A história da literatura portuguesa no século XVI não pode ser contada sem o nome de Francisco Sá de Miranda (1481-1558). Este poeta e dramaturgo não foi apenas um escritor; foi um verdadeiro agente de transformação cultural, responsável por introduzir em Portugal as inovações estéticas do Renascimento italiano. Sua Obra Poética é um marco divisor, estabelecendo a "medida nova" e um novo ideal de poesia que influenciaria gerações, incluindo o próprio Luís Vaz de Camões.
Neste artigo, exploramos a revolução métrica e temática de Sá de Miranda, destacando como sua visão de mundo, forjada em terras italianas e refinada no bucolismo português, moldou o Classicismo lusitano.
🌍 Introdução: A Ponte entre a Tradição e a Inovação
Nascido em Coimbra, Sá de Miranda era um erudito que, após estudos de Direito, frequentou a corte de D. João III. No entanto, o ponto de inflexão decisivo em sua carreira e na história da poesia portuguesa foi sua longa viagem à Itália (c. 1521-1527).
Em contato com a efervescência intelectual do Cinquecento e influenciado por autores como Petrarca, Sannazaro e Garcilaso de la Vega, Sá de Miranda absorveu o dolce stil nuovo (doce estilo novo). Ao regressar a Portugal, trouxe consigo não apenas ideias humanistas, mas as formas poéticas que revolucionariam a lírica nacional: o soneto, a canção, a epístola, a elegia, a ode e, principalmente, o verso decassílabo.
A Obra Poética de Sá de Miranda é, portanto, o laboratório onde a "medida velha" (redondilhas medievais) se confronta e, em grande parte, cede lugar à "medida nova" renascentista, inaugurando o Período Clássico em Portugal.
📜 O Legado Métrico: A Revolução do Endecassílabo
O contributo mais palpável de Sá de Miranda reside na sua mestria e na sua persistência em aclimatar as formas poéticas italianas ao português. Antes dele, a poesia lírica em Portugal era dominada pelas redondilhas (versos de cinco ou sete sílabas) e pelos moldes do Cancioneiro Geral.
H3: O Endecassílabo e a Música da Língua
O verso de dez sílabas, também conhecido como endecassílabo, tornou-se a espinha dorsal da "medida nova". Esta inovação conferiu à lírica portuguesa um novo ritmo, mais solene, musical e complexo, ideal para expressar a profundidade filosófica e sentimental do Renascimento.
Verso Heroico: Décima sílaba tónica (mais utilizado na épica).
Verso Sáfico: Quarta, oitava e décima sílabas tónicas (mais utilizado na lírica).
H3: Gêneros Poéticos Introduzidos
Sá de Miranda não se limitou ao decassílabo; ele introduziu os formatos italianos em sua totalidade, elevando a complexidade formal da poesia:
O Soneto: Com 14 versos divididos em dois quartetos e dois tercetos (ABBA ABBA CDC DCD ou variações), o soneto petrarquesco se tornou a forma canónica para a exploração da temática amorosa e filosófica.
A Canção: Composta por estrofes complexas (estiches) e remates (voltas), permitindo uma exploração lírica mais extensa.
A Écloga (Poesia Bucólica): Poemas pastoris em que pastores dialogam, ambientados em uma natureza idealizada, mas com Sá de Miranda muitas vezes carregados de um tom moralizante.
A Epístola: Poemas em forma de carta, utilizados para tecer críticas sociais, morais e conselhos filosóficos, estabelecendo um tom mais direto e doutrinador.
🏞️ Temas e Estilo: Entre a Tradição Clássica e a Crítica Social
Embora a inovação métrica seja crucial, a Obra Poética de Sá de Miranda também se destaca pelo conteúdo e pela atitude renascentista do autor.
H2: O Bucolismo Introspectivo e Moralista
Sá de Miranda, após o regresso de Itália, abandonou a corte e retirou-se para a sua quinta em Amares, no Minho (Quinta da Tapada). Este afastamento físico é crucial para a sua produção poética.
Idealização do Campo (Locus Amoenus): Suas éclogas, em especial, exploram o tema bucólico (a vida no campo), que se torna um refúgio moral e um espaço de introspecção (beatus ille).
Crítica à Vida Urbana: O contraste entre a vida no campo e a da cidade (Corte) é uma constante. A cidade é vista como o lugar da corrupção, da ambição desmedida, da falsidade e da avareza – o oposto da honestidade e simplicidade da vida rural.
Temas Cívicos e Filosóficos: Nas suas Epístolas (como a famosa "A António Pereira, senhor do Basto"), o poeta abandona o tom lírico para se dedicar à reflexão moral, criticando a expansão marítima excessiva ("ousada avareza") e a perda de valores éticos pela busca de riquezas e glória vãs.
