás, todo barbudo é reacionário – uns barbudos arrogantes, fazendo tipo de intelectual, vestidos com terno de veludo, boina, fumando cachimbo, sentados com uma perna cruzada em cima da outra, bebendo uísque e ouvindo uma banda de jazz. Sabe o que eu fiz? Não fiquei nem um minuto naquele lugar. Para esse pessoal, anarquismo é um estado de espírito, uma questão abstrata comportamental. Isso não é anarquismo. Como eu disse, trabalhei numa pesquisa por sete anos em um movimento sem-teto. Em todo esse tempo, nunca vi um único anarquista lá. Sabe por quê? Porque os anarquistas estão nas feirinhas alternativas, nas bibliotecas libertárias, nas universidades. Não estão nos movimentos sociais, nas fileiras da classe trabalhadora. O anarquismo se tornou um nicho de mercado. Vou repetir, porque essa crítica também vale para o punk: o anarquismo se tornou um nicho de mercado. Quem se lembra do texto “Palavras de Desordem”, no encarte do CD Transgredir por transgredir? Está escrito: “Vende-se de tudo: etnias, posturas, crenças, ideologias e rebeldia”. Sim, está tudo a venda, cultura, comportamento, símbolos, contracultura, transgressão. Vende-se tudo isso como se vende uma lata de molho de tomate num supermercado de esquina. Banalizaram tudo. Gostaria que estas livrarias e bibliotecas libertárias distribuíssem livros de graça para as comunidades carentes, acampamentos, escolas públicas. Que estas feirinhas abolissem o valor de troca da mercadoria e estabelecessem uma relação baseada na dádiva. Xará, eu tô cansado de hipocrisia. Se quiser entrar para uma igreja, fique à vontade, têm dezenas por aí, de todos os tipos. Eu tô fora. Infelizmente, o anarquismo acabou na década de 1930 e 68 foi uma grande farsa, a redenção dos liberais dos nossos dias. Isso não significa dizer que o anarquismo não pode voltar. Talvez, nestes tempos de falta de esperança, somente o anarquismo pode oferecer alguma alternativa de mudança real. Mas que fique claro: que o anarquismo renasça do povo.

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VPRR: O que você acha do atual cenário político?


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Nóia, Festival Fim do Mundo

JF: Acho que, ao nível da superfície, chegamos a um ponto em que duas forças antagônicas estão em confronto. Uma é pré-moderna e a outra, pós-moderna. Talvez sejam a face diferente da mesma moeda. Porém, a história gira em círculos espirais e é acumulativa, portanto, não é possível deter as forças pós-modernas, que representam o futuro, muito embora o passado sempre permaneça presente. Em um nível mais profundo, no entanto, os fundamentos da economia estão numa crise que levará a sociedade a uma grande perda de direitos, penalizando ainda mais os mais pobres. Imagina, querem que as pessoas trabalhem mais e por mais tempo e, ao mesmo tempo, o desemprego é enorme, não há trabalho!  

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Daniel, Jean e Neno

VPRR: Você disse que queria registrar todas as músicas. Ficou faltando alguma?

JF: Ficou. Mas eu cheguei a gravar só com o violão e postei no meu canal do YouTubeJoão Monti. Uma ou outra eu esqueci, como “Abrigo nuclear”, que contava a história de um cara que se refugiou num abrigo nuclear por causa de uma guerra nuclear e ficou separado da namorada. Tinha uma outra também que por mais que me esforce não consigo me lembrar. O refrão era assim: “A luta pela anarquia/ faz de um manifesto poesia,/ manifesto poesia”. Em têm estas que foram datilografadasna máquina de escrever que encontrei dentro de um envelope no arco do baú.

Letra datilografada

VPRR: Além do Jorge Mautner, quais são, em termos de discografia, suas grandes referências do punk? Me fale dez disco mais importantes, cinco de fora e cinco daqui.

