domingo, 15 de setembro de 2019

Punk, ecologia e os direitos dos animais

Os incêndios criminosos na Amazônia, objetivando transformar a floresta em pasto, sob as vistas grossas de um governou que chegou a cogitar em extinguir o ministério do meio ambiente, acenderam o alerta vermelho do problema do meio ambiente em todo mundo acerca da parcela de responsabilidade a que cada um de nós está sujeito. Afinal, aquecimento global, poluição, uso irrestrito de agrotóxicos etc. colocam o destino da humanidade à beira de precipício sem volta. Por isso, ecologia não é uma opção, mas uma via de mão única: a vida no planeta depende da preservação da natureza.
Símbolo da anarquia e vegetarianismo

Neste cenário sombrio, que se avizinha assustadoramente, um futuro devastado e poluído, os punks deram um passo à frente nas antigas pautas do anarquismo quando, sem abandoná-las, reivindicaram a libertação ou os diretos dos animais como propostas fundamentais.

De fato, os anarquistas tradicionais da revolução social raramente ultrapassavam os objetivos teórico e prático da expropriação e do controle, imputados à classe trabalhadora, das unidades de produção, fábrica etc. Ainda que no ideário anarquista as questões do indivíduo, como o livre-arbítrio e a liberdade de pensamento, nunca foram suprimidas do conjunto de seu programa revolucionário, os anarquistas sempre procuraram mirar sua artilharia nas mazelas sociais causadas pelo sistema capitalista.
Pássaro voando com uma bomba

Porém, ao radicalizarem a crítica do capitalismo, os anarquistas rastrearam toda uma cadeia de exploração que ia muito além da exploração do proletariado. De fato, a ganância pelo lucro também significava a exploração dos animais e da natureza. Muito embora estas questões atinadas pelos anarquistas despertassem alguma crítica e ações pontuais, só foram realmente pautadas após Maio de 68.

Neste sentido, o bem-estar dos animais e a preservação do meio ambiente mobilizaram tendências políticas de esquerda que ficavam fora da órbita do politiburo.

Nos anos 70, em virtude da crise do petróleo e do desastre nuclear, o debate transcendeu os círculos restritos de ambientalistas e ganhou atenção da opinião pública. Mas, com o tempo, ativistas políticos, hippies e até mesmo anarquistas foram sendo absorvidos principalmente pelos partidos trabalhista ou verde, acabando por rejeitarem suas posições iniciais ou tornando-se moderados. O radicalismo retornariam tempos depois, com o movimento punk.

O punk, no geral, não seguiu os passos do anarquismo tradicional, isto é, um movimento social saído das lutas da classe trabalhadora, mas, embora produto da indústria cultural, ao adotar o ideal anarquista quase que por acaso, e identificando-se com as camadas populares e pobres, transformou uma tendência musical em contracultura, passando a contestar o “sistema” e preconizar um novo estilo de vida: transgressor, coletivo, alternativo e auto-gestionário, tendo por base o lema “Do-It-Yourself” (faça você mesmo).

Casal punk

Desde o final da década de 70, o movimento punk levou muitos jovens a formar bandas e a compor “músicas de protesto”, incentivando-os a um ativismo político radical, visível nas manifestações e passeatas de rua. Na cena europeia, os punks passaram também a ocupar imóveis abandonados e a promover concertos organizados para apoiar questões sociais e também ambientais.

Ecologia, energia nuclear, sexismo, corporações multinacionais, exploração do trabalho, poluição, anticaçada, antivivissecção, vegetarianismo e libertação ou direitos dos animais foram apenas algumas das novas questões sociopolíticas que as bandas punks incluíam em seu repertório.

Neste sentido, punk e veganismo ou “direitos dos animais” sempre estiveram intrinsecamente ligados. Isso fica claro nas letras e slogans das bandas punks; pelo conteúdo editorial dos zines; pelos diversos shows beneficentes e lançamentos de discos em defesa dos direitos dos animais e do próprio veganismo. Isso não quer dizer, todavia, que todos os punks são veganos ou que todos os veganos são punks - mas que essa conexão não pode ser ignorada e é parte integrante da cultura punk.

