Por Nicolas Clash
Se eu tivesse que definir a banda Fecaloma em uma única palavra, não hesitaria em maldito. De fato, o Fecaloma é a banda maldita do punk nacional. E eu acho que o Jean Fecaloma, o vocalista histórico da banda, não se oporia a tal definição. Acho até mesmo contaria com sua aprovação. Para entender o que eu estou falando, basta ler a longa entrevista com o lendário vocalista, que me foi apresentado na Universidade de São Paulo como o “Chico Buarque do punk rock”.
“Longa entrevista” é até modesto para uma
banda que há 30 anos está na estrada e tem no currículo uma discografia de três
álbuns lançados na cena do rock independente: Transgredir por transgredir (1998), Rebelião adolescente (2001) e Ocupare resistir (2005) – todo o material – capa, encarte, disco e músicas – está
disponível nos links AQUI, AQUI e AQUI. Atributos esses que por si só já
justificariam uma atenção especial do leitor aficionado, mas a interpretação
nada habitual e polêmica a respeito do movimento punk no Brasil, episódios
desconhecidos atinentes ao cotidiano das tribos urbanas e revelações
surpreendentes tais como apontar o escritor e compositor Jorge Mautner como uma
das influências do Fecaloma são ingredientes a mais para encorajar a leitura
até o final. Mais do que uma homenagem, esta entrevista é um presente a todos
os fãs e interessados em punk rock.
ENTREVISTA
Jean Fecaloma, 1994. |
Verso, Prosa & Rock’n’Roll: Passados
30 anos de Fecaloma, algum projeto novo?
JF: No
ano retrasado, por sugestão do Ronaldo, dos Excluídos, nós voltamos a tocar,
depois de uns dez anos parados. Se há algum
projeto? Eu considero os livros que escrevi – Des-tino, A saga de um
andarilho pelas estrelas e A greve
dos planetas e outros causos vulgares, no mínimo, singulares – como
projetos do Fecaloma, porque guardam um pouco do mesmo espírito da banda. Agora,
se a banda tem algum novo projeto musical, não. A gente conversa, diz que vai
fazer isso e aquilo, só que não sai nada. Então, o projeto é, de vez em quando,
tocar em lugar legal.
VPRR: Cara,
conte quando e como começou a banda?
JF: Acho
que em 1989 ou 1988. 1989! Acho. Não lembro. Oficialmente, 1989. Mas o início
do Fecaloma não foi muito convencional. Quando começamos, a banda era mais ou
menos uma ideia concreta. Vou tentar explicar melhor esse conceito. Eu era
moleque e não gostava de rock nacional. Na época, eu só conhecia bandas que
tocavam no programa do Chacrinha, tipo Ursinho Blau Blau, Lobão, Roupa Nova
etc. Então, eu não gostava. As letras só falavam de amor e os caras faziam tipo
de moçinhos bem comportados. Era tudo muito chato! Só que um dia minha irmã, a Paula
Vanessa, conheceu na escola umas garotas que gostavam de rock alternativo, como
Ira, Legião e, inclusive, punk rock. Um dia, fui com ela numa festa no
apartamento de uma dessas amigas e lá toucou Titãs, Garotos Podres, Billy Idol,
Ramones, “Surfin bird” etc. Tinha uma galera agitando punk rock e eu achei
muito louco aquela dança. Parecia divertido. Só que eu ainda não estava muito
convencido. Naquele tempo, tinha um programa na TV de vídeo clip chamado
Realce, que era apresentado pelo Capivara e o Beto Rivera, e que nós, eu e meus
irmãos, assistíamos. Certo dia rolou um vídeo dos Inocentes – acho que era “Pânico
em SP”. Eu fiquei impressionadíssimo, porque eu nunca tinha visto um vocalista
negro em uma banda de rock nacional. As bandas que eu conhecia da TV só tinham
brancos. O vídeo também era sombrio, num lugar escuro, um beco, uma quebrada, e
a letra falava de sirene, de rádio, que era pra correr... Puxa, aí então eu
comecei a prestar mais atenção e até me simpatizar!
VPRR:
Sim, mas, e o Fecaloma?
JF: Peraí!
Nessa época, meu irmão, o Diego Moicano, também conhecido por Porco, também
começou a ouvir punk e comprou o disco “Tente mudar o manhã”, do Cólera. E aí
virou uma febre. Nós começamos a querer conhecer mais e mais. Então fomos
comprando todos os discos que pareciam ser punks, por causa de algum desenho,
foto ou porque alguém falou. Compramos “Mais podres do que nunca”, dos Garotos
Podres, Tropa Suicida, Dead Kennedys, Ratos de Porão e muitos outros.
Sergio, Jean e Paula Vanessa - Ramones, Dama Xoc |
VPRR: Mas
e a banda, o Fecaloma?
JF: Eu
escutava o som das bandas mas não achava que podia montar uma banda. Eu não
sabia tocar. Então, eu não pensava em fazer uma banda. Mas, um dia, fui
convidado para ir numa festa de um primo meu e, chegando lá, eu percebi que o
pessoal estava mais a fim de conversar do que se divertir. Como ninguém estava
controlando a vitrola, eu resolvi dar uma de DJ e, como ninguém se importou,
fiquei discotecando. Na verdade, eu estava mais conhecendo os discos do meu
primo do que realmente discotecando. Só que eu encontrei um disco do Ramones,
“Rocket to Russia”, que eu não conhecia. Coloquei o lado A, ouvi, e depois
virei, o lado B. Quando acabou o disco, olhei para a galera e o pessoal
continuava animado, conversando, sem prestar muita atenção em mim. Então decidi
repetir o disco. Quando acabou, olhei novamente para eles, que nem notavam a
minha movimentação, então, repeti o disco. Que mal teria se eu ouvisse o disco
de novo? Talvez, nem perceberiam que era o mesmo disco. Seria a última vez. A
agulha percorreu todo o disco e, no sofá, o xaveco rolava solto. Será que eles
iam ligar se eu ouvisse mais uma vez? Quer saber, dane-se. E assim foi. A certa
altura, maluco, eu já não estava mais curtindo, apreciando, me deleitando com
as músicas do disco. Eu estava analisando, examinando, estudando profundamente.
Depois de tocar um único disco durante toda a madrugada e, provavelmente,
encher o saco de todo mundo, que era muito educado e não queria cometer a
indelicadeza de pedir para um doido que ficou a noite inteira sentado em frente
da vitrola trocar de disco, eu olhei bem para o movimento de rotação do vinil,
girando, girando, girando, e disse: Eureca! Isso eu também sei fazer! Quando
voltei para casa, compus “Assassinos”.
VPRR: Você
fez uma música, até aí há uma distância enorme entre uma música e uma banda!
JF:
Pra mim, não. Naquele dia eu tinha fundado o Fecaloma. Mas eu não sabia disso
ainda. Depois de “Assassinos”, eu escrevi outras músicas, tudo na sequência: “A
peste e guerra”, “Os últimos espermatozoides radioativos”, “Armas não fazem a
paz”, “América Latina”, “América Latina”, “O que há de errados com os vermes”,
“Megalópole Onívora”...
VPRR:
Mas você não sabia tocar. Como compôs as músicas?
Moicano |
JF:
Sim, eu não sabia. Mas nós tínhamos um violão Tonante, que era a pior marca de
violão dos anos 80, e o nosso só tinha três cordas. Eu peguei o violão e fiz as
músicas tocando só uma única corda, a primeira, a mizona. Aí, eu chamei o meu
irmão e falei: “Vamos formar uma banda”. Ele topou na hora. Aí eu disse: “Vou
tocar guitarra”. E ele: “E eu bateria”. Faltava um baixista. Então nós chamamos
um amigo nosso, o Neno, que era um craque do futebol (infelizmente, não reconhecido,
porque não passou pela peneira do Palmeiras, seu time de coração, apesar de ter
marcado três gols, mesmo com o melhor jogador do time marcando ele; não passou
porque já tava tudo esquematizado para um peixe entrar, filho de um diretor). Não
sei como, o Neno também topou entrar na banda. O único problema é que ninguém
sabia tocar.
Neno |
VPRR: Se
não sabiam tocar, como formaram a banda?
JF: Por
decreto, a tal da ideia concreta. A banda existia, só faltava todo o resto...
VPRR:
Como assim?
JF: Nos
anos 80, era pré-requisito para formar uma banda punk ninguém saber tocar.
VPRR:
Não entendo como pessoas que não sabem tocar instrumentos musicais podem pensar
em formar uma banda. Não tem sentido, não parece lógico.
JF: A
lógica do punk era colocar tudo de ponta cabeça.
VPRR: Mas
com o tempo vocês acabaram
aprendendo a tocar.
