sábado, 25 de julho de 2020

Judaísmo - Série Religiões


A palavra judaísmo remete à tribo de Judá, sendo, por extensão, na Antiguidade, uma religião nacional relativa à Judeia, situada ao sul de Israel.


É, nos dias de hoje, a religião dos judeus, comunidade bastante numerosa composta por diversas etnias, dentre elas: asquenazi, sefaradi, mizrahi, falasha, lemba, caraíta, e até, dentre muitas outras, judeus chineses.

O judaísmo admite a existência de um Deus único, Pai Onipotente, Rei Absoluto e, sobretudo, Santo, e é tido como a primeira religião monoteísta da história, versando sobre a saga do povo hebreu, o qual é compreendido, pelos seus seguidores, como o povo eleito por Deus.

Os fundadores do judaísmo são os patriarcas, Abraão, Isaac e Jacó, que foram progenitores do povo hebreu. Quantos aos profetas, são aqueles que anunciam a vontade de Deus ou que predizem o futuro.

A origem do termo “hebreu” é controversa, mas pode derivar da palavra “avar” (passar), isto é, nômade. É também associado a Héber ou Éber, descendente de Noé por parte da linhagem de Sem e remoto progenitor de Abraão, o fundador e pai do povo hebreu. Outra hipótese, diz repeito a "hebher" (do outro lado), para indicar que este povo provinha do outro lado do rio Eufrates, ou seja, estrangeiro.

A saga do povo hebreu se inicia com Abraão, que habitava, por volta do ano 1700 a.C., a terra de Ur, na Caldeia (atual Iraque). Abraão era um homem temente a Deus e, um dia, Deus lhe ordenou que fosse para Canaã (atual Palestina), habitada por povos pagãos. Abraão, que não tinha herdeiros, obedeceu a Deus, que, por sua vez, lhe prometeu que o faria pai de um grande povo do qual seus descendentes seriam mais numerosos que as estrelas do céu. Já velho, Abraão e sua esposa Sara, tiveram um filho, Isaque. Todavia, Deus ordenou a Abraão que sacrificasse a criança em holocausto no alto de um monte. Com imensa dor no coração, Abraão seguiu o rito de sacrifício quando um anjo lhe segurou a mão, impedindo que se consumasse a imolação. Deus queria por a prova a fidelidade de seu servo.

Isaque se casou com Rebeca e teve dois filhos gêmeos, Esaú e Jacó. No momento do parto, Jacó segurou o calcanhar de Esaú, que nascia primeiro, como sinal de uma rivalidade pela primogenitura que se daria mais tarde, com uma trapaça de Jacó. Após o ardil, e receber a benção de Isaque, que estava cego e doente, Jacó fugiu da ira de Esaú para Harã, onde morava seu tio Labão, pai de suas futuras esposas, Leia e Raquel. Muitos anos mais tarde, Jacó, que tivera um encontro com Deus, e mudado seu nome para Israel, procurou Esaú e, ao encontrá-lo, implorou perdão, que lhe foi concedido. Além das esposas Leia e Raquel, Jacó teve mais duas concubinas, Bila e Zilpa, e foi pai de treze filhos: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Dã, Naftali, Gade, Aser, Issacar, Zebulom, José, Benjamim e, uma filha, Diná. Seus filhos foram os fundadores das Doze Tribos de Israel.

José, preferido de Israel, por ser o único filho de Raquel (Benjamim ainda não havia nascido), despertava a inveja dos irmãos. Certo dia, José sonhou que os feixes de trigo que os irmãos seguravam se curvaram diante do seu. Os irmãos ficaram com tanto ódio que jogaram José em um poço para depois vendê-lo a uma caravana de ismaelitas mercadores de escravos, que o levaram para o Egito. No Egito, José acabou preso mas, por ser muito inteligente, se tornou escriba e notório por interpretar sonhos. Por seus méritos, foi nomeado vice-rei, após interpretar corretamente o sonho do Faraó sobre as sete vacas gordas e espigas boas, que representavam anos de fartura, e das sete vacas magras e sete espigas ruins, que representavam anos de fome. Graças a sua previdência, o Egito atravessou a crise enquanto a fome se alastrava pela Palestina. Um dia, os seus irmãos foram ao Egito à procura de alimento. O vice-rei os reconheceu, lhes perdoou e os convidou para morar, como súditos, no Egito, juntamente com Israel e as suas famílias. O sonho havia se cumprido.