No entanto, a literatura recorrente trata o punk de forma simplista. A maioria dos livros segue narrativas óbvias e consagradas pela mídia conservadora e o mainstream, ao considerar o punk apenas como um movimento musical surgido no final da década de 1970, focando somente nas bandas bem-sucedidas comercialmente.

Há muita verdade na alusão ao punk como um produto da indústria fonográfica e relacionado a uma moda juvenil, de retórica anti-hippie e de jaqueta de couro; mas limitá-lo somente a esses aspectos gerais é não compreender a semente maldita do punk, sempre preste a germinar e que, de fato, fora de controle, se volta, como um Frankstein furioso, contra seu criador.

manifestante chutando escudo de um policial

Assim, neste pacote crítico de temas bastante diversificados, a libertação e os direitos dos animais, além da conservação do meio ambiente, ganharam destaque na cena punk. Notadamente, o movimento anarco-punk, que foi o primeiro a incluir na sua lista de compromissos políticos o veganismo e a libertação e os direitos dos animais, a partir de, pelo menos, 1979. Neste contexto, os zines exerceram uma função imprescindível ao informar e divulgar estas opiniões e ideais políticos.

A politização através do punk envolve, portanto, conscientização e atitude. Desde o surgimento do anarco-punk, no final da década de 1970 e no início da década de 1980, muitas bandas passaram a divulgar informações e imagens dos horrores e dos abusos e exploração envolvendo animais; em contrapartida, resistiam através de uma dieta vegetariana, isto é, uma alimentação eticamente libertária como base do estilo de vida punk.

Em 1983, a banda londrina Conflict lançou a contundente “Meat Means Murder”, faixa do EP "To a Nation of Animal Lovers", pela qual critica o consumo de carne e a exploração animal.

Mas, evidentemente, o discurso punk não se restringe a questões dos animais e do meio ambiente isoladamente sem o respaldo do ideário anarquista. Pois, ao dirigir a crítica ao cerne da economia capitalista, o desperdício de recursos naturais, a insalubridade das grandes aglomerações humanas causada pela poluição e o desmatamento, o desequilíbrio ecológico e a libertação e direitos dos animais não poderiam ficar de fora desse escopo, já que, embora as letras das músicas punks exerçam mais influente do que os textos anarquistas, desde Kropotkin ou Élisée Reclus, o anarquismo sempre demonstrou preocupação com os animais não humanos e a natureza.

Assim, os direitos dos animais estão inseridos numa crítica abrangente contra a opressão, combinando o veganismo com crítica econômica, os quais podem, sim, remontar aos ideais anarquistas, o que faz do punk muito mais do que uma porta aberta para a luta por um mundo melhor e mais justo, mas esse mesmo mundo.


domingo, 1 de setembro de 2019

Mayombe, entre o tribalismo e o nacionalismo

Por J.P.A.G.

Sob o contexto histórico da descolonização da África durante o século XX, em meio à dura rotina de um pequeno grupo de guerrilheiros engajados na luta pela libertação de Angola, suscitam conflitos entre os personagens que, embrenhados e isolados na floresta do Mayombe, se veem na singular circunstância de se confrontarem com suas diferenças e identidade que, na verdade, refletem características e especificidades do próprio continente africano. Ao desenrolar a trama do romance, o livro Mayombe, do escritor angolano Pepetela, pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, aborda um dos temas mais caros da independência de Angola – e, por óbvio, dos demais países africanos –, a saber, a questão antagônica do tribalismo e da construção de uma identidade nacional. Merecem alguns destaques:


a) O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) seguiu os moldes de um típico movimento de guerrilha de inspiração cubana e socialista na luta de independência de Angola contra o colonizador português. No livro, um grupo de guerrilheiros se instala numa selva na região norte do país, Mayombe. Pelo fato dos guerrilheiros provirem de diversas etnias, as contradições são inevitáveis e refletem a composição multicultural da sociedade angolana, ao mesmo tempo em que perante a necessidade da construção de uma identidade unitária nacional torna-se um empecilho. Neste sentido, o projeto nacional do MPLA devia apagar as diferenças culturais em prol de uma unidade comum, haja vista que a dominação do império português se lograva da velha máxima romana divide et impera (dividir para reinar). No romance, a questão do tribalismo é uma constante e é, no geral, um fator desagregador, uma “fraqueza”. Portanto, há o ideal de destribalização como oposição ao jugo europeu que, a princípio, superou o problema de suas minorias nacionais. Porém, é justamente o tribalismo que vai minando a própria unidade do grupo e os conflitos vão surgindo. Portanto, a libertação da Angola só poderia ser feita se os diversos grupos étnicos fossem suprimidos em torno de um mesmo objetivo, a construção do Estado nacional.

b) A resposta a essa pergunta tem relação com o que foi dito acima. A narrativa de muitos personagens, polifônica, foi o recurso para dar voz aos diferentes pontos de vistas que estão em conflito sem o privilégio de uma verdade. De certa forma, a polifonia retrata as diferenças e semelhanças dos personagens que estão envoltos na questão do tribalismo. A unidade nacional almejada passa por diversas interpretações que muitas vezes são contraditórias. Diante disso, como construir uma identidade comum e a do outro, o colonizador europeu, a quem se quer libertar, se os próprios dominados não se reconhecem como iguais? Assim, a superação das diferenças tradicionais significa que as múltiplas vozes devem descobrir-se diferentes do português na identidade angolana e assim emancipa-se do domínio colonial.

c) Homem novo é o homem que surgirá como superação do estado colonial na Angola pós-independência, um homem educado, culto, um arquétipo do homem no ideal de igualdade preconizado pelo socialismo; nas palavras de Sem Medo: “é um homem novo que está a nascer, contra tudo e contra todos, um homem livre de baixezas e preconceitos”. O homem novo na Angola independente significa a superação da tradição enraizada no tribalismo, que divide, desorganiza e gera xenofobia, a luta de todos contra todos, isto é, significa a ruptura com o passado subjugado. No projeto de futuro angolano não cabe a herança colonial permeada por distinções tribais que permitiram que invasores ocupassem a nação, explorando as riquezas e a mão de obra. O homem novo, portanto, é o homem to futuro, livre e dono do seu destino.

d) A região do Mayombe é uma região no norte de Angola dominada por uma mata muito fechada onde o grupo de guerrilheiros instala a sua base e que, guardadas as proporções, seria um equivalente, à guerrilha do Araguaia, no Amazonas. Nenhum dos guerrilheiros tinha familiaridade com o local, muitos, aliás, provinham de áreas urbanas. O Mayombe é impenetrável e insólito, não se restringindo à apenas geografia propriamente dita, pois representa um grau de significados que transcendem o espaço físico. Tal é o grau de estranhamento com o local que o próprio personagem Sem Medo chega a formular uma metáfora bastante apropriada quando compara o grupo de guerrilheiros a náufragos numa ilha chamada o Mayombe. Além disso, o Mayombe aparece como uma entidade sobrenatural, divina, o deus-Mayombe, detentor do destino trágico de seus devotos. É o espaço da alteridade por excelência, onde os personagens são obrigados a abandonar seu próprio “eu”, o que significa esquecer a sua história, o seu passado. O Mayombe é precondição para o surgimento do homem novo. 

e) Teoria é filho de uma mãe negra e um “comerciante português”, e daí o uso do “inconciliável”. Inconciliável porque, por um lado, ele é filho de um branco, que, de alguma forma, representa o colonizador, e, por outro, de uma mulher negra, representação do colonizado. Ou seja, o professor Teoria vive na pele o maniqueísmo do bem contra o mal, já que no mundo há pouco espaço para os “outros”. Curiosamente, teoria reconhece esta contradição como aquilo que o move, “o seu motor”, tal qual um movimento dialético, em que os termos contraditórios se superam. Porém, num universo em que todos devem abandonar as singularidades de sua identidade e se constituir no futuro como um novo homem, Teoria não apenas carrega no âmago do seu ser o seu passado, mas também se vê obrigado a escondê-lo.