JF:
Naquela época, não existia YouTube (canal Fecaloma), nem internet, então tinha que aprender na
marra. Minha mãe, Nilza Monti, toca piano erudito. Mas, quando eu e meus irmãos
éramos pequenos, meu pai vendeu o piano por falta de grana. Para substituir o
piano, minha mãe comprou o Tonante. Foi a minha mãe que gravou as musiquinhas
do Bach no final dos CDs do Fecaloma com um teclado. Nós gravamos com um
gravadorzinho caseiro, destes de fita cassete, tudo muito improvisado. Mas foi
minha mãe que, vendo o meu interesse, me ensinou as primeiras noções de música.
VPRR: E
os instrumentos, guitarra, baixo e bateria? Vocês não tinham?
JF: Não,
não tínhamos. Instrumentos musicais eram muito caro. Um dia conseguimos uma
guitarra Tonante emprestada. Ou era um baixo? Não lembro. Então, a gente
improvisava. A bateria, por exemplo, o Neno fazia tambores com lata de leite
Ninho, que naquela época era bem grande, o bumbo era um galão de gasolina e os
pratos eram panelas. Era um som meio rock industrial. A gente fazia umas
gambiarras num gravador de rolo, que era do meu pai, e distorcia o som da
guitarra, que não parava de tocar um som contínuo, infinito, sem interrupção.
Eu tinha feito uma música chamada “Abrigo nuclear” que, num dado momento, a
gente dava uma pausa e então eu tocava uma nota, que soava continuamente,
constantemente, sem parar, sozinha, infinitamente. Então, a gente saía e
deixava o som rolar, ia para frente de casa ouvir, dava risada, ia jogar bola e
quando voltava o som ainda estava rolando. Então a gente recomeçava a música de
onde tinha parado, com um grito: “O abrigo nuclear!”
Jean, Moicano e Sérgio |
VPRR: Difícil de acreditar nisso. Não me
parece possível!
JF:
Meu, pode crê. Pergunta pro meu irmão e pro Neno. Eles são testemunhas, podem
confirmar essa história. O gravador até acabou queimando, por causa disso.
VPRR: E
vocês tocavam pra quem?
JF: Pra
ninguém. Pra nós mesmos. Mas “O que há de errado com os vermes?” virou moda
entre a garotada do nosso bairro.
VPRR: Cara,
essa é a história mais estapafúrdia que eu já ouvi sobre a formação de uma
banda, até parece brincadeira.
JF: E
era.
VPRR: E
o nome da banda, como surgiu?
JF: O
primeiro nome foi “Espermatozoides radioativos”. Mas ninguém curtiu muito.
Então o Moicano veio com o “Fecaloma”. Pela minha memória, uma conhecida de meu
pai teve essa doença, então quando meu irmão sugeriu o nome, todo mundo deu
risada. Mas o meu irmão alegou que encontrou o nome num dicionário. Só sei que
o nome foi aceito por aclamação. Tem uma história engraçada, com o nome. O Neno
tava doente e foi pro médico. Depois do exame, o médico começou a explicar pacientemente
o diagnóstico, que era uma prisão de ventre e tal e tal. Então, o Neno
interrompeu o médico e disse: “Doutor, seja franco, eu estou com fecaloma?”
Mano, o médico quase caiu da cadeira e com os olhos arregalados exclamou: “Como
é que você sabe?!!!” O Neno explicou que tocava uma banda com esse nome e então
o médico quase surtou de tanto rir.
VPRR: Estas
histórias são surreais, cara. Você não tá inventando isso não, né. Bom, mas
nessa época vocês tinham contato com outras bandas punks?
Jean Fecaloma (à direita) e amigos da escola. |
JF: Não.
O Neno, por exemplo, nunca foi punk. O Neno gostava de todo tipo de música. Ele
gostava da zoeira. Agora, eu e meu irmão, o Moicano, queríamos ser punks,
digamos assim, punks de verdade. Eu tinha uns amigos que curtiam na escola, mas
era oba-oba. Porém, numa festa junina na escola, em 1989, eu e meu irmão
conhecemos o Charada, o Zero e o Panela. Eles eram da Devastação Punk. Pouco
depois, conheci o Beto, o Testa e outros caras. O Zero e o Charada iam na minha
casa. Foi bem no começo. Foram os primeiros punks de verdade que nós conhecemos.
Muito mais tarde, conheci alguns caras da City, como Jack e outros. Os caras
eram legais. Só não entendo porque tem tanta treta entre punks. Mas, na verdade,
eu e meu irmão andávamos mesmo com o Botijão, que era metaleiro, e o Bereta, que
era punk independente.
Jean Fecaloma |
VPRR: Vocês
quatro? Como era o rolê de vocês?
JF: Nós
saíamos para pixar e cometer alguns pequenos atos de vandalismo. Por exemplo,
um dia nós derrubamos um ponto de ônibus e resolvemos levar pra casa. Um guarda
noturno viu a gente andando com o ponto e gritou: “Ei, aonde vocês pensam que
vão com esse ponto de ônibus, seus pilantras!!!” E saiu correndo atrás da gente
apitando. Às vezes, também corríamos atrás de uns metaleiros. Às vezes, nós é
que fugíamos. Certa vez, estávamos andando em Santo Amaro quando passou um
ônibus lotado de metaleiro, os Sarcófagos. Os caras viram a gente e se
levantaram gritando para o motorista parar o buzão... Mano, como eu corri
naquele dia! Naquela época, punk e metal era como água e óleo, não se misturavam.
Mas já tava começando a mudar isso. Um dia, uns metaleiros da Vila Mariana, a
Guerrilha, me chamaram para ir num show do Ratos de Porão com eles no sindicato
dos aeroviários. Acabei conhecendo o Beka, líder dos Sarcófagos, que foi super
gente fina comigo. Os metal respeitam demais o cara. Ele me disse, “pode agitar
com a gente, não vai acontecer nada”. Mas não teve jeito, quando começou o
show, era muita gente, tava lotado, e era joelhada, cotovelada, voadora. Nesse
show tava o Papel, que tinha um moicano azul ou vermelho, não lembro, tava
tomando muita porrada também. Só tinha a gente de punk. Eu fui para uma escada
e sentei. Lá embaixo tinha um banheiro e eu vi o Papel e mais um outro maluco
entrarem. Eu fiquei olhando e notei que metaleiro que entrava no banheiro não
saía. Era um, dois, três... e não saía... tipo “Além da imaginação”. De repente
descobriram que o Papel e o outro maluco tavam quebrando os caras lá dentro e
foi uma confusão só. Os metaluco queriam invadir o banheiro. Acho que os dois
tiveram que sair dali escoltados pela polícia. Foi nesse show que eu percebi
que o Ratos não era mais punk.
VPRR:
Então havia muita treta entre metal e punk?
JF: E carecas!
Certa vez, teve uma treta do Toupeira, que era Headbenger ABC, com um função da
Aclimação. Os caras estavam em maior número e o Toupeira levou a pior. Então os
Carecas do Subúrbio compraram a treta do Toupeira e apareceram na Aclimação em
dois carros e um caminhão lotado e arrepiaram todo mundo. Foi um dia histórico.
Nunca mais aqueles função mexeram com punk ou metaleiro. Foi nesse dia que eu
conheci o Donald, que montou mais tarde o Gritando HC.
Módis e Moicano |
VPRR:
Você esteve no show do Toy Dolls, em 1988, não é. Conte como foi...
JF: Acho
que de 1986 até o final dos anos 80 não tinha pra ninguém e os Carecas do
Subúrbio arrepiavam todo mundo. Só que eu não sabia. Eu era moleque. Então eu
fui com a minha irmã e aquelas amigas dela no show do Toy Dolls, no Projeto SP,
Barra Funda. Coloquei uma jaqueta preta e saí me sentido o cara mais punk do
mundo. Quando chegamos lá, tinha um cara de cabeça raspada, suspensório e
coturnos. Eu pensei: “Caramba, que visual legal!” Entramos numa fila e continuei
a ver cada vez mais lókis de cabeça raspada, suspensório e coturno. Então, lá
dentro, o Cólera abriu o show e depois o Redson desceu para agitar na pista. Cara,
até aí tava tudo muito louco. Então, o Toy Dolls entrou no palco e pá, começou
o som. Meu, era igualzinho o disco!!! O Olga supersimpático, sorridente... De
repente, o Redson passou correndo por mim e entrou no backstage. Na hora eu não
entendi. Mas havia uma confusão. Alguns daqueles caras de cabeça raspada e
suspensório passavam com a mão fechada olhando feio pra todo mundo. Aí foram se
juntando no meio da pista. De repente, eram milhares. Mano, se você me
perguntar quantos carecas tinham, eu não saberia dizer, mas pelo menos uns mil
ou dois mil ou até mais. Era impressionante! Na quarta ou quinta música, não
lembro ao certo, um careca, o Paraná, subiu no palco e acertou um soco no Olga.