O povo hebreu habitou o Egito durante cerca de 300 anos. Tornou-se numeroso, próspero e poderoso, a ponto do Faraó sentir-se ameaçado e escravizar o povo hebraico. Para evitar a superpopulação, o Faraó determinou a execução de todos os filhos homens dos hebreus. Um recém-nascido, filho de Joquebede e Anrão, da tribo de Levi, ficou escondido, mas, para não ser descoberto, sua mãe decidiu salvá-lo colocando-o em uma cesta às margens do rio Nilo. A filha do faraó encontrou a criança que foi, entretanto, amamentada pela ama de leite que era a sua própria mãe, Joquebede. Depois de amamentado, o menino foi entregue novamente à filha do Faraó, que lhe deu o nome de Moisés, “salvo das águas”, e o criou como um nobre príncipe egípcio.

Moisés foi escolhido por Deus para libertar seu povo da escravidão (Êxodo) e guiá-lo em peregrinação por cerca de 40 anos no deserto, após lançar dez pragas do Egito e abrir o Mar Vermelho para a fuga dos hebreus.

No monte Sinai, Moisés recebeu as tábuas da lei e foi consagrada a Aliança entre Deus e o povo hebreu. A Aliança é o ponto central de toda a história do povo hebreu; Israel se torna oficialmente o “povo eleito”.

Moisés então guiou o povo hebreu através do deserto em direção à Terra Prometida, a Palestina, mas não chegou a ocupá-la. Seu sucessor, Josué venceu os povos que ali habitavam e designou para cada tribo uma parte do território.

O sacerdócio, entre as doze tribos de Israel, Deus escolheu a de Levi (Levitas), sendo hereditário (Levitas).

O período que se seguiu ao de Josué foi chamado "dos Juízes" ou chefes que, através de lutas contínuas, defenderam e expandiram o território da nova pátria.

A região litorânea da Palestina era habitada pelos filisteus (fugitivos de Tróia, 1200 a. C.) que eram muito poderosos, pois possuíam armas de ferro e carros de guerra (Idade do Ferro). Os hebreus então se uniram sob um único rei, Saul, que depois foi substituído por Davi, ungido pelo profeta Samuel, que derrotou o gigante Golias e, definitivamente, conquistou os filisteus. O seu filho, Salomão, construiu o Templo de Jerusalém (900 a.C.).

Depois, o povo de Israel se dividiu em dois reinos hostis um para com o outro. São desse tempo os profetas que procuraram por todas as formas chamar o povo e os reis ao caminho de Deus.

No ano 587 a. C., Nabucodonosor, Rei da Babilônia, derrotou os hebreus, destruiu o Templo, saqueou os objetos sagrados e sequestrou o povo, transformando-o novamente em escravos. O “Cativeiro na Babilônia”, que durou 70 anos, teve seu fim quando o Império Babilônico foi derrotado pelos persas liderados por Ciro, o Grande (o único não judeu que mereceu o título de “Mashiach”). Os hebreus reconstruíram o templo, porém permaneceram vassalos da Pérsia até o ano 331 a. C.

Alexandre Magno, da Macedônia, conquistou um vasto território que ia da Grécia à Índia. Quando Alexandre morreu, Ptolomeu se apoderou de Jerusalém e introduziu na Palestina a cultura pagã da Grécia. Antíoco Epifânio, rei da Síria, descendente de Seleuco, general de Alexandre, passou a perseguir sistematicamente os judeus, profanou o Templo e realizou massacres.

Liderados, a princípio, por Matatias, dos Asmoneus, e depois pela família dos Macabeus, os judeus conquistaram Jerusalém, purificaram o Templo e restabeleceram a autonomia e independência da Judeia. Entre os Macabeus, destacaram-se Judas, morto gloriosamente em combate; Jonatas, feito prisioneiro e morto; e Simão, assassinado por Ptolomeu.

Tiveram grande influência na vida dos judeus a seita dos fariseus, dos saduceus e dos essênios.

