sábado, 25 de abril de 2020

Confucionismo - Série Religiões


Confúcio nasceu no ano 551 a.C., tempo de trevas para a China, quando nobres movidos por sentimentos caprichosos eram capazes de cometer atos de extrema crueldade contra seus servos e a punição mais comum no país era a mutilação dos pés dos condenados, o que resultava numa legião de aleijados. À época, a China estava dividida em diversos Estados autônomos, à semelhança de um regime feudal, e em permanente estado de guerra. Os camponeses também eram superexplorados e sujeitos a todo tipo de arbítrio e tributação. Ou seja, um cenário de injustiça que certamente inspiraria as ideias do confucionismo por um mundo melhor.


Descendente de nobres empobrecidos – a família de Confúcio estava ligada à dinastia que governou a China de 1588 a 1409 a.C., da cidade de Tsu, Estado de Lu – o verdadeiro nome de Confúcio era Kung Ch’io. Quando nasceu, seu pai tinha 60 anos e sua mãe, apenas 15. De estatura elevada, ultrapassava facilmente os dois metros, e por isso era conhecido por "gigante"; mas, pouco tempo depois, Kung Ch’io passou a se chamar Confúcio, palavra que significa "o mestre". Recebeu educação necessária para ocupar a função de funcionário burocrático e, ambicioso, conseguiu um emprego de contador na administração local, onde esperava galgar posições de destaque na carreira.

No entanto, a vaidade pessoal fomentada pelo cargo dá lugar a um desejo de ajudar a melhorar as condições de vida de seu povo, o que o leva a um estado de meditação e estudo. Durante esse período, dedica-se a compor uma doutrina pessoal e, então, inicia o ensino dessas concepções. Abre uma escola a qual acorriam ao mesmo tempo até três mil alunos provenientes das mais remotas regiões da China. Como mestre, Confúcio era bastante exigente: "Não ensino nada a quem não faz esforço para compreender", dizia em tom resoluto. As suas matérias preferidas eram a escrita, a matemática e a música. Apaixonado pela antiguidade, procurou estudá-la a fundo e transmiti-la aos seus discípulos. Mas os alunos também o procuram porque através de seus ensinamentos podiam se aprofundar em filosofia, história e literatura.

O objetivo de Confúcio era o de preparar funcionários para um novo estilo de administração pública. Realmente, sua doutrina visava criar um novo tipo de aristocracia baseada no mérito, ao invés da tradição hereditária.

Tornou-se governador numa cidade, superintendente nos trabalhos públicos e, finalmente, ministro da justiça. Disse a respeito do seu governo: “Tudo corria maravilhosamente bem; nos homens admirava-se a sinceridade e a fidelidade e, nas mulheres, a modéstia e a castidade, até os comerciantes se comportavam honestamente”. Fez prosperar a tal ponto o principado de Lu, do qual era a chefe, que os principais rivais, para impedir que se tornasse demasiadamente poderoso, enviaram ao rei oitenta belíssimas dançarinas e quarenta quadrilhas de cavalo, com o fim de o corromperem. O rei caiu na armadilha e se deixou arrastar para corrupção. Confúcio tentou atraí-lo ao justo caminho mas, vendo que os seus esforços eram inúteis, foi para o exílio.

Retornou após catorze anos e se dedicou exclusivamente aos estudos. Vivia de maneira simples e frugal: “Sinto-me feliz de me alimentar com alimentos rudes, de beber água e de me servir do meu braço como cabeceira para dormir. As riquezas e as honras adquiridas com os meios injustos são para mim como nuvens flutuantes".

Na sua doutrina, Tao é o conceito central que significa “caminho”, ou modo de vida ideal para o indivíduo e para o Estado. Sob tal princípio, não recomendava sanções nem prometia recompensas, apenas o cumprimento das virtudes, sinceridade, bondade, respeito e justiça, de modo que, praticadas, a miséria, a injustiça, o sofrimento e a guerra seriam suprimidos.