Os caras da banda acudiram o Olga e saíram imediatamente do palco. Nisso, ascenderam
as luzes. Os carecas pulavam com o punho fechado para o alto e gritavam oi! oi!
oi! oi! Parecia que iam pruma guerra. O tempo passava, a tensão aumentava, o
palco vazio, um impasse. Parecia que o show ia ser cancelado quando, pouco
depois, os caras do Toy Dolls voltaram pro palco. Olha meu braço, mano, até
arrepia! E aí foi aquele aêêêêêhhh!!!. O Olga sorrindo e fazendo joinha com as
duas mão. Os carecas pulando no meio pista. Então o show recomeçou e os carecas
abriram uma clareira enorme no meio da multidão. As pessoas desesperadas
começaram a se esmagar nas paredes. Eu pensei: “Vou sufocar, vou sufocar”. Muita
gente em pânico começou a escalar as torres, essas que seguram os holofotes,
que ficam ao lado do palco e nas laterais do salão. Não sei como, minha irmã
conseguiu me puxar e me levou para o hall de entrada do Projeto SP onde estavam
as amigas dela. Entre o hall e a pista havia umas quatro ou cinco portas de
ferro, grossas, pesadas, de abrir e fechar, tipo navio ou faroeste. A todo
instante essas portas eram escancaradas por multidão desesperada e no meio da
multidão apareciam uns quatro ou cinco seguranças correndo e carregando alguém
desmaiado. Eram levas e mais levas que fugiam, tropeçavam... Parecia até Titanic.
Aí as amigas da minha irmã decidiram ir embora e nós saímos. Nas ruas, gente
correndo para tudo quanto é lado. Nós fomos levados por uma correnteza humana
para algum lugar onde, de repente, passou um busão que recolheu todo mundo. No
ônibus, todo mundo ria, aliviado. Olhei pela janela e vi um carro em chamas.
Depois, o Projeto SP devolveu os ingressos e fomos de novo, no dia seguinte,
acho, só que desta vez foi tudo tranquilo. Segundo o que o Nojento me contou
muito tempo depois, os carecas foram para o show do Toy Dolls em três
caminhões, alguns carros e também de trem. O motivo da agressão ao Olga teria
sido uma aposta entre os Carecas do Subúrbio que se sentiram traídos pela Toy
Dolls, porque os integrantes tiraram fotos para uma revista de skate, que na
época era skatepunk.
Neno, Jean e Daniel |
VPRR: Você
andou com a Irmandade Punk. Fale sobre a Irmandade.
JF: Nessa
época, entre 1990 e 1993, os Carecas do Subúrbio tinham praticamente
desaparecidos. Então ficou mais tranquilo andar pela cidade. Só que não tinha
show em nenhum lugar. O máximo que rolava era um som na garagem de algum
conhecido. O que era raro. O nosso rolê era ficar perambulando pela cidade à
noite e, se tivéssemos sorte, entrar em alguma festa de penetra – normalmente,
nós éramos barrados ou chamavam a polícia. Se você quer uma definição de como
era o punk naquela época, leia o livro Movimento
punk na cidade da antropóloga Janice Caiafa. Nesse livro, ela fala de um
“novo nomadismo”, alguma coisa assim, ou um “nomadismo urbano”. Era exatamente
isso. Nós passávamos a noite vagando pela cidade, sem destino. A Irmandade Punk
era um entre muitos outros desses grupos nômades. Mas teve um começo. Certo
dia, o Vietnã, um Careca do Subúrbio, e o Canibal, um punk, resolveram unir
todas as bancas da cidade (era assim que a gente chamava os grupos, nunca
gangue) unir todas as bancas de São Paulo e lutar contra o sistema, tipo o
filme Warriors – selvagens da noite.
Então os dois se encontraram no galerias e saíram pela cidade recrutando todo
mundo que encontravam, desde metaleiros, punks e carecas. Era madrugada e eu e
meus amigos estávamos perto da estação Ana Rosa quando eu vi um bando, de uns
cem caras, se aproximar. Não tinha como fugir. Então eu pensei: agora ferrou!
Então, os caras chegaram e, para o meu alívio, o Vietnã estendeu a mão e
explicou a proposta. Não precisou nem terminar a explicação e topamos na hora.
E aí seguimos com o bando. Tinha um tal de Rato Core, que depois virou meu
amigo, que morava na Saúde e sugeriu para que nós fôssemos para aquela direção.
Passamos por uma praça onde uma viatura da polícia estava estacionada e pela
janela saía fumaça. Um cara se aproximou de mim e disse: “Os ratos estão
fumando maconha”. Quando estávamos perto da Saúde, um carro branco passou na
toda por nós. Era Devastação Punk com os Headbengers ABC, que tinham se unido. O
Naval (Calibre 12), que estava do meu lado, disse, “esses caras são pilantras”,
e saiu correndo. Nisso, o nosso grupo resolveu se dividir e uma parte,
inclusive eu, desceu para uma rua e a outra metade ficou para fazer a
diplomacia com os caras do carro branco. As ruas estavam desertas e nós estávamos
esperando uma solução pacífica para aquele impasse. De repente, um carro, uma
variant vermelha, caindo aos pedaços, passou por nós devagar e, então,
desapareceu no final da rua.
Poucos minutos depois, a mesma variant vem
chegando, os faróis apagados, desce a rua, passa por nós devagar, desce um
pouco mais, para, volta, volta de marcha-ré, volta devagar e, quando chega bem
perto, eu só vejo um cara no banco do passageiro puxar uma metralhadora e
apontar para nós. Meu, foi uma correria só. Eu ainda escutei alguém gritar: “Não
corre, não corre!”. Era o Vietnã. Alguém gritou: “É justiceiro! É justiceiro!” Olhei
de novo para trás e o Vietnã corria também. Quando chegamos correndo na rua de
cima, onde estava a outra metade, os caras do carro branco se assustaram e
puxaram os ferros, gritando: “Chega não! Chega não!” Alguém respondeu:
“Justiceiro tá vindo aí!” Os caras do carro branco gritaram: “Se vier a gente
troca!” De repente, eu vi o Toupeira, que era meu amigo desde a infância, no
meio deles. O Toupeira me viu e falou: “Jean, chega aí! Que cê tá fazendo no
meio desses caras? Fica esperto! Nós vamos pegar o Naval. O Naval é pilantra”.
Foi preciso muita diplomacia pra esfriar os ânimos bastante exaltados. Depois,
eles entraram no carro branco e saíram na captura do Naval. O Rato Core deu a
ideia de ir para a goma dele. Chegando lá, tornou-se consenso que era preciso
resgatar o Naval a tempo. O Vietnã disse: “Vai você, Rato Core”. Depois olhou
para mim, apontou e falou: “Você também, vai com ele”. Eu pensei: “Puxa, justo
eu!” Mas era porque eu conhecia o Toupeira e podia tentar colocar panos quentes
na situação. Então eu e o Rato saímos atrás do Naval. O lugar era um labirinto,
cheio de vielas e ruas escuras. A gente gritava: Naval! Naval! E nada. Mas, de
repente, a gente ouviu um assobio fino, baixinho, muito agudo. Era o Naval. Ele
pula de um muro bem alto e, rindo, vem até nossa direção. Trocamos ideia sobre
a casa do Rato, mas não deu nem tempo de respirar e, quando estávamos indo
embora, eu olho pra trás e vejo o carro branco dobrando a esquina e descer
rapidamente a rua. Desta vez não dava pra correr. Os caras pararam bem do nosso
lado e já saíram cercando o Naval, que estendeu a mão em sinal de paz. Mas os
caras não estavam lá para conversa. Não sei como, o Naval pulou pra cá, pulou
pra lá, passou o cerco e correu mais rápido que o Usain Bolt. Os caras foram
atrás mas era impossível alcançar. Então voltaram, entraram no carro e saíram
cantando pneu. Não tinha mais nada a fazer e eu e o Rato Core resolvemos
voltar. Depois de andar bastante, gritando pelo nome do Naval, ouvimos
novamente o assobio fino em algum lugar. Era o Naval de novo, que conseguiu
escapar mais uma vez. Como agora estávamos perto da casa do Rato, conseguimos
levar o Naval até lá, onde a banca esperava. Foi uma festa. Mas era preciso ter
pressa e esconder o Naval logo. (Na casa do Rato, que era muito pequena, não
podia por algum motivo que não me lembro). O Rato Core sugeriu que ele se
escondesse dentro de uma dessas casinhas de registro d’água. Ele se encolheu lá
dentro, um homem elástico numa caixa, e nós fechamos a portinha e fomos embora.