Na época, rendia-se culto a Deus com orações e sacrifícios. O lugar sagrado por excelência era o Templo de Jerusalém. Com o tempo, os judeus que se espalharam pelo mundo passaram a construir edifícios de culto, as Sinagogas, onde os fiéis se reuniam todos os sábados (dia festivo) para ouvir a pregação dos rabinos e rezar.

As Escrituras Sagradas do judaísmo é o Tanakh (Bíblia Hebraica ou Velho Testamento), dividido pela Torah (ensinamento, lei), composto pelo Pentateuco, isto é, os cinco livros equivalentes aos Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio; Neviim (Profetas) que inclui os “Profetas Anteriores”, Josué, Juízes, Samuel e Reis, os “Profetas Posteriores”, Isaías, Jeremias, Ezequiel, e os “Doze Profetas Menores”; e Ketubim (Escritos), que reúne os Salmos, Provérbios, Jó, Eclesiastes, Esdras e Neemias, Daniel, as Crônicas, entre outros.

As sinagogas guardam uma cópia das Escrituras escrita à mão e em rolos de pergaminho. Durante os cultos, um membro da congregação faz a leitura de trechos das passagens sagradas.

Para a prática do judaísmo, mais importante que os textos sagrados são a interpretação e o comentário deles, considerados revelação do próprio Deus aos rabinos que as transmitiam oralmente até que então foram codificados por escrito a partir do século I d.C., no chamada Talmud.

O pecado entrou no mundo com Adão e Eva. Pecado é toda a violação da lei. A lei é a dádiva maior que Deus fez ao seu povo. O decálogo é o seu núcleo. Nas Escrituras e na tradição oral estão contidas as normas de comportamento para a vida prática.

Para um judeu, é sacrilégio pronunciar o nome de Deus (Terceiro Mandamento: “Não pronunciarás em vão o Nome de Javé, o Senhor teu Deus”), sendo substituído por Adonai (Senhor).

A moral judaica consiste em ajudar os pobres, exercer a caridade e não fazer mais mal do que o que se recebeu (olho por olho, dente por dente).

As principais consagrações religiosas são a Páscoa ("Pessach", passagem) ou Festa da Libertação (recorda a fuga do Egito); a Festa do Tabernáculo (recorda os 40 anos passados no deserto); o Pentecostes (recorda o dom da lei do Sinai); e a Festa da Dedicação, "Chanucá" (evoca a reconsagração do templo feita por Judas Macabeu).

No ano 70 d.C., imperador romano Vespasiano enviou seu filho Tito contra Jerusalém, que se rebelara contra o do domínio de Roma. Depois de um assédio devastador, descrito pelo historiador Flávio Josefo, a cidade santa foi destruída. Muitos dos judeus foram escravizados e outros se espalharam pelo mundo constituindo os chamados judeus da diáspora.

O povo hebreu espera o Messias (“Mashiach”), isto é, o “ungido”, anunciado pelos profetas como o Salvador, descendente direto da dinastia do Rei David. Para alguns, o Messias deverá ser um restaurador nacional, para outros, um redentor que libertará o povo dos pecados. No Talmud, o Messias é o líder que redimirá Israel no fim dos tempos. Ao reconstruir o Templo em Jerusalém, os judeus dispersos pelo mundo (Diáspora) serão reunidos no Reino de Israel, o qual os povos do mundo todo o reconhecerão. A Era Messiânica será marcada pela justiça e paz em um mundo sem pobreza.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Ritchie Valens - Pioneiros do Rock'n'Roll

Filho de um operário, Ritchie Valens, nome artístico de Ricardo Esteban Valenzuela Reyes (13 de maio de 1941 - 3 de fevereiro de 1959), nasceu no bairro suburbano mexicano de Pacoima, na cidade de Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos. Ritchie foi o primeiro astro do rock’n’roll de origem mexicana, que, entretanto, teve a carreira interrompida - durou apenas oito meses - por um trágico acidente de avião.

Muram com grafite de Ritchie Valens

Ricardo Valenzuela foi descoberto em 1958 pelo produtor musical Bob Keane quando se apresentava ocasionalmente numa sala de cinema. Foi de Keane a ideia de rebatizar o músico para Ritchie Valens, porque, segundo o produtor, o público norte-americano médio, branco e conservador, jogaria o latino “Valenzuela na lata de lixo“. Ritchie, então, com apenas 17 anos, passou repentinamente da obscuridade ao megaestrelato, emplacando quatro canções de sucesso durante sua curta carreira. Feito que nunca seria repetido novamente.