JF: Então, mano, são todas dos anos 80. Tipo, aquilo que me faz sentir naquele tempo, sentir aquela atmosfera, que me motivou a formar o Fecaloma. Vou dizer os discos que considero mais importantes. Brasileiros: “Cabeça dinossauro”, Titãs; “Crucificados pelo sistema”, Ratos de Porão; “Tente mudar o amanhã”, Cólera; “Mais podres do que nunca”, Garotos Podres; e “Pânico em SP”, Inocentes. Gringos: “Disco branco”, Dead Kennedys; “Rocket to Rssuia”, Ramones; “Never mind Bollocks”, Pistols; “London Calling”, The Clash; “Let’s star a war said Maggie one day”, Exploited. Fora esses, o Replicantes também marcou bastante, os discos dos Toy Dolls e as coletâneas “Sub” e “Vikings are coming”, idem. Enfim, uma dezenas de músicas que eu ouvia em fita cassete e nunca soube o nome das bandas. Mas eu não sou nenhuma enciclopédia em música punk.

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Moicano, Neno, Jean e Fábio


VPRR: Você citou os clássicos.

JF: Um pouco óbvio.

VPRR: Eu trocaria o “Tente mudar o amanhã” pelo “Pela paz em todo mundo”.

JF: Puxa, meu irmão gosta. Eu prefiro o primeiro. Mas eu também não sou nenhuma enciclopédia em música punk.


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Gabriel Sossai

VPRR: Você poderia falar brevemente sobre as formações do Fecaloma, que foram muitas, e o processo de composição das letras e músicas.

JF: Brevemente? Vou citar o nome de todo mundo que já tocou na banda, que eu me lembro: Eu (Jean), Diego Moicano, Neno, Sérgio, Fabio, Billy, Daniel (Fofão), Madureira, Binha, Nóia, Sheilla, Maycoln, Chu, Gabriel Sossai, Danilo e Henrique. Puxa, muita gente, né, espero que eu não esteja esquecendo alguém. Outro detalhe: o Moicano e o Neno saíram e voltaram várias vezes em outras formações. 


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Maycoln

VPRR: Como é o processo de composição?

JF: Eu acabei compondo todas as músicas, com exceção da letra “É”, que é do meu irmão, o Moicano. Meu irmão compunha letras muito boas, só que eram longas demais e não encaixavam nas músicas que eu fazia. Ele acabou até virando o MC Porco e formou um grupo de rap com um tal DJ Fran, amigo nosso. Letra de música punk é que nem haikai, tem que ser sintética, curta e grossa, e ao mesmo tempo dizer tudo. Mas o fato de eu compor as músicas não significa que eu imponho como elas vão ser. Todo mundo que já tocou no Fecaloma tem total liberdade para criar em cima. Não é o que eu gostaria. Se fosse por mim, o som seria o mais tosco possível: o baixo seguiria a guitarra, sem firulas, e a bateria seria tipo Ramones, sem passagens. Foi assim que eu idealizei o Fecaloma naquela noite em que eu discotequei Ramones a festa inteira. Mas, eu não posso impor isso. No Transgredir por transgredir, por exemplo, o Daniel, que vinha do grunge, fez uma batida diferente do que eu queria. E eu gostei! E, no Ocupar e resistir, o Maycoln foi responsável por gravar duas guitarras, que pra mim era um sacrilégio, mas, cara, vou admitir, ficou bem legal. Então, todo mundo que tocou no Fecaloma deu a sua contribuição. Por isso que sai diferente. Minha irmã diz que há uma trilogia do Fecaloma: infância (Transgredir por transgredir), adolescência (Rebelião adolescente) e maturidade (Ocupar e resistir).


Foto
GZ - guitarra

VPRR: Valeu a pena formar o Fecaloma?

JF: Hoje eu olho pra trás e vejo muita ingenuidade. Achava que ia mudar o mundo com a banda. Se na época eu pensasse como hoje penso, provavelmente, não teria feito a banda. Mas não me arrependo. Durante muito tempo o Fecaloma fazia um sentido enorme para mim. Depois nós crescemos e temos que pagar as contas. Mas devemos sempre correr atrás dos nossos sonhos, mesmo que eles não deem em nada, o que é o mais provável, mas o mais importante não são tanto os sonhos e, sim, o que os sonhos fazem viver.

VPRR: Para terminar, o que você gostaria de dizer aos fãs do Fecaloma?