Moicano, Fábio, Jean e Billy |
E fomos, nos esgueirando pelas quebradas de um labirinto, até que chegamos numa
pracinha de uma igreja cheia de arbustos. O lugar parecia completamente vazio. Mas,
do nada, do meio dos arbustos, começaram a sair vultos, um atrás do outro. Uns
caras então se aproximaram da gente, não sei quantos, talvez uns dez ou quinze
ou mais. Um deles chegou pra gente e disse muito apreensivo: “O que que vocês
estão fazendo aqui?! Acabaram de matar um cara na favela e os justiceiros estão
na captura. Vocês têm que ir embora daqui, rápido. Mas cuidado. Os caras estão
em um uno azul e numa variant vermelha”. Nós contamos sobre nosso encontro com
a variant e, então, o cara disse: “O Ferrolho disse no Globo Repórter que nunca
matou ninguém. Como não? Mentira! Eu vi ele matando um cara bem na minha
frente!!!” Então, saímos rapidamente dali. Pouco depois, para o nosso alívio,
começou a amanhecer. O dia já estava claro quando vimos o carro branco passar
na toda, numa rua, bem longe. Demos risada Esse foi o dia inaugural da Irmandade. Quando
cheguei em casa, escrevi a música “Delinquentes ou Inocentes”.
VPRR:
Caramba, que estreia...
JF: Mas
ainda não era Irmandade Punk, porque muitos metaleiros e carecas andavam com a
gente, daí irmandade. Mas os metaleiros e carecas foram saindo, pouco a pouco,
e só restaram punks. Daí virou só Irmandade Punk. Mas o Vietnã e o Nojento
continuaram andando com a gente, e, às vezes, também o Mazinho.
Fanzine da Irmandade Punk, feito por Canibal. |
VPRR: E os
anarcopunks? você também conheceu...
JF: Os
anarcopunks foram uma mudança de paradigma no rolê e você vai entender o motivo.
O visual punk no Brasil sempre foi muito discreto. Era uma camisa de banda,
jaqueta preta, coturno e, raramente, alguém usava um moicano, meio escondido,
pelo boné. Hoje é fácil você pintar o cabelo, erguer um moicano e sair. Naquela
época não. O pessoal mexia, xingava, provocava, sempre tinha treta por causa
disso. A polícia sempre tava no pé. Não dava para sair sozinho. O que rolava é
que a gente só botava o visu quando se encontrava com a banca. Aí dobrava a
calça, para mostrar o coturno, levantava o moicano com sabonete. Mas quando a
gente conheceu os anarcos, a gente ficou desapontado com o nosso visual, porque
os caras pareciam ter saído de uma revista com fotos de punks da Inglaterra,
Holanda ou Finlândia. Eles usavam moicanos ou cabelos espetados, muito
coloridos, brincos, alfinetes na orelha, na bochecha, correntes, roupas
rasgadas, jaquetas rabiscadas, cheia de rebites, enfim, pareciam da gringa!
Em
1991, eu conheci o Carlinhos, o Valo-Velho, a Maria e muitos outros, quando
ainda eles se encontravam na Estação da Luz e numa casa em cima de um morro em
Franco da Rocha. Eles também vinham com uma proposta nova. Diziam: “Os punks
nunca souberam o que realmente é o anarquismo, agora nós vamos estudar e vamos
colocar em prática”. Eles também foram vanguarda nisso que hoje em dia se chama
“pauta identitária”. Naquela época, o preconceito era muito grande. Nos anos
80, por exemplo, muitas meninas ainda queriam casar virgem – e não eram
evangélicas (se é que alguma evangélica casa virgem hoje em dia). O lance do “ficar”, beijo casual em uma festa, show etc., era
notícia em matérias jornalísticas de TV, revista e tal, onde especialistas
discutiam se era uma prática saudável e por aí vai. Homossexualismo, então, nem
pensar. Estava restrito a guetos no centro da cidade, à noite, na boca do lixo.
Os anarcopunks foram os primeiros a ostentar relações homoafetivas em lugares
públicos. Para você ter uma ideia, se você for hoje na FFLCH-USP, vai ver
muitos casais homossexuais. Normal. Mas e se eu disser pra você que no ano de
1996, no Festival USP Core, os anarcopunks escandalizaram a FFLCH quando em
grupo e aos beijos múltiplos rolavam no chão. Os estudantes da FFLCH ficaram
boquiabertos!
VPRR:
Quem mais vocês conheceram?
JF:
Naquela época nós também conhecemos os Anjos do ABC, banca da antiga, mas que
já restavam bem poucos.
Fábio |
VPRR:
Tinha outras gangues no rolê?
JF: E
tinham aqueles que ninguém gostava, os White Powers, que tinham saído dos
carecas e se tornaram nazistas. Ou seja, era um caldeirão de treta.
VPRR: Tem
muito coelho pra tirar dessa cartola...
JF:
Então, irmão, não sou eu que vou abrir a caixa-preta do movimento punk, morô.
VPRR: Bacana
esse contexto histórico, mas vamos voltar para o Fecaloma.
JF: Até
agora eu contei sobre a primeira fase do Fecaloma. Para falar sobre a segunda
fase é necessário falar um pouco mais da Irmandade Punk. Naqueles tempos, tinha
uma guerra entre dois grupos de punks, os do Subúrbio (ZL e ABC) contra os da
Cidade ou City (ZN). Veja bem, a distinção não era geográfica, mas histórica. A
treta começou com os punks da ZN e do ABC e durou mais de uma década. Desde o
princípio, a Irmandade tomou uma posição de neutralidade. Mas com o tempo,
começou uma pressão muito grande de ambos os lados para a gente tomar uma
posição e alguns caras da Irmandade realmente queriam tomar partido. Eu e mais
alguns, entre eles, o Sérgio e o Fábio (depois baterista do Gritando HC), fomos
contra isso e fundamos uma corrente divergente dentro da Irmandade Punk, os
Vira-Latas (nome, aliás, dado pelo Sergio). Não era uma ruptura, era apenas uma
tendência dentro da Irmandade. A gente não queria comprar uma treta que não era
nossa. Então, eu argumentava: “Se for pra se unir com alguma banca, então vamos
se unir com anarcopunk”. Mas alguns caras interpretaram mal e resolveram nos
pilantrar na quebrada. Muitos deles, no entanto, tinham se tornado punk ou
entrado na Irmandade por minha causa. Então os caras não tiveram coragem da
pilantragem. Acho que, no fundo, eles ficaram envergonhados, quase pedindo
desculpas. O Scania comentou depois: “Não dá pra zoar os caras não, senão a
gente nem vai conseguir se olhar no espelho depois e eu tô fora do rolê”. A
Irmandade Punk continuou neutra, não por causa do Vira-Latas, que acabou, mas porque
era a atitude mais digna a tomar. Os caras que queriam comprar a treta saíram e
sumiram do rolê. Mas foi do Vira-Latas que surgiu a segunda formação do
Fecaloma: Eu, Sérgio e o Fábio.
VPRR: Em
que ano eles entraram no Fecaloma?
JF:
Para ser exato, 1993.
Fábio, Sérgio (fundo) e Jean |
VPRR: E
como vocês faziam pra tocar, era também improvisado?
JF: Não.
Eu já tocava melhor, mas, como eu disse, os instrumentos musicais eram
caríssimos. Então fui trabalhar e comprei uma guitarra usada, uma Jennifer
vermelha e depois uma Giannini preta; o Sérgio comprou um baixo usado, Giannini
também; e o Fábio, uma bateria caseira, que um cara fazia e vendia num jornal
de coisas usadas, chamado “Primeira Mão”. A aparelhagem era de segunda também,
emprestada e até furtada. Mas o duro foi descobrir que não era só ligar a
guitarra e o baixo nos amplificadores e sair tocando. Os instrumentos
precisavam estar afinados um com o outro e nós não sabíamos como fazer isso.
Depois, quando eu ouvi uma gravação nossa, descobri que eu não sabia cantar.
Mas, aos trancos e barrancos, a banda seguiu assim mesmo... até hoje.
Sérgio |
VPRR:
Vocês chegaram a se apresentar em algum lugar?
JF: Não.
Como eu disse, nessa época não tinha lugar pra tocar. Tocar mesmo, só muito
mais tarde, no final dos anos 90, quando teve o segundo boom do movimento punk.
VPRR:
Como foi esse “segundo boom”?
Edição de 1982 |
JF:
Até o final dos anos 80 e começo dos 90, se você perguntasse para qualquer punk
onde surgiu o movimento punk, ninguém tinha dúvida: Inglaterra. Essa versão era
confirmada pela mídia também. Veja qualquer revista, jornal, programa de
televisão de época. Leia O que é punk?
de Antonio Bivar. Neste livro, o autor atribui a origem do punk à Inglaterra e
menciona o Pistols como a primeira banda punk do mundo.