Cantor, guitarrista e compositor, Ritchie Valens ficou muito conhecido pelos hits “Come on Let’s Go Little Darlin”, “We belong Together” e “Donna!”, homenagem de Ritchie à sua namorada, que fez tanto sucesso que cravou a segunda posição no ranking da Billboard. Ainda mais surpreendente, para os padrões da época, ditados por uma sociedade bastante preconceituosa, foi o grande sucesso de “La Bamba”, música folclórica mexicana do gênero jarocho, que Ritchie transformou em um rock’n’roll contagiante cantado em castelhano, que lhe garantiu o 3º lugar nas paradas musicais.

Reconhecidamente um dos talentos mais brilhantes de sua geração, Ritchie foi convidado para uma turnê que uniria outros grandes astros do rock’n’roll; uma oportunidade única para um garoto humilde de origem mexicana de apenas 17 anos que conquistava os EUA. Mas, durante uma tempestade, o avião da turnê, no qual estava a bordo Ritchie Valens, "The Big Bopper" e Buddy Holly, caiu em Iowa a 3 de fevereiro de 1959. Não houve sobreviventes. O triste acontecimento foi eternizado pelo sucesso “The Day the Music Died” (O dia em que a música morreu), de Don McLean, de 1971.

Quando os estadunidenses de origem mexicana começaram a resgatar suas lendas e suas raízes, a história de Ritchie Valens foi trazida à luz pelo clássico La Bamba, filme de 1987 dirigido por Luis Valdez, reconhecido nos Estados Unidos como o pai do teatro e cinema “chicanos”. Estrelando Lou Diamond Phillips, a película foi um sucesso comercial e de crítica. A música título, interpretada por Los Lobos, de Los Angeles, tornou-se o hit número 1 nos EUA e no mundo naquele ano.

Em que pese os muitos outros clássicos do rock que Ritchie Valens poderia ter dado ao mundo, seu efêmero sucesso já o transformou num gigante. Aquí es donde se separan a los hombres de los niños.

Assinatura de Ritchie Valens
Assinatura de Ritchie Valens

terça-feira, 7 de julho de 2020

Anaxágoras e o Nous - Nonas filosóficas

Os eleáticos, por um lado, fizeram do ser substancial o fundamento na sua concepção do mundo, considerando o devir pura ilusão dos sentidos. Heráclito, por outro lado, descobre no devir, na sucessão causal dos acontecimentos, a essência do mundo, convertendo o ser permanente em aparência. Só depois destas duas afirmações se pôde fazer uma tentativa para harmonizar as duas tendências numa unidade superior. Realizou-se da seguinte forma: reconheceu-se, com os eleáticos, que o ser é aquilo que não devém, que é imorredouro e qualitativamente invariável. Concedeu-se porém a Heráclito que a diversidade das coisas e as suas variações não são pura ilusão. Existe, portanto, uma multiplicidade de seres; as variações, porém, tais como as aparentes gerações e destruições, reduzem-se a simples mudança de lugar, a movimentos.


 Esta reconciliação, entre as concepções fundamentais dos eleáticos e de Heráclito, realizou-se incompletamente com Anaxágoras e Empédocles, e por forma relativamente perfeita com Demócrito.

Anaxágoras e Empédocles formam um estranho par de filósofos antagônicos. O primeiro é um pensador mais simples, mais sóbrio, mais rude; o segundo é, sobretudo, um poeta brilhante, cheio de inspiração e de orgulhosa consciência de si mesmo.

Anaxágoras (500-428), nascido em Clasómenas, trouxe a filosofia da Ásia Menor para Atenas, onde pertenceu (cerca de 463) ao círculo de amigos de Péricles, exercendo grande influência sobre Eurípedes. Foi acusado de ateísmo pelos Inimigos de Péricles e teve que abandonar Atenas.