H2: O Amor Petrarquista e a Angústia do Eu
Na sua lírica de "medida nova", Sá de Miranda adota o modelo amoroso do Petrarquismo, mas frequentemente o adapta com um tom mais pessoal e severo.
O Amor Idealizado: A figura feminina é idealizada e muitas vezes inacessível, gerando no sujeito poético uma tensão constante entre o desejo e a razão.
A Luta Interior: Em poemas como a célebre cantiga de "Comigo me desavim" (escrita em "medida velha", mas com um novo espírito), o poeta expressa a perplexidade e o conflito interno do eu lírico, antecipando a complexidade psicológica do Classicismo:
"Comigo me desavim, / Sou meu imigo e me anjo." (Versão poética de: "Sou meu inimigo e me zango") A cisão do eu lírico em confronto com ele próprio é profundamente moderna.
❓ Perguntas Comuns sobre Sá de Miranda
Q: Qual é a importância histórica de Sá de Miranda?
R: Sá de Miranda é considerado o introdutor do Classicismo (ou Renascimento) em Portugal, devido à sua importação e adaptação bem-sucedida das formas poéticas italianas, como o soneto e o decassílabo, rompendo com a tradição medieval das redondilhas.
Q: O que é a "medida nova"?
R: A "medida nova" é o conjunto de inovações métricas introduzidas por Sá de Miranda e seus seguidores, sendo o verso decassílabo a sua principal característica. Contrasta com a "medida velha" (redondilhas de 5 ou 7 sílabas) da poesia medieval.
Q: Qual é a diferença entre a poesia lírica e a poesia doutrinária de Sá de Miranda?
R: A poesia lírica (sonetos, canções) foca-se no amor e na introspecção, geralmente utilizando a "medida nova". A poesia doutrinária (epístolas, cartas) utiliza um tom direto para fazer crítica social, moral e filosófica, frequentemente contrastando a vida rural idealizada com a corrupção da corte.
🥇 Conclusão: O Doutor que Plantou o Renascimento
A Obra Poética de Sá de Miranda é a certidão de nascimento do Classicismo em Portugal. O poeta não só enriqueceu a língua portuguesa com novas possibilidades métricas, como também infundiu na lírica temas humanistas de crítica social, busca pela virtude e introspecção. Seu legado é a base formal sobre a qual Camões construiria seu génio, garantindo a Sá de Miranda um lugar imortal como o poeta que ousou mudar a forma de cantar em língua portuguesa.
(*) Notas sobre a ilustração:
A ilustração apresenta um retrato de Francisco Sá de Miranda num estilo que evoca gravuras históricas ou xilogravuras, típico de edições clássicas, com uma paleta de cores sóbrias e terrosas (marrons, beges, verde-oliva e preto).
Elementos Centrais e Composição
O Poeta: Francisco Sá de Miranda é retratado sentado a uma mesa, olhando diretamente para o observador com uma expressão séria e pensativa. Veste trajes escuros e solenes, incluindo um manto e um barrete preto típico do Renascimento. A sua barba é curta e cuidada, e a sua pose sugere a de um intelectual ou estudioso.
A Ação: O poeta está ativamente envolvido na escrita, segurando uma pena de ave com a mão direita e escrevendo num livro ou manuscrito aberto que repousa sobre a mesa. Este elemento enfatiza o seu papel como criador literário e introdutor da "medida nova".
O Cenário e o Simbolismo do Renascimento
A cena está ambientada num interior com uma janela em arco que oferece uma vista significativa, reforçando o simbolismo de sua obra:
A Mesa de Trabalho: A mesa de madeira está repleta de objetos que simbolizam o humanismo e o Classicismo:
Livros Grossos: Representam o conhecimento clássico e a erudição.
Manuscritos Enrolados: Simbolizam a produção poética e as novas formas literárias que introduziu (sonetos, éclogas).
Globo Terrestre (ou Esfera Celeste): Colocado à esquerda, simboliza o espírito do Renascimento, a curiosidade pelo universo (Cosmografia) e a era das Descobertas.
A Janela (Contraste): A janela em arco enquadra uma paisagem exterior que reflete o tema central da poesia bucólica de Sá de Miranda:
Natureza e Campo: Vê-se uma paisagem verdejante, montanhosa e rural, simbolizando o locus amoenus e o refúgio na vida campestre (a sua retirada para o Minho).
Barco no Mar: No horizonte, uma pequena vela de navio no mar lembra o contexto das Grandes Navegações e, por contraste, a crítica do poeta à ambição e à avareza ligadas à expansão marítima ("ousada avareza").
Conclusão Visual
A ilustração capta visualmente a dualidade da Obra Poética de Sá de Miranda: o intelectual do Renascimento (interno, livros, escrita) que valoriza a simplicidade e a moralidade da vida no campo (beatus ille), em oposição à corrupção da vida cortesã (simbolizada pela distância do barco e do mundo exterior).