Mas com a queda do
Moro de Berlim, o colapso do socialismo real e a abertura de mercado no governo
neoliberal de Fernando Collor, a opinião pública decretou o “fim das utopias” e
a vitória da economia de mercado. Isso significou uma grande mudança do ponto
de vista ideológico. Neste contexto, a MTV, que começou a operar no Brasil, lançou
uma intensa campanha para mudar a origem do movimento punk da Inglaterra para
os EUA. A princípio, parecia uma questão trivial, banal, mas não era. Na
verdade, era uma parte irrisória de uma conjuntura avassaladora da qual os
efeitos estão culminando nos dias atuais. O que estava em jogo, e isso em todas
as frentes, era uma limpeza ideológica de todos os vestígios de utopia dos anos
passados. E o movimento punk não escapou. Veja só, o punk inglês provinha da
classe trabalhadora, surgiu nos bairros operários quando a juventude amargurava
o desemprego provocado pelo neoliberalismo da senhora Margaret Thatcher, a dama
de ferro. (Lembra-se da música: “Let’s star a war said Maggie one day with the
unemployed masses”). Na Inglaterra o punk era um movimento engajado
politicamente, de esquerda, anarquista, e representava um protesto violento da
juventude “no future” contra todas as convenções sociais hipócritas que
conviviam em perfeita harmonia com a guerra fria. Já o punk estadunidense vinha
da classe média liberal e alienada que só pensava em curtição e cheirar cola. Isso
só começou a mudar na Califórnia, nos anos 80, depois da influência do punk
inglês. Pois bem, embora produto da indústria cultural, o punk inglês negava seus
pressupostos através da destruição que lhe era inerente e serviu de modelo para
a rebeldia juvenil em todo mundo, inclusive, dos EUA. Então o punk, como um
fenômeno sociológico específico, definido por um estilo de vida, uma visão de
mundo e um modo próprio de vestir e cortar o cabelo surgiu na Inglaterra. Então,
mudar a origem do punk implicava um esvaziamento dessa essência contestadora e,
consequentemente, abria terreno para o ideal conservador das classes médias.
Nos anos 80, a origem do punk era atribuída à Inglaterra. |
VPRR: E
Bandas como NY Dolls, Ramones etc, não eram punks?
JF: Como
disse, o punk não é um gênero musical, mas um estilo de vida, um movimento
assim como foi o hippie. Sinceramente, eu adoro Ramones, mas Ramones sempre foi
mamão com açúcar, sempre teve livre-trânsito em vários grupos, inclusive, dos
metaleiros, que, majoritariamente, sempre foram uma raça reacionária pra
caramba (com exceções, claro).
VPRR: Eu
sou de uma geração diferente da sua. Para mim é irrelevante a origem do punk.
Qual a importância do punk inglês para geração dos anos 70 e 80 no Brasil?
JF:
Total. Na minha época, final dos anos 80, se uma banda punk colocasse um solo
de guitarra numa música já era considerado traidor. O pessoal dizia que estava
se vendendo, que traía o movimento e tal. Eu mesmo presenciei uma briga de soco
por causa de uma foto de um disco do Exploited em que na calça de um dos
integrantes da banda estava escrito Metallica. O que importava para a punkaiada
não era a música em si, mas o protesto, a crítica, a atitude, a letra das
músicas. Letras de protesto! Isso tinha muito a ver com o que eu falei sobre o
punk inglês. Mas para compreender melhor isso é preciso entender o contexto em
que surgiu o punk no Brasil, que é muito mais amplo e envolve toda a sociedade
brasileira. A crise do petróleo tornou o regime militar insustentável
politicamente. O caso do jornalista Vladimir Herzog desencadeou uma comoção
muito grande abalando fortemente a opinião pública e minando o cada vez mais
frágil apoio à ditadura. O processo de abertura política era inevitável,
irreversível e tinha dado início a tal da dita “transição lenta, gradual e
segura” para a democracia liberal e civil. Com a lei de anistia, os opositores
do regime militar voltam do exílio e se organizam politicamente. Na região do
ABC, em São Paulo, com o novo sindicalismo, os metalúrgicos se mobilizam num
movimento significativo que culminou num processo grevista. Nascia o PT, a CUT,
a burocracia sindical e os partidos comunistas saiam da clandestinidade. A
censura sufocava a arte, a liberdade de expressão, mas bandas como o Ira! desafiavam
e cantavam: “Eu tentei fugir, não queria me alistar, eu quero lutar, mas não
com essa farda”. A panela de pressão do regime militar estava por explodir. É
nesse cenário de intensa efervescência social e cultural que o punk chega ao
Brasil e encontra terreno fértil para produzir uma das cenas mais originais e
criativas do mundo. Bandas como Ratos de Porão, Cólera, Garotos Podres e Olho
Seco, entre outras, ultrapassaram fronteiras e foram reverenciadas até mesmo no
berço do punk, a Europa. Mas o punk no Brasil não foi algo homogêneo. Aqui, o
punk surgiu simultaneamente em dois polos, Brasília e São Paulo, e com extração
social distinta. O punk de Brasília era de classe alta, filhos de diplomatas, políticos
e altos funcionários que tomavam contato com o punk através de viagens ao
exterior de seus pais ou deles próprios. Todas as bandas de Brasília, no
entanto, acabaram virando pop. O punk de São Paulo, ao contrário, vinha das
classes baixas, da classe trabalhadora da periferia, e descobriu o punk através
de uma revista. Conhece aquela música do Gilberto Gil: “Sou o punk da
periferia, sou o punk da Freguesia do Ó, Ó! Ó! Ó! Aqui pra você”. Esse punk, de
origem proletária, tinha laços de identidade muito grande com seu congênere
inglês, que ia muito além de uma moda musical. O punk brasileiro, surgindo em
um contexto social riquíssimo culturalmente, pôde germinar em toda sua extensão
a semente que o punk inglês havia lançado, dado que ambos compartilhavam da uma
mesma situação social de classe explorada.
VPRR: Só
não entendi aonde você quer chegar com toda essa retrospectiva histórica? E o boom
do punk?
JF: Depois
da lavagem cerebral da MTV, o punk foi cada vez mais migrando para a classe
média e com isso perdendo a originalidade. As bandas de classe média, ou até
mesmo de classe alta, que surgiram, eram todas cópias de bandas gringas e cantavam
uma realidade que não tinha nada a ver com a brasileira. A partir daí, houve um
fenômeno que nunca ocorreu no punk antes: banda punk brasileira cantando em
inglês. Eu te desafio a mostrar pelo menos uma única banda punk dos anos 80 com
letras em inglês. Uma única! Mas, você não vai achar, sabe por quê? Porque não
tem. Então, a atitude punk foi reduzida a mera performance, espetáculo vazio,
visual oco, e buscou-se desta forma uma inserção através do mercado. Agora você
entendeu a mudança? Parafraseando um famoso rabino: nos anos 70 e 80 o punk
surgiu como tragédia; nos anos 90 e 2000, como farsa.
VPRR:
Você não gosta dos anos 90?
JF: Os
anos 90 anteciparam e prepararam o atual cenário ultraconservador e
obscurantista no qual estamos vivendo hoje. Isso não foi à toa. A juventude
emburreceu.
VPRR:
Mas tá, você mesmo disse que Fecaloma surgiu em 89, primeira formação, e 93,
segunda. O Fecaloma só lançou o CD Transgredir
por transgredir nos anos de 1998. A impressão que eu tenho é que vocês são
mais dos anos 90 do que 80. Ou eu tô errado?
JF: Você
está errado. Quer dizer, você está certo. Quer dizer, você está certo e errado
ao mesmo tempo. Na verdade, a minha fala tem muito de provocação. Eu escuto e
gosto de muitas bandas surgidas nos anos 90, como Paranoia Social, Execradores,
Invasores de Cérebros, Excluídos, Colisão Social, Los Mortadelas, Phobia,
Deserdados, Juventude Maldita, Flicts, Voz Ativa, Gritando HC, Calibre 12 e
tantas outras que eu não consigo me lembrar agora. Além disso, têm as bandas
que surgiram nos anos 2000, como Ratas Rabiosas, Geração Suburbana, Detestáveis... Eu adoro
de todas essas bandas! Desculpa se estou esquecendo alguma, é que minha memória
já não é tão boa, assim. Mas com certeza existem muitas bandas novas excelentes
por aí. Também não dá pra ficar louvando só os anos 80. Por exemplo, a sociedade
era muito preconceituosa, muito machista. Por isso, as pautas identitárias, que
surgiram a partir dos 90, são uma grande conquista social, que hoje estão
ameaçadas novamente.É que são duas coisas diferentes, até nos 80 havia um
projeto coletivo; nos 90 em diante, as saídas são todas individuais. É preciso
chegar a um meio termo.