Embora partilhe a ideia fundamental de Parmênides acerca da natureza de “o que é”, não parece, contudo, ter sido influenciado por ele; e, comparado com a estima que os eleáticos têm pelo pensar como forma essencial do conhecimento, que nos eleva para além do que os sentidos nos oferecem, o ponto de vista epistemológico de Anaxágoras parece um pouco ingênuo e atrasado. Para ele, os sentidos fornecem uma fiel imagem da realidade, embora sejam débeis e incapazes de distinguir as pequenas partículas das coisas. E a suspeita da relatividade das propriedades sensíveis, que já Heráclito entrevira, encontra-se em Anaxágoras na afirmação de que um objeto parece tanto mais quente quanto mais fria está à mão que pega nele. Em geral, afirma que as coisas contrárias se percebem pelos seus contrários. As coisas possuem, realmente, todas as propriedades que os sentidos percebem nelas em matizado conjunto. E como supõe que as propriedades não podem variar, resulta daí que admite a existência de uma infinidade de matérias qualitativamente distintas (spermata, ou semente) que, em partículas infinitamente pequenas (homeomerias), preexistem desde o começo. É esse o sentido de muitas considerações suas, como por exemplo a seguinte: o pão, fabricado com plantas, ajuda ao desenvolvimento do nosso corpo. Este contém todavia matérias muito diversas; pele, carne, cartilagens, ossos, cabelo etc. Fica excluída qualquer transformação de umas matérias nas outras. Portanto, devem preexistir no pão elementos de todas as matérias, embora, devido à sua pequenez, não sejam perceptíveis aos nossos sentidos. Porém, como puderam chegar estes elementos ao pão, e anteriormente ao trigo, senão por meio da terra, da água, do ar e do fogo (isto é, pelos raios solares)? Portanto, estas coisas, aparentemente as mais simples e mais homogêneas, são, na realidade, as mais complicadas. Por muito que estas ideias sejam contrárias aos resultados da ciência moderna, especialmente à química, mostram todavia uma coincidência metódica geral com esta; os processos fisiológicos e químicos aparecem despojados de qualquer animação mítica, e são considerados puramente mecânicos; isto é, como fenômenos de movimento.

Anaxágoras interpreta também sob forma mecânica o fenômeno da evolução do universo: “No princípio, todas as coisas estavam juntas”; existia um caos de homeomerias completamente misturadas entre si. O nosso mundo nasceu do caos por um processo mecânico de separação e de reunião. A transformação completa (isto é, o movimento de rotação), que hoje ainda contemplamos nos corpos celestes, fez com que o mundo nascesse do caos. Começou o torvelinho num ponto do universo (no Polo Norte), e por choques e pressões ocorridas se propagou a toda a massa. As massas de matéria igual se deslocaram juntas: “O pesado, fluído, frio e obscuro, se apresentou junto ali onde se encontra atualmente a terra (que Anaxágoras situava no centro do mundo); o leve, quente e seco, subiu pelo éter”. Esta separação, contudo, não é completa: existem “em cada parte fragmentos de todas as outras”. As coisas deste mundo não são completamente separadas como se fossem cortadas a golpes de machado.

De onde vem então o impulso que engendra esse torvelinho que faz nascer o mundo do Caos? A resposta a esta pergunta se distingue das que deram todos os filósofos anteriores (como foi observado e aplaudido por Aristóteles; v. § 23). A ordem do mundo, ensina Anaxágoras, não pode se proceder senão do Espírito, do Nous. Este é “a mais fina e pura de todas as coisas”, uma espécie de “matéria pensante”, possui “todo o saber sobre tudo, sobre o passado, o presente e o futuro”, e, ao mesmo tempo, resultado da “máxima força”. Mas no conceito do Nous não está todavia contida a ideia de um espírito completamente imaterial e divino. O Nous é suscetível de se dividir e se encontra presente, em medida maior ou menor, em todo o ser vivo, inclusive nas plantas. Quanto mais Nous há no homem, tanto maior é o seu conhecimento. Assim como o fogo de Heráclito é ao mesmo tempo o suporte da inteligência cósmica, igualmente o Nous de Anaxágoras não é uma substância puramente imaterial, mas, por assim dizer, um éter inteligente, um fluído dotado de razão e princípio de movimento, ao mesmo tempo que “um Deus que impele de fora” (Goethe) (1).