É bastante ambígua a relação de Confúcio perante a religião. De um modo geral, evita a se envolver em assuntos religiosos, apreciando apenas seus aspectos tradicionais, estéticos e valores baseados na solidariedade familiar. Não há um juízo de ordem transcendental em suas doutrinas ou um triunfo final e redentor da justiça; apenas a recompensa proporcionada pela paz de espírito diante da satisfação de uma conduta generosa.

Todavia, parece que Confúcio admitia a existência de Deus, um ser supremo, partindo das coisas terrenas, chamado Ti (Dominador), e mais tarde Tien (Céu): "As quatro estações se sucedem regularmente e as coisas falam como se fossem a voz de Deus”, escreveu.

Porém, grande parte da doutrina de Confúcio diz respeito às normas da vida prática: amar ao próximo, sinceridade, justiça, apreço aos valores morais, coragem, sabedoria, sentido de humanidade para com o próximo e consciência das vontades dos céus. "Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam".

Pregava o amor aos pais, fazendo ofertas em sua honra. Com o fim de continuar a vida paterna através de muitos filhos, permitia mesmo a poligamia.

O estado é visto como uma grande família. O rei é mandado por Deus. "Um príncipe mal nunca será obedecido, um bom consegue tudo mesmo sem dar ordens". Por tanto, venerava o rei ou o Imperador "representante de Deus" e as almas dos antepassados.

Para Confúcio, os homens são todos iguais no momento do nascimento e depois se diferenciam em quatro categorias: os "santos", que possuem a ciência e a virtude de forma natural; os "homens superiores", que conquistam a virtude e a ciência com o seu esforço; os "estúpidos", que não conseguem atingir a virtude e a ciência, apesar dos seus esforços; e os "loucos", que não fazem nada para saírem de sua estupidez.

Chama-se confucionismo o conjunto de doutrinas religiosas e políticas, morais e filosóficas que Confúcio recolheu da antiguidade e transmitiu a seus discípulos. Embora não sendo propriamente nenhuma religião tampouco filosofia, o confucionismo ocupou para os chineses o lugar de uma e de outra.

O confucionismo interpretado livremente pelo filósofo Chuhsi (1130-1200) nega a existência de qualquer divindade e, portanto, é ateu.

Os maiores adeptos de Confúcio foram Mêncio e Chuhsi. O primeiro tentou conservar íntegro os ensinamento do mestre; o segundo, pelo contrário, deu aos seus textos sobre Deus uma interpretação materialista.

A Confúcio foram erigidos templos e monumentos. Parece, porém, que este culto tinha caráter civil, não religioso; tanto que, para entrar nos templos de Confúcio, era preciso pagar bilhete, tal como nos museus.

Atualmente, na China, os jovens depuseram Confúcio de seu trono milenário e consideram-no como patrono da extinta monarquia.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

The Everly Brothers: Pioneiros do Rock'n'Roll


Mais conhecidos pela batida inconfundível nas cordas de aço do violão acústico e vozes harmônicas marcantes, The Everly Brothers foram um dos grupos mais originais dos loucos anos dourados do rock’n’roll.


Isaac Donald Everly, o Don, nasceu em 1 de fevereiro de 1937, numa pequena cidade em Kentucky, e seu irmão, Phillip Jason Everly, o Phil, em 19 de janeiro de 1939, Chicago, filhos de dois amantes de música country, o guitarrista Ike e Margaret Everly.

Os irmãos cresceram em Iowa, onde cantavam e tocavam com os pais em transmissões de rádio ao vivo ou em pequenos shows sem grande importância.

Mas Don e Phil resolveram formar uma dupla e, depois de algumas tentativas fracassadas, no ano de 1957, emplacam um grande sucesso nas paradas musicais, “Bye Bye Love”, seguido por uma série fenomenal de três anos consecutivos marcados por sucessos tais como os clássicos “Wake Up Little Susie”, “All I Have to Do Is Dream”, “Bird Dog”, “Till I Kissed You” e “When Will I Be Loved”.