Donald, Pulgão, Jadson, Jean, Carlos, Sérgio; sentados: Naval e Greg |
VPRR: Não
sei se entendi muito bem, mas fale sobre o CD Transgredir por transgredir.
JF: O
Fecaloma sempre manteve alguma coisa do experimentalismo dos anos 80, da
liberdade criativa e da irreverência. A gente desafinava, errava e não tava nem
aí. O Fecaloma é uma banda que pegou a transição. A música “Transgredir por
transgredir”, por exemplo, foi escrita em 1991 e diz muito sobre a situação em
que nós vivíamos. Eu assisti o colapso da URSS. Foi algo desapontador, porque
representava o fim de uma alternativa à hegemonia do discurso único. Além
disso, o Brasil não saiu da recessão da década perdida e as políticas
neoliberais apenas pioraram a situação. Eu, meu irmão e nossos amigos ficávamos
o dia inteiro largados, sentados na calçada, sem ter um emprego descente, sem
ter o que fazer. Então eu escrevi “Transgredir por transgredir”. Eu queria
passar a seguinte mensagem: “Não importa que o mundo desabe, que todas as teorias
sejam falsas, que tudo não passa de hipocrisia. Não importa, levante-se daí e
vá mudar o mundo”. Eu tinha em mente um projeto, fazer do nada o princípio de
transformação. Transgredir por transgredir é uma tautologia, uma redundância,
forma pura, vazia de conteúdo, de significado. Seu sentido provém de sua
ausência de sentido. Seu efeito é a própria causa. Se alguém diz que uma
determinada organização social chegou ao seu fim mais racional, então a transgressão
sem motivo vai colocar a prova isso e produzir significação, um sentido.
Desafiar a ordem e experimentar as consequências disso. Então aquela ordem
racional vai ruir e mostrar sua verdadeira face brutal, irracional. Acho que
tem alguma coisa do dadaísmo. Eu pensava: se a luta de classes não transforma a
sociedade, então alguma coisa transforma. Eu pensei numa negação de todos os
valores de nossa civilização. Pretensioso, né! Na época, eu não conhecia, mas
tinha alguma coisa do conceito de “transmutação de todos os valores”, do
filósofo alemão Nietzsche. Isso veio indiretamente. Vou contar uma coisa que
pouca gente sabe. Uma das maiores influências do Fecaloma é o maldito, digo, o
vigarista Jorge. Jorge Mautner foi um dos primeiros a ler a obra de Nietzsche
no Brasil, porque sabia alemão. Na Alemanha, até foi chamado de Nietzsche do
samba. Nos anos 60, Mautner fundou o Partido do Kaos e reivindicou a “nova
coisa”. Ele foi amigo de meu pai. De certo modo, as músicas deles, que eu
conhecia desde a infância, devem ter influenciado bastante o Fecaloma.
Jean Fecaloma e o vigarista Mautner |
VPRR:
Jorge Mautner! Essa é a influência mais inusitada para uma banda punk.
VPRR:
Meu pai dizia que o Mautner tinha sido o primeiro punk do mundo.
VPRR: E “Primeiro
da classe”, é uma música bem polêmica...
JF: A
função da escola é domesticar, adestrar, disciplinar. A escola forma para a
linha de montagem, para a divisão do trabalho. A escola segrega. Como definiu
um amigo meu, o Zá, ex-anarcopunk, a escola é um sistema de constrangimentos. O
que eu passei na escola, as humilhações, não dá nem pra contar... Na escola, o professor
personifica a autoridade, do patrão, dos governantes. Ele está lá para oprimir
e reprimir, inculcar na criança o princípio de realidade, do trabalho, sobre o
princípio do prazer. Mas, a crítica radical à escola não tem nada a ver com
este projeto que querem nos impor. Imagine como será a sala de aula quando
instaurarem um ambiente de denúncia na escola. O aluno transformado em um
dedo-duro em potencial. Nada mais deplorável! Eu assisti um vídeo de uma
professora que ensinava seus alunos a colocar uma camisinha com a boca. Ela
própria demonstrou isso em sala de aula com uma prótese presa a um aluno. Eu
achei isso fantástico. A professora conseguiu transpor a linha hierárquica que
separa aluno e professor e ensinar de modo marcante algo muito importante sobre
a prevenção de DST e gravidez precoce. Mas qual foi a reação das pessoas,
inclusive, de professores? Xingaram, chamaram ela de vagabunda. Ou seja, em
nome de um falso moralismo tacanho, tentaram desqualificar uma aula formidável que
visava estimular o uso de preservativos entre adolescentes. São os mesmos
hipócritas de sempre. Então, eu estou do lado dessa professora e quando eu
assisto uma aula como a dela eu penso que há ainda na escola espaço para educar
para uma sociedade solidária e livre de preconceitos. Quando eu escrevi “Primeiro
da classe”, eu era um estudante de escola pública. Talvez, hoje, não teria
escrito ou mudaria muita coisa na letra. Mas o alvo não eram os indivíduos, mas
a estrutura. Era uma metáfora, fazer da vida um recreio, que é o fundamento de
toda utopia.
VPRR: E
CD Rebelião Adolescente?
Jean Fecaloma, 2002 |
JF: Eu
tinha um projeto, que era gravar todas as músicas do Fecaloma, que foram
escritas no final dos anos 80 e início dos 90. Então, nós fomos para um estúdio
e gravamos.
VPRR: Eu
sempre gostei da música Luisa mas algumas pessoas dizem que a letra é contra o
aborto. Foi você que fez a letra? Você é contra o aborto?
JF: Fui
eu que fiz. Honestamente, a minha opinião pouco importa. Mas, se você quer
saber, eu digo. Eu sou a favor do aborto. Ponto final. Mas quando eu digo que
minha opinião pouco importa é porque estou colocando a questão em um outro
nível, não o da subjetividade mas o da objetividade. Eu conheci muitas garotas
que fizeram aborto, algumas até cinco. Não tenho nenhum juízo de valor quanto a
isso. Bom, mas eu te pergunto: essas garotas eram pobres? Essas garotas eram
negras? A resposta é um NÃO bem grande! Elas fizeram aborto em clínicas de
fachada, no bairro do Jardins, super seguro, com equipamentos de alta
tecnologia, tudo muito higienizado. Sim, porque tem muita burguesia aí... Cê tá
entendendo esse treco? Mas e as meninas pobres, negras, elas podem fazer aborto
nessas clínicas, que são caríssimas? A resposta é outra vez um NÃO bem grandão.
É muito fácil você ser de uma classe privilegiada e usar do argumento liberal
de que o corpo é seu e que faz o que bem entende com ele e tal. Tipo, o corpo é
minha propriedade. Quem foi que disse isso mesmo? John Locke, não é? O corpo
como propriedade e, por extensão, o trabalho, o produto do trabalho... Sim, foi
um desses liberais ingleses. Mas, e quem não tem propriedade, nem o seu próprio
corpo, que é reduzido a uma ferramenta de trabalho, espoliado, expropriado? O
proletariado, que por definição é aquele que é dono unicamente de sua prole? De
fato, as meninas pobres, negras, da periferia, não podem se dar ao luxo de
fazer aborto sem riscos, sem infecções, nas clínicas de fachada dos bairros
nobres. Afinal, são elas que geram a massa de trabalhadores, em abundância, que
farão parte no exército de reserva de trabalho, derrubando os salários lá pra
baixo. Afinal, alguém tem que gerar o peão de obra, a empregada doméstica...
Então, eu vou cair no lugar comum e dizer que a questão do aborto não é uma
questão pessoal, de convicção, e, sim, de saúde pública. Por isso, deve ser
urgentemente legalizado. Só que isto está muito longe de acontecer. O que rola
é a hipocrisia de sempre: mulheres ricas, independentes e poderosas, acima da
lei; enquanto mulheres pobres, dependentes e exploradas, sob o tacão da lei. É
sempre assim. Quando eu escrevi a letra “Luisa”, não foi para as garotas de
classe média alta ou alta. Eu escrevi para as garotas pobres. Estas, quando
querem fazer um aborto, tem que procurar clínicas clandestinas, que são
verdadeiros açougues, onde alguém sem qualquer qualificação espeta uma agulha
de tricô na mulher e fica perfurando o útero. Conheci uma mulher que para
abortar encheu a cara com aqueles venenos verdes, espirais, que vendem em
caixinha, para espantar pernilongo. Ela quase morreu mas a criança acabou
nascendo. A criança era uma coitada, totalmente rejeitada. Olha, faz tempo que a
gente não toca essa música, mas eu me lembro que a letra diz mais ou menos
assim: “Luísa está grávida e ainda é uma adolescente, foi abandonada, está
sozinha, sozinha no mundo, mas com um começo de vida” – aqui há uma
ambiguidade, porque esse começo pode ser o do bebê ou da própria Luisa, que é
uma adolescente. Depois a letra diz assim: “(...) morando num cortiço,
trampando noite e dia, a coragem de enfrentar as decepções da vida (...) foi
difícil decidir entre arriscar a sua vida num aborteiro clandestino ou perder a
juventude (...) mas talvez você terá alguém pra mudar o mundo”. Acho que é mais
ou menos isso. Ou seja, a mina, uma adolescente, ficou grávida, o babaca do
namorado não assumiu a criança e fugiu, ela é pobre, tem que trabalhar, mora
num cortiço e, se quiser abortar, terá que procurar um aborteiro clandestino. Escrevi
essa letra baseado numa pessoa real.
Luisa
Luisa
está grávida
E
ainda é uma adolescente
Foi
abandonada, está sozinha
Sozinha
no mundo
Mas
com um começo de vida
Morando
num cortiço
Trampando
noite e dia
A
coragem de enfrentar
As
decepções da vida
Ausência
dos amigos
O
quarto sempre escuro
Ninguém
apareceu
Nas
noites em que você chorava
Garotas
estão grávidas
E
ainda são adolescentes
Foram
abandonadas, estão sozinhas
Sozinhas
no mundo
Mas
com um começo de vida
Foi
difícil decidir
Entre
arriscar a sua vida
Num
aborteiro clandestino
Ou
perder a juventude
Injustiças
e preconceitos
Desta
sociedade
Mas
você terá alguém
Pra mudar o mundo?
O final é uma interrogação. Mas a letra passa uma mensagem positiva,
apesar de tudo. Que ela pode ensinar seu filho ou filha a mudar o mundo, caso
optou por ter a criança. Me lembrei de uma história. Conheço outra mulher que
criou quatro filhos sozinha. Foi atrás da pensão mas o ex-marido sumiu. Quando
seu filho engravidou uma moça, não assumindo, e a tal moça pediu pensão, sabe o
que ela disse? Que a moça era uma aproveitadora. Ou seja, ela foi vítima e não
aprendeu nada com a vida! Por isso, só mudando o mundo poderemos algum dia
sonhar em direitos iguais. Quando todas as mulheres puderem fazer um aborto
seguro, aí sim, vamos transformar a questão do aborto numa questão pessoal,
numa escolha subjetiva, ou numa discussão filosófica, teológica ou seja lá o
que for.
Sérgio e Daniel |
VPRR: E
o CD Ocupar e resistir?
JF: É
engraçado, depois que os estudantes ocuparam as escolas em 2016, o lema “ocupar
e resistir” virou moda. Muita gente pensa que o Fecaloma lançou o CD depois das
ocupações e se surpreendem quando digo que saiu em 2005. Eu dou risada, porque
o lema “Ocupar, resistir, produzir” vem lá do início dos anos 80, com o MST. A
ideia do CD veio porque eu desenvolvia um trabalho de pesquisa numa ocupação de sem-teto.
Bom, a intenção foi a mesma dos outros CDs, eu queria registrar todas
as músicas do Fecaloma. Porém, para esse CD, eu acabei compondo algumas músicas
novas, como a que dá o nome para o CD, “Ocupar e resistir”. Só que foi difícil
porque eu já não tinha mais inspiração para compor. Pegava o violão e não saía
nada. Até que a falta de inspiração me inspirou a escrever “Acabou a
inspiração”.
Continuar lendo AQUI (link)
Moicano, Fábio, Gordo, Modis, Jean e Sérgio |
VPRR:
Algum tempo atrás, eu conversava com uns caras de uma banda e eles culpavam os
preços baixos dos CDs do Fecaloma pelo CD deles terem encalhado. O que você
acha disso?
JF: Bom,
então eles estavam nos acusando de praticar dumping, que é um jargão dos monopólios
capitalistas para denunciar empresas que abaixam os preços e prejudicam os
interesses monopolistas de mercado. Puxa, é chato dizer, mas o punk reproduz
muitas vezes a lógica do sistema. Uma vez, um amigo me disse: “Jean, você tem
que aumentar o preço do CD do Fecaloma, senão o pessoal não vai valorizar, vai
achar que é ruim”. Essa é lógica da mercadoria, não da arte. Quando eu comecei
a curtir e ouvia dizer que bandas como Black Flag colocavam um preço na capa
bem barato com a seguinte inscrição, “não pague mais, senão roube”, eu admirava
essas bandas. Quando nós participamos da coletânea SP Punk Vol. 2, nós
descobrimos que a produção de um CD era baratíssima; na época, custava um a
dois reais a unidade, com caixinha de acrílico, capinha com foto, encarte e
tudo. A gravação que saía caro. Mas não muito também e, se você procurasse bem,
alguns estúdios eram baratos, como os que nós gravamos. O preço de custo do Transgredir por transgredir foi cerca de
4 reais a unidade, Rebelião adolescente,
R$ 2, e o Ocupar e resistir, uns 5
reais, talvez. A gente vendia a preço de custo mas as lojas não queriam vender,
com exceção da loja do Fábio (Olho Seco) e do Xinês (Excomungados). Reclamavam
que não tinham retorno. Por isso que no CD Ocupar
e resistir deixamos 2,5 reais de lucro para as lojas, o preço de um botton.
Mesmo assim nenhuma loja queria. O erro foi baixar demais e não se dar conta
que a distribuição ficava inviabilizada. Mesmo assim, acho que 10 reais seria
um preço justo: 5 pra banda; 5 pro lojista. Então, por que vender um CD a preço
de mercado, que na época era de 20 reais? Mas essa banda não devia nos culpar
por isso. O CD deles não encalhou por causa dos nossos, mas porque o produto CD
se tornou uma mercadoria obsoleta com a chegada de novas tecnologias, como a
intenet, o MP3. Aliás, o último CD do Fecaloma, Ocupar e resistir, também encalhou. E eu simplesmente doei tudo.
Tudo, tudo, tudo. Tudo de graça. No cômputo geral, a gente só teve prejuízo com
a banda, porque o que vendeu demorou muito para sair e acabou desvalorizado, e
os que encalharam foram dados. Com o Fecaloma, a gente nunca ganhou nada, em
termos monetários. Para produzir os CDs, foram todas as minhas economias, que
eu juntei, que eu trabalhei. Mas o ganho real foi poder divulgar as músicas e
saber que elas tiveram algum significado para a vida de algumas pessoas.
Neno e Moicano |
VPRR:
Você é bastante crítico com a “mercantilização” do punk. Recentemente publicou
uma postagem na fanpage do Fecaloma no Facebook intitulada “Show punk é de
grátis”.
JF:
Sim. Mas não vamos misturar o joio com o trigo. Não vamos generalizar. Tem muita
casa de show legal por aí que não pode deixar de cobrar ingressos, vender
cerveja, por causa do aluguel, da conta de luz, de água etc. Mas, por outro
lado, têm uns lugares que exploram descaradamente as bandas e o público se
utilizando das referências da contracultura como rótulo de mercadoria. Não têm
qualquer respeito com as bandas, principalmente com as pequenas, e se
aproveitam da boa vontade da galera para ganhar dinheiro, não apenas com a
bilheteria, mas com um comércio bastante lucrativo de cerveja, refrigerante e
essas coisas. No ano passado, fomos tocar num desses lugares, só que um dos
responsáveis do lugar, do alto de sua prepotência, me ofendeu porque eu
questionei uma prática da casa que considerei antiética. Ou seja, a gente foi
tocar lá de graça, em plena tarde de domingo, sem jantar, gastando dinheiro com
condução, sem ganhar um centavo em troca, e ainda um dos responsáveis do lugar
se sentiu no direito de me xingar, mesmo estando errado. Nunca aconteceu isso
antes. Sabe, tipo minions, que ficam se xingando na internet, porque não sabem
dialogar e se ofendem por não ter razão. Atitude tipicamente fascistóide. O
Fecaloma nunca cobrou cachê pra tocar e, toda vez que a gente ganhou cachê, esse
dinheiro não ficou com a gente. Ou o dinheiro era para pagar o amplificador que
quebrou, ou para pagar a gasolina da banda que veio do interior... Esse tipo de
coisas, sabe. Certa vez, e o Xinês dos Excomungados é testemunha, nós recebemos
uma parte da bilheteria antecipadamente, mas uma galera que foi ver a gente não
tinha dinheiro para entrar. Adivinha o que fizemos? Pegamos o dinheiro e
distribuímos para a galera entrar. É por isso que o Xinês brinca que o Fecaloma
é a banda mais punk do mundo. (Risos).
Excomungados |
VPRR: E o
movimento anarquista?
JF: Que
movimento anarquista? Feirinhas alternativas, artesanato, livrarias,
bibliotecas libertárias, playboys e professores universitários? Xará, uma vez
eu fui num lugar chamado ICAU, que ficava na Vila Madalena. Quando eu entrei
nesse lugar, tinham uns caras barbudos – aliás, todo barbudo é reacionário –
uns barbudos arrogantes, fazendo tipo de intelectual, vestidos com terno de
veludo, boina, fumando cachimbo, sentados com uma perna cruzada em cima da
outra, bebendo uísque e ouvindo uma banda de jazz. Sabe o que eu fiz? Não
fiquei nem um minuto naquele lugar. Para esse pessoal, anarquismo é um estado
de espírito, uma questão abstrata comportamental. Isso não é anarquismo. Como
eu disse, trabalhei numa pesquisa por sete anos em um movimento sem-teto. Em
todo esse tempo, nunca vi um único anarquista lá. Sabe por quê? Porque os
anarquistas estão nas feirinhas alternativas, nas bibliotecas libertárias, nas
universidades. Não estão nos movimentos sociais, nas fileiras da classe
trabalhadora. O anarquismo se tornou um nicho de mercado. Vou repetir, porque
essa crítica também vale para o punk: o anarquismo se tornou um nicho de mercado.
Quem se lembra do texto “Palavras de Desordem”, no encarte do CD Transgredir por transgredir? Está
escrito: “Vende-se de tudo: etnias, posturas, crenças, ideologias e rebeldia”. Sim,
está tudo a venda, cultura, comportamento, símbolos, contracultura, transgressão.
Vende-se tudo isso como se vende uma lata de molho de tomate num supermercado
de esquina. Banalizaram tudo. Gostaria que estas livrarias e bibliotecas
libertárias distribuíssem livros de graça para as comunidades carentes,
acampamentos, escolas públicas. Que estas feirinhas abolissem o valor de troca
da mercadoria e estabelecessem uma relação baseada na dádiva. Xará, eu tô
cansado de hipocrisia. Se quiser entrar para uma igreja, fique à vontade, têm
dezenas por aí, de todos os tipos. Eu tô fora. Infelizmente, o anarquismo
acabou na década de 1930 e 68 foi uma grande farsa, a redenção dos liberais dos
nossos dias. Isso não significa dizer que o anarquismo não pode voltar. Talvez,
nestes tempos de falta de esperança, somente o anarquismo pode oferecer alguma
alternativa de mudança real. Mas que fique claro: que o anarquismo renasça do
povo.
JF: Acho
que, ao nível da superfície, chegamos a um ponto em que duas forças antagônicas
estão em confronto. Uma é pré-moderna e a outra, pós-moderna. Talvez sejam a
face diferente da mesma moeda. Porém, a história gira em círculos espirais e é
acumulativa, portanto, não é possível deter as forças pós-modernas, que
representam o futuro, muito embora o passado sempre permaneça presente. Em um
nível mais profundo, no entanto, os fundamentos da economia estão numa crise
que levará a sociedade a uma grande perda de direitos, penalizando ainda mais
os mais pobres. Imagina, querem que as pessoas trabalhem mais e por mais tempo
e, ao mesmo tempo, o desemprego é enorme, não há trabalho!
Daniel, Jean e Neno |
VPRR: Você
disse que queria registrar todas as músicas. Ficou faltando alguma?
JF:
Ficou. Mas eu cheguei a gravar só com o violão e postei no meu canal do YouTubeJoão Monti. Uma ou outra eu esqueci, como “Abrigo nuclear”, que contava a
história de um cara que se refugiou num abrigo nuclear por causa de uma guerra
nuclear e ficou separado da namorada. Tinha uma outra também que por mais que
me esforce não consigo me lembrar. O refrão era assim: “A luta pela anarquia/
faz de um manifesto poesia,/ manifesto poesia”. Em têm estas que foram datilografadasna máquina de escrever que encontrei dentro de um envelope no arco do baú.
VPRR:
Além do Jorge Mautner, quais são, em termos de discografia, suas grandes
referências do punk? Me fale dez disco mais importantes, cinco de fora e cinco
daqui.
JF:
Então, mano, são todas dos anos 80. Tipo, aquilo que me faz sentir naquele
tempo, sentir aquela atmosfera, que me motivou a formar o Fecaloma. Vou dizer
os discos que considero mais importantes. Brasileiros: “Cabeça dinossauro”,
Titãs; “Crucificados pelo sistema”, Ratos de Porão; “Tente mudar o amanhã”,
Cólera; “Mais podres do que nunca”, Garotos Podres; e “Pânico em SP”,
Inocentes. Gringos: “Disco branco”, Dead Kennedys; “Rocket to Rssuia”, Ramones;
“Never mind Bollocks”, Pistols; “London Calling”, The Clash; “Let’s star a
war said Maggie one day”, Exploited. Fora esses, o Replicantes também marcou
bastante, os discos dos Toy Dolls e as coletâneas “Sub” e “Vikings are coming”, idem. Enfim, uma dezenas
de músicas que eu ouvia em fita cassete e nunca soube o nome das bandas. Mas eu
não sou nenhuma enciclopédia em música punk.
Moicano, Neno, Jean e Fábio
VPRR: Você
citou os clássicos.
JF: Um
pouco óbvio.
VPRR: Eu
trocaria o “Tente mudar o amanhã” pelo “Pela paz em todo mundo”.
JF:
Puxa, meu irmão gosta. Eu prefiro o primeiro. Mas eu também não sou nenhuma
enciclopédia em música punk.
Gabriel Sossai |
VPRR: Você
poderia falar brevemente sobre as formações do Fecaloma, que foram muitas, e o
processo de composição das letras e músicas.
JF:
Brevemente? Vou citar o nome de todo mundo que já tocou na banda, que eu me
lembro: Eu (Jean), Diego Moicano, Neno, Sérgio, Fabio, Billy, Daniel (Fofão),
Madureira, Binha, Nóia, Sheilla, Maycoln, Chu, Gabriel Sossai, Danilo e
Henrique. Puxa, muita gente, né, espero que eu não esteja esquecendo alguém.
Outro detalhe: o Moicano e o Neno saíram e voltaram várias vezes em outras
formações.
Maycoln |
VPRR:
Como é o processo de composição?
JF: Eu
acabei compondo todas as músicas, com exceção da letra “É”, que é do meu irmão,
o Moicano. Meu irmão compunha letras muito boas, só que eram longas demais e
não encaixavam nas músicas que eu fazia. Ele acabou até virando o MC Porco e
formou um grupo de rap com um tal DJ Fran, amigo nosso. Letra de música punk é
que nem haikai, tem que ser sintética, curta e grossa, e ao mesmo tempo dizer
tudo. Mas o fato de eu compor as músicas não significa que eu imponho como elas
vão ser. Todo mundo que já tocou no Fecaloma tem total liberdade para criar em
cima. Não é o que eu gostaria. Se fosse por mim, o som seria o mais tosco
possível: o baixo seguiria a guitarra, sem firulas, e a bateria seria tipo
Ramones, sem passagens. Foi assim que eu idealizei o Fecaloma naquela noite em
que eu discotequei Ramones a festa inteira. Mas, eu não posso impor isso. No Transgredir por transgredir, por
exemplo, o Daniel, que vinha do grunge, fez uma batida diferente do que eu
queria. E eu gostei! E, no Ocupar e
resistir, o Maycoln foi responsável por gravar duas guitarras, que pra mim
era um sacrilégio, mas, cara, vou admitir, ficou bem legal. Então, todo mundo
que tocou no Fecaloma deu a sua contribuição. Por isso que sai diferente. Minha
irmã diz que há uma trilogia do Fecaloma: infância (Transgredir por transgredir), adolescência (Rebelião adolescente) e maturidade (Ocupar e resistir).
GZ - guitarra |
VPRR:
Valeu a pena formar o Fecaloma?
JF:
Hoje eu olho pra trás e vejo muita ingenuidade. Achava que ia mudar o mundo com
a banda. Se na época eu pensasse como hoje penso, provavelmente, não teria
feito a banda. Mas não me arrependo. Durante muito tempo o Fecaloma fazia um
sentido enorme para mim. Depois nós crescemos e temos que pagar as contas. Mas
devemos sempre correr atrás dos nossos sonhos, mesmo que eles não deem em nada,
o que é o mais provável, mas o mais importante não são tanto os sonhos e, sim, o
que os sonhos fazem viver.
VPRR:
Para terminar, o que você gostaria de dizer aos fãs do Fecaloma?
JF: Primeiro:
não sejam fãs. Segundo: eu sou muito grato, mas muito grato mesmo à galera que
curte o Fecaloma. Então, o que eu gostaria de dizer é: muito obrigado!
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