Platão e Aristóteles censuravam Anaxágoras por fazer do Nous uma espécie de segundo prato; pois servia unicamente para explicar o impulso da evolução do mundo, mas não a ordenação, a finalidade e a beleza do Cosmos. Porém, do ponto de vista da moderna ciência da natureza, Anaxágoras merece menção especial: pois que, graças a este papel desempenhado pelo Nous, unicamente como introdutor no processo cósmico, pode este ser explicado mecanicamente, assim como também a natureza inteira, o que é precisamente o suposto fundamental da ciência. Por meio desta ideologia mecanicista, Anaxágoras se colocou mesmo em nítida oposição à interpretação mitológica da natureza, dominante entre os seus contemporâneos. Para ele, por exemplo, o Sol não era o deus Hélio, mas sim “uma massa brilhante de pedra” (2). Segundo a doutrina de que o Sol, a Lua e as estrelas se desprenderam do centro cósmico, a Terra, pela força do movimento universal de rotação, antecipa aos conceitos fundamentais da hipótese de Kant-Laplace, acerca da origem do nosso sistema solar. De igual maneira parece pressentida a significação cósmica da gravitação, quando, a propósito da queda acidental de um meteoro em Egos-Potamos, diz que da mesma maneira todos os astros iriam cair sobre a Terra, se a força do torvelinho não os que retivessem nas suas órbitas. É também interessante observar que foi ele o primeiro a fazer uma observação exata das fases e eclipses da Lua. Pelo contrário, é pueril a suposição de que os solstícios se dão porque a densidade do ar obriga o Sol a retroceder. A Lua, porém, devido à sua menor temperatura relativamente a esta densidade, seria forçada a dar voltas mais frequentes (3).

(1) Estes conceitos podem hoje nos parecer contraditórios; naquele tempo, porém, não estavam separados e, portanto, não podia ainda notar-se a contradição que envolvem.

(2) É característica da ciência natural dessa época a afirmação de Anaxágoras, segundo a qual o tamanho do Sol excede o da península grega do Peloponeso.

(3) Chegaram até nosso conhecimento mais tentativas de Anaxágoras para explicar os fenômenos naturais. O mesmo se deve dizer aos filósofos antigos. Para abreviar, não podemos entrar em pormenores. Este fato revela que a própria filosofia era então a ciência universal, da qual se foram separando lentamente as ciências particulares; só algumas destas (matemática, medicina etc.) têm origem independente.

(August MESSER, “História da Filosofia”, Editorial Inquérito: Lisboa, 1946 - obra em domínio público).

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quarta-feira, 1 de julho de 2020

Fernando Pessoa heterônimo de Shakespeare


Por Jean Pires de A. Gonçalves

O mundo inteiro é um palco
E todos os homens e mulheres não passam de meros atores
Eles entram e saem de cena
E cada um no seu tempo representa diversos papéis.
(William Shakespeare, As you like it)

Fernando Pessoa e William Shakespeare

Não seria de todo estranho se Fernando Pessoa fingisse verdadeiramente a loucura fingida de Hamlet e recitasse em versos o mais famoso monólogo da dramaturgia: Ser ou não ser... Fernando Pessoa? Nessa questão, ninguém poderia acusá-lo de plágio – conceito moderno que reduz a obra intelectual ou artística à produção-reprodução de mercadorias – porque, assim como na verdadeira arte, desde pelo menos a era clássica, para Fernando Pessoa, a obra de arte define-se enquanto emulação.

Fernando pessoa, cujo padrasto fora nomeado cônsul na África do Sul quando aquele contava seis anos de idade, estudou no colégio Durban High School, obtendo instrução na língua inglesa até seu retorno a Portugal, aos 17 anos. Admirador da literatura anglo-saxônica, portanto, é bem conhecida a influencia do “mais insincero de quantos poetas tem havido”, tal como se referia Fernando Pessoa a Shakespeare, na obra literária do poeta português autor de Mensagem.

O próprio Fernando Pessoa poderia ter sido um heterônimo de um poeta louco português, dado a manias de grandeza, representado por um personagem disfarçado em três em algum drama shakespeariano.