A dupla acabou se separando em 1973 quando cada um dos irmãos seguiu carreira solo e nos anos 80 voltaram a se apresentar juntos mas por um breve período.

The Everly Brothers cantaram os encantos do amor juvenil através de belíssimas melodias. A mistura de música country dos Apalaches com pop moderno, a suave harmonia vocal, a boa aparência e a qualidade inquestionável das canções fizeram com que os irmãos fossem aclamados por várias gerações e até hoje embalam festinhas nostálgicas pelo mundo afora.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Pitágoras e a sua escola - Nonas Filosóficas


Pitágoras (580-500 a.C.) não deve ser considerado fundador da chamada doutrina pitagórica dos números (que surgiu mais tarde, no seio da sua escola), mas sim como um reformador religioso. Era originário da Ilha jônica de Samos e fez grandes viagens, que o levaram ao Egito e talvez à Babilônia, sede da antiga sabedoria sacerdotal (1). Talvez cerca de 530, foi para a Itália do Sul e se estabeleceu na aristocrática Crotona, onde fundou uma comunidade ou ordem religioso-moral, que em breve se estendeu as outras cidades.


Esta liga, foi comparada, e não sem motivo, à maçonaria. Era cultivado, tal como nos mistérios órficos, uma crença religiosa. Os órficos estavam organizados em comunidades religiosas, que adoravam o Deus trácio Dioniso, e cuja fundação remonta ao poeta mítico Orfeu. Deles, sem dúvida, tomou Pitágoras a sua ideia da transmigração das almas, doutrina de sentido ético que interpretava a reencarnação como castigo ou recompensa de uma existência anterior. O sentimento moral de Pitágoras combatia a religião dos poetas, tais como Homero, pela sua falta de sinceridade. Exigia-se aos membros da comunidade uma rigorosa submissão à autoridade, a abstenção de qualquer gozo sensível, e, em geral, dos bens exteriores; a privação de certos manjares e, na vida política, uma atitude estritamente aristocrática e conservadora (2). Pitágoras se ocupou também da matemática e da música. Os pitagóricos cultivavam, de fato, com grande aplicação, aritmética e a geometria (3). (Criação da teoria das proporções, teorema de Pitágoras). E da música, que consideravam como meio de excitar e acalmar os sentimentos, se ocuparam, não só prática mas também teoricamente. Foi fundamental e fecundíssimo neste sentido o descobrimento do mestre, segundo o qual a altura dos sons depende do comprimento da corda vibrante. Daqui nasceu a ideia de que a realidade inteira se encontra estruturada por uma regularidade. Essa ideia encarnou naquele jovem o fantástico pensamento, de uma maneira para nós pouco menos que incompreensível. Viu-se, nos números, não só a expressão das relações entre as coisas reais, mas também o seu núcleo e a sua própria essência. Aquele pensamento, ainda pouco desenvolvido, julgava captar, por meio dos conceitos abstratos (como o conceito de número), inevitáveis para pensar o concreto, não abstrações (portanto, algo simplesmente pensado), mas coisas reais. Por este motivo, tampouco se chegou a pensar os números na sua pureza abstrata, pois foram representados na intuição sensível, por forma a coincidirem os conceitos aritméticos e os geométricos. O ponto era equivalente ao número 1; a linha, ao 2; a superfície, ao 3; os corpos, ao 4; e etc. (4). A essência das figuras aparecia assim igual à dos números que designavam o conjunto dos elementos espaciais nelas contidos; o espaço cósmico é o substrato geral de todas as coisas, e cada uma das coisas particulares consiste em formas geométricas regulares, distribuídas no espaço.