A fabulação não é gratuita. Portugal não é esquecido pelo dramaturgo. Numa peça de Shakespeare intitulada As you like it, traduzida para o português como Como gostais ou Do jeito que você gosta, o bardo menciona a melancólica terra lusitana num diálogo entre a personagem Rosalinda e sua prima Célia:

Rosalind: O coz, coz, coz, my pretty little coz, that thou
didst know how many fathom deep I am in love! But
it cannot be sounded: my affection hath an unknown
bottom, like the bay of Portugal.

(Ah, prima, prima, prima, minha linda priminha, se ao menos tu soubestes a quantos palmos de fundura estou enterrada na paixão! Mas isso não pode ser medido. Não se tem como saber onde está o fundo da minha afeição, que nesse ponto é como a Baía de Portugal. Tradução: Beatriz Viégas-Faria).

Ameaçada de morte por seu tio, o Duque Frederico, Rosalinda foge e se disfarça de homem, o jovem Ganimedes, identidade pela qual passa a ser reconhecida até se revelar ao seu grande amor, o nobre Orlando. Tal observação não desvia do nosso tema. Eis um ponto fundamental na obra de Shakespeare: as personagens constantemente se disfarçam assumindo personalidades muito diferentes de forma tão perfeita ao ponto de um pai não reconhecer o próprio filho. Não é incomum, também, uma peça de teatro ser representada dentro da peça que está sendo encenada. Estes procedimentos dizem respeito a uma concepção filosófica subjacente à visão de mundo do dramaturgo inglês.

Porém, antes de dar prosseguimento a esse raciocínio, que será retomado logo adiante, é necessário antes compreender mais exatamente a dimensão que Shakespeare ocupava na concepção literária de Fernando Pessoa e, então, registrar o que pensava Pessoa do maior poeta da língua portuguesa: Luis Vaz de Camões:

“É um grande poeta épico e um razoavelmente bom poeta lírico. (...) Mas é assinalavelmente desprovido de todas as qualidades puramente intelectuais com as quais a poesia mais elevada – e a literatura mais elevada – é construída. Não tem em si a profundidade; não tem uma profunda intuição metafísica (tal como poderia encontrar às dúzias numa página de Shakespeare)” (PESSOA, 1996).

Ainda que nos possa parecer bastante injusta essa afirmação, nota-se que na comparação a Shakespeare, Fernando Pessoa acusa Camões de não ter tido uma profunda intuição metafísica, qualidade inexorável a uma poesia ou literatura mais elevada. Considerando-se, deste modo, que, na obra de Fernando Pessoa, “o guardador de rebanhos” AlbertoCaeiro exerce o papel de mestre, não apenas dos heterônimos Ricardo Reis e Álvaro de Campos, mas do próprio Fernando Pessoa ele mesmo (um caso de “metonímia concreta”, em que a criatura supera o criador), é bastante possível que o protótipo do nosso “pastor amoroso” já estiva lá encarnado na peça de Shakespeare As you like it. Indagado sobre filosofia, pelo bobo da corte Touchstone, o pastor Corin disserta:

CORIN: No more but that I know the more one sickens the
worse at ease he is; and that he that wants money,
means and content is without three good friends;
that the property of rain is to wet and fire to
burn; that good pasture makes fat sheep, and that a
great cause of the night is lack of the sun; that
he that hath learned no wit by nature nor art may
complain of good breeding or comes of a very dull kindred.

(Nada além de eu saber que, quanto mais se adoece, pior se fica. Sei também que quem está precisando de dinheiro, trabalho e satisfação está sem três bons amigos. Sei que a chuva tem a propriedade de molhar, e o fogo, a de queimar. O bom pasto faz engordar carneiros e ovelhas; e que uma grande causa para a noite é a falta do sol. Quanto àquele que não é esperto por natureza nem foi ensinado a ser esperto, ele pode se queixar se não é de boa estirpe ou se vem de uma família de néscios. Tradução: Beatriz Viégas-Faria).

TOUCHSTONE: Such a one is a natural philosopher. Wast ever in
court, shepherd?

(Uma pessoa assim é naturalmente um filósofo. Já estiveste na corte, pastor? Tradução: Beatriz Viégas-Faria).

Agora, o nosso Alberto Caeiro, naturalmente um filósofo (nunca é demais reler Fernando Pessoa, não é mesmo?):

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

“Constituição íntima das coisas”...
“Sentido íntimo do Universo”...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Mas esta “metafísica inerente à física-natural”, de Corin e Caeiro, não é tudo: apenas os fundamentos de um edifício filosófico maior. Há um outro elemento interessante para se assinalar.

O divertido diálogo em que o astucioso bobo da corte Touchstone tenta seduzir a camponesa Audrey parece apontar para uma oposição entre campo e cidade permeada de implicações:

TOUCHSTONE: I am here with thee and thy goats, as the most
capricious poet, honest Ovid, was among the Goths.

(Estou aqui, Audrey, contigo e com tuas cabras como um fiel capricorniano, um poeta honesto como Ovídio, um pastor pastando por ti).

JAQUES: [Aside] O knowledge ill-inhabited, worse than Jove
in a thatched house!

([à paste] Ah, rico conhecimento em pobre morada, igual Júpiter em casebre com telhado de capim.

(...)

TOUCHSTONE: No, truly; for the truest poetry is the most
feigning; and lovers are given to poetry, and what
they swear in poetry may be said as lovers they do feign.

(Nem tanto, pois a verdadeira poeticidade é a mais fingida, e os apaixonados são dados a poetar, e o que eles juram e prometem nos poemas pode-se dizer que, enquanto apaixonados, estão fingindo.

AUDREY: Do you wish then that the gods had made me poetical?

(Você queria então que os deuses me tivessem criado com poeticidade?

TOUCHSTONE: I do, truly; for thou swearest to me thou art
honest: now, if thou wert a poet, I might have some
hope thou didst feign.

(Sim, eu queria, de fato. Pois tu me juras que és donzela. Agora, se tu fosses poeticamente criativa, eu poderia ter alguma esperança de que estás fingindo. Tradução: Beatriz Viégas-Faria).

Em que pese o tom hilário, essa conversa não poderia ter inspirado Fernando Pessoa na elaboração de sua obra poética resumida em Autopsicografia?

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

O poeta Fernando Pessoa parece vivenciar a filosofia shakespeariana e representar papeis dos quais atua ou finge tão bem. Do ponto de vista filosófico, pode se inferir que Shakespeare reproduz a ideia antiquíssima do mundo constituído por duas realidades distintas e opostas: natureza e sociedade. No senso comum ou no nível da opinião, natureza se caracteriza pela imediatez, espontaneidade, bondade, ingenuidade, um olhar direto sobre as coisas; enquanto, por outro lado, as relações sociais são marcadas pela artificialidade, falsidade, malícia e dissimulação. Em suma, o verdadeiro e o falso.

Mas, para o bardo, não é tão simples assim. Em sua concepção, o mundo humano artificialmente construído, a cidade, não é um simples simulacro desprovido de qualquer verdade e, sim, uma outra verdade tão verdadeira quanto (uma segunda natureza), ainda que fingida. A realidade urbana, palaciana, com sua etiqueta e educação, regras de conduta, formalidade, enfim, é análoga a um palco onde os atores representam personagens diversos determinados pelas circunstancias e condições de vida e que, de fato, são as diversas faces do mesmo ator. (Aliás, um bom ator é aquele que incorpora um personagem). Na cosmovisão shakespeariana, portanto, a vida em sociedade é um teatro complexo tão autêntico (em sua falsidade verdadeira) quanto à simplicidade do mundo rural, e o amor é a manifestação mais sublime disso.

Fernando Pessoa parece ter levado a sério esta lição shakespeariana sobre a obra de arte e a literatura. Pois, através de sua poesia dramática, o poeta-ator desempenhou múltiplos personagens que não era senão ele mesmo: Ser ou não ser Fernando Pessoa? Eis a questão!

Como diria a personagem Perdita em Winter's Tale (Contos de inverno):

I see the play so lies
That I must bear a part.

(Estou vendo que preciso encenar o meu papel nesse teatro. Tradução: Beatriz Viégas-Faria).

Bibliografia

PESSOA, Fernando. “Correspondência inédita”. Organização de Manuela Perreira da Silva. Lisboa: Livro Horizonte, 1996.

PESSOA, Fernando. “Poesia”. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor). Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).

PESSOA, Fernando. “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor). Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

SHAKESPEARE, William. “Como gostais” e “Contos de iverno”. Tradução: Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2009.

SHAKESPEARE, William. “As You Like It” (link) e "Winter's Tale" (link).