Além disso, reduzem as relações numéricas não só a natureza exterior, os seus elementos e as suas leis, (por exemplo: as propriedades da matéria, a relação entre a altura dos sons e a dimensão da corda, a distância entre os planetas), mas também as relações sociais e as propriedades espirituais. A justiça se equipara, por exemplo, com um número quadrado, porque a sanção recorda o nascimento de um número por dois fatores iguais. Neste fenômeno cooperou a significação mística dos números nas religiões. Daqui deriva o fato de a cada um dos distintos números corresponder distinto valor, e, por consequência, distinta significação para a realidade. O número um, que é a origem de todos os números, deve conter também a origem dos dois princípios opostos, que constituem o princípio do mundo: o limitado e o ilimitado. Os números ímpares corresponde o limitado (e correlativamente o limite) e o bom (assim como também o reto, o repouso, o luminoso e o masculino); aos números pares corresponde o ilimitado, o mau (assim como o curvilíneo, o movimento, o tenebroso e o feminino). O mundo se constitui por estas oposições, mas os opostos se encontram ao mesmo tempo harmonicamente reunidos numa ordem superior, num cosmos (5). O fundamento, por assim dizer, vivente deste cosmos, de todas as suas partes e relações, são os números, que (digamos uma vez mais) não são considerados conceitos abstratos, mas coisas substanciais que atuam no espaço (6).

As doutrinas dos pitagóricos foram sobretudo importantes para a evolução de uma imagem exata do mundo, portanto, para a astronomia. Já Anaximandro atacava a opinião, a primeira a surgir ante os homens, segundo a qual a Terra é um disco sustentado por um suporte. Segundo ele, seria antes o fuste de uma coluna, mais larga do que alta, girando livremente no centro do universo. Pitágoras lhe atribui a forma esférica, assim como ao próprio céu e aos outros astros. Então a terra se converteu numa estrela igual às demais. Mas os pitagóricos sabiam também que o movimento diurno do Sol, da Lua é das estrelas é aparente; e, para explicá-lo, supuseram que a terra se move, não em volta de seu eixo, mas ao redor de um fogo central, juntamente com todos os outros astros. Esse fogo se encontra na região da Terra para nós inacessível e inabitável; por isso invisível aos homens. É o lar que dá vida, luz e calor; em torno dele dançam o Sol, a Lua e as estrelas (7). E como as suas distâncias correspondem aos intervalos musicais, e tudo o que se move rapidamente produz som, resulta que todo o universo se encontra banhado numa celestial harmonia de esferas, que nós não ouvimos, porque é permanente, e só as variações ou interrupções de um excitante podem nos produzir sensações.

Pouco a pouco foram se corrigindo estas fantásticas interpretações da doutrina dos pitagóricos. E Kfantos, um dos mais jovens pitagóricos, ensinava já a rotação axial da Terra, e Aristarco de Samos (século III a. C), o movimento da Terra em redor do Sol; porque, crendo que este era sete vezes maior do que a Terra, parecia inverossímil que um corpo grande girasse em torno de um pequeno (8). Foi também da maior importância para o futuro o fato de os pitagóricos considerarem a matemática como protótipo do conhecimento exato e seguro.

(1) No Egito, a necessidade de medir o terreno depois das inundações do Nilo favorecera notavelmente as disciplinas matemáticas. Na Babilônia, a adoração das estrelas fomentou o estudo da astronomia, mas os gregos foram os primeiros a cultivar estas disciplinas, não com fins práticos ou religiosos, mas teóricos, quer dizer, pelo próprio conhecimento.

(2) Isto foi causa de que, quando a democracia venceu mais tarde nas cidades gregas do sul da Itália, a liga pitagórica fosse perseguida a ferro e fogo e dissolvida (cerca de 450).

(3) Os mais importantes foram Filolau, em Tebas, e Arquitas, em Tarento; este último ocupou na sua cidade uma posição semelhante à de Péricles, em Atenas.

(4) Recorda-se a expressão, ainda hoje usual, de números quadrados e cúbicos. “Os números são considerados, por toda a antiguidade, como unidades de massa, como grandezas, distâncias, superfícies. A sua matemática é estereometria” (Spengler).

(5) Esta denominação foi introduzida pela primeira vez pelos pitagóricos.

(6) Assim, por exemplo, disse Filolau, no mais completo fragmento que dele se conserva, que o 10, como soma dos quatro primeiros números, “tem uma grande força, enche tudo, atua em tudo, e é começo e guia da vida divina, celestial e humana”.

(7) Se imaginava que os astros se encontravam cravados em abóbadas esféricas cristalinas que se moviam circularmente. Para completar o sagrado número 10, se admitia, além da Terra, a Lua, o Sol, os cinco planetas e o céu das estrelas fixas, uma “antiterra”.

(8) Com isto se haviam superado consideravelmente as aparências sensível. Mas quanto faltava ainda para chegar a uma medição exata do diâmetro (r: 218)!

(August MESSER, “História da Filosofia”, Editorial Inquérito: Lisboa, 1946 - obra em domínio público).

Parmênides, Zenão e os eleáticos 






quarta-feira, 1 de abril de 2020

Tolstoi e o iluminismo - Resumo

Resumo: Tolstoi e o iluminismo - Isaiah Berlin

Por J. P. A. G.


Isaiah Berlin inicia o texto lembrando que Tolstoi foi sempre visto pela crítica como um excelente escritor de ficção mas um mau pensador. Num sentido contrário, o crítico Mikhailovski, que, por sinal, era contemporâneo de Tolstoi, que o menosprezava por seu engajamento político socialista, apresentou uma tese diferente, defendendo que, além de Tolstoi ser um grande literato, com suas análises profundas da psique humana, o romancista russo também demonstrava grande atines em sua abordagem dos problemas da Rússia e da civilização ocidental.


Berlin também compartilha desta opinião herética para a época e argumenta que os textos de Tolstoi são, para além de seus méritos de grande escritor, fundamentalmente filosóficos. Isso fica patente no estilo de Tolstoi. Carregadas de subjetividades, as proposições de Tolstoi são sempre diretas, simples, mas, ao mesmo tempo, questionadoras; a tal ponto que, entre as décadas de 1860 a 1870, o escritor russo foi tido como um “niilista”. Tal rótulo, em Tolstoi, no entanto, é equivocado, pois o projeto literário do romancista sempre foi, acima de tudo, a busca pelo conhecimento da verdade.

Neste sentido, Tolstoi não pode ser enquadrado nem entre os intelectuais liberais da direita nem da esquerda, os socialistas, muito embora acreditasse na liberdade individual e no progresso, ainda que de modo bastante peculiar e pessoal. Todavia, dentre o leque de filósofos do iluminismo, há em Tolstoi uma afinidade muito grande com as teses de Rousseau. Por isso, Tolstoi, tanto como o filósofo francês do século XVII, enfatiza a educação enquanto um grande problema de ordem filosófica e que, evidentemente, reflete na questão social.

Assim, Tolstoi reproduz o adágio rousseauano do “homem nasce bom e a sociedade o perverte”. Para Tolstoi, existe uma tendência natural, isto é, inata, em todos os seres humanos, para perceber a verdade eterna e imutável, em toda a sua clareza inerente. Tal atributo humano pode ser, segundo Tolstoi, ser constatado na pureza das crianças e camponeses. Eis a teses de Tolstoi: a educação ocidental, contaminada por teorias cientificas, pela filosofia da história, notadamente, hegeliana, polos adornos retóricos e artificiais da erudição, acaba por corromper aquela faculdade inata da percepção da verdade, tão característica nas pessoas simples e imunes à sua influência.

Por outro lado, a tese de Tolstoi acarreta valores profundamente reacionários e daí sua aversão aos avanços liberais da sociedade que ainda estavam em pauta, tais como os direitos das mulheres e o sufrágio universal. Para melhor enquadrar a filosofia de Tolstoi subjacente em seus romances, o crítico segue o texto com alguns comentários biográficos do escritor, valendo a pena ressaltar a origem aristocrática, o que lhe valeu a possibilidade de conhecer de perto a miséria em que viviam os camponeses e servos, e, a quando de sua juventude, a “indiferença ostensiva à vida literária enquanto tal”. Indiferença essa que parecia condizente com o comportamento de Tolstoi expresso na sua necessidade de tomar medidas práticas diante da vida, tais como abrir uma escola para crianças camponesas dentro do domínio de suas terras, oportunidade que abriria para Tolstoi experimentar seus métodos pedagógicos.

A questão social também é posta em xeque por meio da constatação empírica de Tolstoi, já que, para ele, o camponês é autossuficiente e depende só de si para subsistir, enquanto a aristocracia e todo a sua pompa só existe graças à exploração do camponês, o que é, não apenas imoral, mas também injusto. Porém, a questão fundamental em Tolstoi é o tema da verdade que, obscurecida pela influencia da civilização, sobretudo, a ocidental, está diante de todos os seres humanos, e revelada em toda a sua integralidade demonstraria toda a injustiça da estrutura social. A verdade, obstruída dos males da civilização, levaria necessariamente a uma sociedade onde todos seriam livres e iguais. Segundo o autor, é “uma forma, aliás, muito simples, da doutrina clássica do direito natural, em sua vertente liberal-anarquista, seja teológica ou secular” (p. 250).

São nestes termos que Tolstoi fomenta os critérios da obra literária, inclusive de seus contemporâneos, como Dostoievski, ao qual o julga muito difuso, e Turgueniev, que é, ao contrário, considerando um grande escritor, porque de algum modo descreve temas morais adequados, muito embora peque na escolha de seus temas, circunscritos e triviais. Assim, ainda que Tolstoi seja um apaixonado pelos produtos culturais e artísticos da civilização, como a música de Mozart, Chopin e Beethoven, ou a literatura de Puchkin, argumenta que tais produtos são incompreensíveis para o povo, o qual compreende muito melhor o folclore ou as histórias bíblicas.

Num certo sentido, a obra de Tolstoi é transita por essa tensão e daí a ambiguidade de que ele próprio não pode sair. Tal ambiguidade suscita uma outra tendência na obra tolstoiana: a impossibilidade de transformar o camponês pelos marcos da civilização, o que o afastaria da verdade. Esta contradição só pode ser resolvida por uma educação ou pedagogia que não distorça a verdade enquanto tal. A educação, baseada na verdade, portanto, teria a capacidade de revolucionar a sociedade, tornando-a igualitária, e é essa, no fundo, constitui a tarefa de todo grande artista, de todos os homens de talento que trabalham nesse objetivo. O talento é uma necessidade interior que leva a regeneração da sociedade, pois toda grande obra de arte contém em si a verdade, eterna e absoluta, e deve ser democratizada. “Seguindo seus próprios caminhos, Tolstoi chegou a um programa de anarquismo cristão que tinha muito em comum com o dos populistas russos. Excetuando o socialismo doutrinário destes últimos, sua crença na ciência e a fé dos métodos do terrorismo, a postura de Tolstoi tinha muito em comum com a deles. Agora o que ele mostrava defender era um programa de ação, e não a passividade; tal programa estava subjacente à reforma educacional que ele tentava levar adiante” (p. 255).

Esse programa de ação é, novamente, inspirado no Émile de Rousseau e consiste em descobrir e entender o que é espontâneo e está harmonia em cada ser humano. É preciso deixa a natureza fluir e seguir seu curso e não moldar o indivíduo para determinados fins e contrários a seus impulsos. A criança é modelo e deve contrapor à corrupção imanente ao universo dos adultos. Portanto, o educador tem muito mais a aprender do que ensinar, já que as fórmulas dogmáticas de uma educação tirânica desviam o ser humano de sua verdade e, por conseguinte, da Verdade. Tal programa é, no entanto, cheio de contradições, pois, quem educará os educadores? Daí o seu fracasso, pois, apesar da crítica demolidora do iluminismo, é somente pela via do iluminismo que Tolstoi constitui todo seu pensamento crítico.

BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. Companhia das Letras: São Paulo, 1988.


Posts relacionados: