terça-feira, 15 de junho de 2021

Fecaloma punk rock: 20 anos de Rebelião Adolescente

Pode se dizer que o disco (CD) “Rebelião Adolescente” da banda Fecaloma é um marco na história do punk nacional, já que foi o primeiro, com uma tiragem de mil cópias, a trazer estampado o preço na capa – R$ 3,00 reais, o que equivalia, na época, a um dólar. Ademais, no encarte, a banda inusitadamente fazia uma prestação de contas, discriminando os custos de gravação, arte, prensagem etc., e que demonstrava o quanto era barato a produção de um CD independente – que era vendido pelo preço de 10 a 20 reais. (Bandas do mainstream chegavam a vender por 40 reais ou mais).

Rebelião adolescente, 20 anos

Embora incomum no Brasil, a prática surgiu nos anos 80 como uma reação à campanha antipirataria encampada pela indústria fonográfica, que, àquela altura, mirava suas munições contra a fita cassete, através da declaração de guerra: “A gravação caseira está acabando com a música – e é ilegal”. Muitas bandas e fanzines parodiaram o slogan. A banda anarcopunk holandesa The Ex acrescentou na advertência das gravadoras o sugestivo: “já não era sem tempo!”. A versão em cassete do EP In God We Trust, Inc, de 1981, do lendário Dead Kennedys, deixava virgem o lado B da fita, que vinha com a seguinte inscrição: “A gravação caseira está acabando com os lucros da indústria de discos!”, portanto, “deixamos um lado virgem para você fazer a sua parte”. Estampas de camiseta da banda punk californiana Rocket from the Crypt também alertavam, em tom sarcástico: “A gravação caseira está acabando com a indústria musical – e daí?!!!”. Porém, ainda mais emblemático foi o álbum Workers Playtime, de 1988, do compositor inglês de folk music e punk rock, Billy Bragg, que, além da mensagem “o capitalismo está acabando com a música”, fixava na capa o preço do disco em £ 4,99 e, logo abaixo, “não pague mais”.

Curiosamente, a iniciativa do Fecaloma não foi muito bem recebida na cena punk brasileira, sendo, inclusive, objeto de crítica. Um país pobre como o Brasil, vai entender...

Em homenagem aos 20 anos do lançamento do CD “Rebelião adolescente”, transcrevemos aqui integralmente o texto impresso na sua contracapa:

Rebelião adolescente

Não fiz 18 anos, não sou maior de idade, não fiz 21 anos, não alcancei a maioridade civil, deixem-me envelhecer dignamente. O que esperam de mim, que arrume um emprego, que passe 10 horas numa firma, saia para almoçar num restaurante self-service com um bando de chatos, entre numa faculdade, repita como um papagaio estúpido palavras do tipo mercado de trabalho, campo profissional, capacitação, (...), vista roupas sociais, beba cerveja com os amigos, fume um baseado, comprei um carro, um celular, tenha no bolso mil cartões de créditos, de banco, seguro de vida? Não mesmo! Não vou me corromper. Querem que eu faça parte da Ordem, que renuncie todas as minhas aspirações, esperanças, sonhos e utopias. Nunca! Não vou me render, desistir dos planos de rebelião da minha adolescência. Odeio arrogância do mundo adulto, a sua seriedade e má-fé. Odeio a frieza e a indiferença dos adultos, seu calculismo e desrespeito. Onde está aquele mundo de fantasia que me prometeram? Não existe. Só que eu acreditei. Por que me ocultar na verdade? Quando eu era criança nem a verdade podia destruir a minha felicidade, então porque não me disseram tudo? Não sou de guardar ressentimentos, mas não me obriguem a fazer parte do sistema. A minha adolescência é eterna, e a essência da minha revolta e crença na liberdade, a minha recusa ao mundo adulto. Conclamo a todos os adolescentes, à rebelião! À rebelião!

Não tenho medo das autoridades que me vigiam o tempo todo e me tratam como suspeito. Sou suspeito, sim, sou inimigo da sociedade, que é conivente a toda injustiça e crimes praticados pela ordem estabelecida. A hipocrisia das autoridades não me engana, sou seu eterno inimigo. Estou armado com ideias mais explosivas que mil dinamites juntas. Querem que eu faça 18 anos logo, para que assim eu possa responder penalmente, e justificarem com o meu “consentimento” uma eventual prisão. Mas não sou um criminoso comum, sou um revolucionário. Meu inimigo não são as pessoas humildes, estes são os das autoridades; meu inimigo é a ordem. Tenho espírito adolescente, a confusão não me é estranha, o tumulto é divertido, a esperança é um sonho.  À rebelião, adolescentes! À rebelião!

Sou inconformado com este mundo corrupto, se envelhecer é corromper-se, então eu não quero envelhecer. Não vou fazer 21 anos, conquistar minha Independência civil e oficializar a desonestidade. Jamais! Não quero sentir vergonha do passado, e quando eu estiver maduro arrepender-me de qualquer ato de covardia. Sou um revolucionário, não concordo com a indignidade e traição dos adultos que se entregam sem a menor resistência ao sistema. Entregam-se ao mercado de trabalho, ao campo profissional, à capacitação, à hipocrisia, sem sequer se importarem com o destino sombrio das milhares de pessoas excluídas da ordem. Não, sou um adolescente, detesto o trabalho como odeio a escola, amo a liberdade como adoro o recreio. Quero viver no futuro próximo, no mundo igualitário e livre, sem governo sem patrão. Conclamo à revolta, adolescentes! À rebelião!

Fecaloma

Começo do século XXI (2001).

terça-feira, 1 de junho de 2021

A essência da amizade em Cícero

Mais raro do que um verdadeiro amor é a verdadeira amizade. Durante nossas vidas, muitas pessoas se aproximam de nós, quase sempre, movidas por algum interesse. Na maioria das vezes, isso não é ruim, sendo, a bem dizer, muito natural. Interesses comuns unem as pessoas e podem ser dos mais variados, desde o gosto por literatura até culinária, cinema, música, esporte etc. As falsas amizades, no entanto, nascem de interesses dissimétricos. Explico: quando alguém se aproxima de outro visando tirar algum benefício ou alguma vantagem, geralmente, em torno do dinheiro. Distinguir os falsos amigos dos verdadeiros nem sempre é tarefa fácil, portanto. Certo é que o convívio acaba necessariamente por desmascarar as amizades interesseiras. Todavia, a verdade é que, passando os anos, a maioria das amizades se desfaz e os amigos de ocasião seguem caminhos distintos, tornando-se pessoas distantes e, às vezes, até estranhas. Somente aquelas amizades que resistem ao tempo e à distância são propriamente amizades autênticas. Se acabarem, é porque não eram verdadeiras e decorriam de circunstância muito específica, em que a amizade surgiu como uma consequência. Por outro lado, a amizade é a toda hora posta à prova e a mais decisiva delas aparece nos momentos de dificuldade. É nas horas difíceis que se descobrem os verdadeiros amigos e que eles, lamento dizer, não são muitos – talvez, em alguns casos, sequer existem. Mas, como diria o famoso orador romano Cícero, não se vive sem amizade. Por isso, separei alguns fragmentos da obra de Cícero Da Amizade para ajudar-nos a descobrir, como critério de qualidade, se a pessoa que se diz seu amigo ou sua amiga sente de fato por você uma amizade sincera:

Da Amizade

“Também apelo para a autoridade daquele que o oráculo de Apolo tinha julgado como ‘o mais sábio’. Não um sábio que ora afirma uma coisa, ora nega, como, aliás, é encontradiço, mas o sábio que sempre afirma que as almas dos seres humanos são divinas e, quando deixam o corpo, caminham de retorno para o céu, onde os melhores e os mais justos são, de imediato, transferidos.

“Quem deposita na virtude o sumo bem, age, sim, de modo dignificante, uma vez que é a virtude mesma a produzir e a conservar a amizade, de modo que, sem virtude, não há como existir amizade.

“Graças à amizade, os ausentes tornam-se presentes, os carentes ficam saciados, os fracos, fortalecidos.

“Não existe, com efeito, maior peste contra a amizade do que a cobiça de riqueza que afeta a maioria das pessoas. Entre os melhores explode a concorrência aos postos de honra e glória. Daí advém, entre pessoas ligadas até por estreita amizade, irreconciliáveis desavenças.

“Por conseguinte, não há como escusar um crime pelo fato de ter sido praticado em favor do amigo.

“Não devemos dar ouvidos àqueles que fazem da virtude algo duro e férreo. Na verdade, ela é, em muitas situações, quer na amizade, quer em muitas outras propriedades de caráter, tanto tenra quanto flexível de modo a difundir doçura sobre os amigos, enquanto ameniza qualquer mal-estar.

“Portanto, não é a amizade que acompanha a utilidade e, sim, a utilidade que segue a amizade.

“Quem iria amar uma pessoa que inspira medo? Tais indivíduos são respeitados de modo dissimulado, só por algum tempo. Se ocorre a queda do poder deles, como de fato acontece, então fica visível como eram vazios de amizade.

“Eis porque a verdadeira amizade, dificilmente, é encontrada naqueles que vivem das honras dos cargos públicos. Onde, entre eles, encontrar quem anteponha a honra do amigo à sua própria? Para omitir o mais, apenas acrescento: como é penoso e difícil para a maioria, partilhar das desgraças do amigo!

“Ainda que Ênio, com razão, editasse: ‘Conhece-se o amigo certo nas horas incertas’.

“Na amizade, um dos aspectos mais relevantes é que o maior iguala-se ao menor.

“Assim amam os amigos tal como gado, já que sempre esperam tirar algum proveito. (Falsa amizade)

“Cada qual se ama a si mesmo não porque retira disso algum preço e, sim, porque cada um em si é caro para si mesmo.

“Ambos esses vocábulos (amor e amizade) derivam de ‘amar’. Amar, outra coisa não é senão estimar a quem se quer bem, sem cálculo e interesse ou de vantagem.

“A vantagem, mesmo que não a procures, ela aflora, espontaneamente, da amizade.

“Como as coisas humanas são frágeis e caducas, devemos, sempre buscar a quem amamos e que nos ame porque, tirando da vida o afeto e a benevolência, a vida perde todo o seu encanto.”

(Cícero, Da Amizade, tradução de Luiz Feracine, Editora Escala, 2006)

*****

Marco Túlio Cícero foi advogado, filósofo, orador, retórico e político romano. Apesar da origem plebeia, da gens Túlia, sua família era rica. Cícero fez fortuna ao defender numerosas causas que lhe deram prestígio e o conduziram a altos cargos na República Romana. No ano de 76 a.C., foi questor na Cicília; pretor, em 66; e cônsul em 62. Tornaram-se célebres seus discursos, denominados Catilinárias, contra a conspiração tramada pelo senador Lúcio Sérgio Catilina. Durante a guerra civil, entre os anos de 51 e 50, foi governador da Cicília, tornando-se apoiador de Cneu Pompeu Magno, adversário de Caio Júlio César. Após o atentado contra a vida de César, as desavenças com Marco Antônio, partidário daquele, levaram ao assassinato de Cícero em Fórmica. Merecem menção, entre outras, as suas obras “Do orador”, “Da República”, “Das Leis”, “Dos deveres”, “Controvérsias Tusculanas”, “Sobre a Natureza dos Deuses”, “Da Velhice”, “Da Adivinhação”, “Cartas” e “Da Amizade”.

sábado, 15 de maio de 2021

Ike Turner - Pioneiros do Rock'n'Roll

Ike Turner nasceu em uma família pobre e religiosa, na cidade Clarksdale, Mississippi, em 5 de novembro de 1931. O racismo característico dos estados sulistas dos EUA propiciou um acontecimento trágico em sua vida: seu pai foi espancado até a morte por uma multidão de pessoas brancas.

Ike e Tina Turner
Ike e Tina Turner

Apesar dos infortúnios da condição de afrodescendente em uma sociedade conservadora e preconceituosa, ainda criança revelou um talento excepcional para música, que lhe rendeu um emprego de DJ numa rádio local. O garoto havia aprendido a tocar piano com o mestre do boogie-woogie, Pinetop Perkins, e foi um autodidata com a guitarra, tornando-se virtuose com o instrumento.

Na adolescência, montou a sua própria banda, The Rhythm Kings, que o acompanhou por toda a sua carreira. Em 1951, gravou “Rocket 88”, canção creditada a Jackie Brenston and His Delta Cats e considerada o primeiro registro da história no gênero rock’n’roll.

Ike também trabalhou como caça-talentos. Ajudou a “descobrir” astros da grandeza de BB King, Bobby “Blue” Bland, Roscoe Gordon e Little Milton.

Antes mesmo de completar 25 anos, Ike chegou a se casar oito vezes, ou talvez mais. Quando Anna Mae Bullock, sua terceira esposa e mais conhecida como Tina Turner, entrou para a banda e assumiu o piano, Ike foi tocar guitarra, desenvolvendo um estilo próprio e potente. Jimi Hendrix chegou a dizer que Ike era o melhor guitarrista de rhythm and blues de todos os tempos.

Ike cruzou o país, fazendo shows com sua banda. Ele se recusava a se apresentar para públicos segregados, como era costume naquele tempo, e exigia, mesmo no sul, que o público fosse misturado.

Mais tarde, Tina se divorciou de Ike alegando que sofria espancamento e que o marido, além de viciado em cocaína, era infiel no casamento. Mas, em que pese o insucesso no casamento, Ike e Tina Turner foram incluídos no Rock and Roll Hall of Fame, em 1991.

sábado, 1 de maio de 2021

O Primeiro de Maio de Saramago

A Revolução dos Cravos ou Revolução de 25 de Abril foi um movimento militar ocorrido em 1974, que surgiu no contexto das guerras coloniais que Portugal mantinha na África desde o início dos anos 60. O movimento, que transcorreu praticamente sem violência, derrubou o regime ditatorial do Estado Novo, instaurado por Antônio Salazar e continuado por Marcelo Caetano. A revolução teve como protagonistas jovens oficiais, os chamados "capitães de abril", que foram veteranos das campanhas na África. Durante os acontecimentos, os soldados recebiam, como sinal de apoio, cravos vermelhos da população. Segue trecho da obra de Saramago Levantado do chão: romance que descreve o Primeiro de Maio durante a revolução e o poema de José Afonso Grândola, Vila Morena

Primeiro de Maio

*****

Em Abril, falas mil. Nos campos há grandes ajuntamentos noturnos, os homens mal veem as caras uns dos outros, mas ouvem-se-lhes as vozes, abafadas se o local não é de suficiente segurança, ou mais soltas e claras em deserto, em todos os casos com a proteção de vigias, dispostos segundo a arte estratégica da prevenção, como quem defende um acampamento. É, deste lado, uma guerra pacífica. Se pelo escuro da noite a guarda se aproxima, e agora já não é a simples patrulha de dois homens dos tempos correntes, vêm às dúzias e meias dúzias, e até onde os carreteiros chegam transportam-se em jipe e jipão, se vindo assim se aproximam, depois em linha, como quem levanta caça, recuam as sentinelas a avisar, e então de duas uma, consoante, ou a guarda vai passar de largo e o silêncio é a melhor defesa, todos os homens, sentados ou de pé, seguram a respiração e os pensamentos, são direitas pedras, antas doutro tempo, ou a guarda vem mesmo ao direito da reunião e a ordem é dispersar por caminhos de mau piso, por enquanto ainda a guarda não tem cães, é o que vale. Na noite seguinte prosseguirá a conversa no ponto em que foi deixada, naquele mesmo lugar ou noutro, que esta paciência é infinita. E quando é possível encontram-se de dia, em grupos mais pequenos, ou vão pelas casas, conversa de ao pé do lume, enquanto as mulheres lavam a louça caladas e as crianças adormecem pelos cantos. E estando no eito um homem ao pé doutro homem, a palavra dita e ouvida é como o bater do maço da cabrilha na estaca, mais funda um pouco, e na hora de comer, com a panelinha ou a marmita pousadas no chão, entre as pernas, enquanto a colher sobe e desce e a aragem fria vai arrefecendo o corpo, tornam as palavras ao de cima, é um falar pausado que diz, Vamos para as oito horas, basta de trabalhar de sol a sol, e então os prudentes temem-se do futuro, Que será de nós se os patrões não quiserem dar trabalho, mas as mulheres que estão a lavar a loiça da ceia, enquanto o lume arde, têm vergonha de que tão prudente o seu homem seja e estão de acordo com o amigo que lhes bateu à porta para dizer, Vamos para as oito horas, basta de trabalhar de sol a sol, porque também elas assim trabalham, e mais ainda, doridas, menstruadas, pejadas da barriga à boca, ou, quando já não, com os seios a derramar o leite que devia ter sido mamado, é uma sorte, não se lhes secou, muito se engana pois quem julgue que basta levantar uma bandeira e dizer, Vamos. É preciso que Abril seja um mês de palavras mil, porque mesmo os certos e convencidos têm seus momentos de dúvida, suas agonias e desânimos, lá está a guarda, lá estão os dragões da pide, e a negra sombra que alastra pelo latifúndio, que nunca o abandona, não há trabalho, e vamos nós, por nossas mãos, acordar a besta que dorme, sacudi-la e dizer, Amanhã, só trabalharei oito horas, isto não é o primeiro de Maio, o primeiro de Maio é o menos, ninguém pode obrigar-me a ir trabalhar, mas se eu disser, Oito horas, só isto e nada mais, é como açular o cão raivoso. E o amigo diz, aqui sentado no cortiço, ou ao meu lado no eito, ou no meio de uma noite tão escura que nem posso ver-lhe a cara, Não se trata só das oito horas, vamos também reclamar quarenta escudos de salário, se não quisermos morrer de canseira e de fome, são boas coisas de pedir e de fazer, o difícil é tê-las. O que vale é que sendo as falas muitas, muitas são as vozes, e do ajuntamento levanta-se uma, não é simples modo de dizer, é verdade, há vozes que se põem de pé, Que vida tem sido a nossa, em dois anos morreram-me dois filhos da doença da fome, e aquele que me resta, irei criá-lo para besta de carga, respondam-me, se nem eu quero continuar a ser a besta de carga que sou, são palavras que ferem os ouvidos delicados, mas aqui não os há, ainda que ninguém, deste ajuntamento, goste de olhar para o espelho e ver-se metido em varais de carroça ou com albarda e cangas, É assim desde que nascemos.

(...)

E então começa-se a falar no primeiro de Maio, é uma conversa que todos os anos se repete, mas agora é um alvoroço público, lembrar-se a gente de que ainda o ano passado andava a esconder-se por aí, para combinar, organizar, era preciso voltar constantemente ao princípio, ligar os de confiança, animar os indecisos, tranquilizar os temerosos, e mesmo agora ainda há quem não acredite que a festa do primeiro de Maio possa ser às claras como dizem os jornais, quando a esmola é grande, o pobre desconfia. Não é esmola nenhuma, declaram Sigismundo Canastro e Manuel Espada, desdobra-se um jornal de Lisboa, Está aqui escrito que o primeiro de Maio será festejado livremente, e dia feriado em todo o país, E então a guarda, insistem os de boa memória, A guarda desta vez fica a ver-nos passar, quem havia de dizer que uma coisa assim nos viria a acontecer um dia, a guarda quieta e calada enquanto tu gritas viva o primeiro de Maio.

E como por cima daquilo que nos permitem temos sempre de pôr o que imaginamos, ou então não somos homens merecedores de pão cozido, principiou a dizer-se que toda a gente devia estender colchas à janela e pôr flores, como se fosse dia de sair o Senhor dos Passos à praça, com um pouco mais se varriam as ruas e embarracavam as casas, tão fáceis são de subir as escadas do contentamento. Porém, assim são os dramas humanos, exagero foi chamar-lhes dramas, mas sem dúvida são perplexidades, agora que vou eu fazer se em minha casa não há colchas nem tenho jardins de cravos e rosas, quem terá sido o da ideia. Tem Maria Adelaide parte nesta ansiedade, mas sendo nova e esperançosa diz à mãe que não poderão ficar em pouco, que não havendo colcha fará uma toalha as vezes dela, branquíssimo pano suspenso do postigo da porta, bandeira de paz no latifúndio, homem civil que ali passasse haveria de descobrir-se com respeito, e sendo guarda ou militar em sentido e continência prestar homenagem diante da porta de Manuel Espada, trabalhador e bom homem. E não sejam as flores vosso cuidado, senhora mãe, que à fonte do Amieiro irei colher das silvestres que neste tempo de Maio cobrem os vales e as colinas, e estando as laranjeiras floridas ramos dela trarei e assim nosso postigo será janela enfeitada como varanda de alcácer, menos do que os outros não seremos, porque somos tanto.

(José Saramago. Trecho de “Levantado do chão: romance”)

 *****

Grândola, Vila Morena

Grândola, Vila Morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

 

Dentro de ti, ó cidade

O povo é quem mais ordena

Terra da fraternidade

Grândola, Vila Morena

 

Em cada esquina, um amigo

Em cada rosto, igualdade

Grândola, Vila Morena

Terra da fraternidade

 

Terra da fraternidade

Grândola, Vila Morena

Em cada rosto, igualdade

O povo é quem mais ordena

 

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

Jurei ter por companheira

Grândola, a tua vontade

 

Grândola a tua vontade

Jurei ter por companheira

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

(Canção de José Afonso)

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Lembranças de agora de um cárcere privado, por Jean Fecaloma

Jean Fecaloma

Este sou eu, Jean Fecaloma. Há mais de um ano, estou vendo o sol nascer quadrado da janela do meu quarto. Minha rotina se resume em lavar batata, tomar banho de sol (para fotossintetizar vitamina D), lavar batata, traduzir um livro, lavar batata, assistir televisão, lavar batata e dormir. Até com personagens de novela tenho sonhado (assisto desde Malhação até a novela das nove), e pesadelos com o William Bonner são constantes. Ensaiei os passos de Jerusalema e até álcool gel em pão eu passei. Sou inocente. Fui condenado por um crime que não cometi. Os verdadeiros culpados são pessoas, empresas e governos inescrupulosos, que, interessados apenas em benefício próprio e no lucro pelo lucro, na riqueza sem limites, têm devastado o meio ambiente, ateado fogo em florestas e áreas de preservação, caçado animais selvagem, poluído rios e mares, saqueado minérios e minerais, roubado o que sobrou das terras indígenas, causado pandemias e destruído o planeta Terra. Toda a humanidade foi condenada pela ganância irresponsável de quem não respeita a vida nem o futuro. Até quando vamos aceitar?!!! (“Lembranças de agora de um cárcere privado”, Fecaloma).


quinta-feira, 1 de abril de 2021

A história da cachorra abandonada, Violeta

Violeta

As quatro estações do ano

Capa da história da cadelinha abandonada, Violeta

(baseado em fatos reais)

Por Nilza Monti Pires

O sol brilhava naquela manhã agradável de primavera, as nuvens brancas vagavam macias e leves no céu azul.

A beleza das flores dava o seu ar colorido, enfeitando a varanda da casa simples, onde vivia uma viúva e seus três filhos pequenos, no interior de São Paulo, lá pelos lados de Americana.

Era domingo, o dia amanhecia com um brilho intenso e dourado, a viúva, dona Norma, e seus três filhos, Hélio, Raquel e Felipe, estavam reunidos alegremente na pequena varanda que dava para a frente da rua.

A mãe, dona Norma, e os filhos na varanda.

O muro da varanda estava todo coberto por violetas, flores que ornamentavam todo o ambiente, dando uma sensação agradável e prazerosa, onde a família se reunia para conversar, trocar ideias e contar alguns causos. Ali, na varanda, era o lugar de lazer deles, nos domingos, pois não possuíam nenhum recurso financeiro.

Enquanto conversavam animadamente, ouviram um farfalhar de folhas no meio das violetas, um som confuso, despertando a curiosidade das três crianças que imediatamente foram ver o que era.

Surpresos encontraram um cachorrinho que mal tinha acabado de nascer.

Ilustração da cadelinha Violeta no meio a um coração de flores violetas.

- Mãe, olha o que nós encontramos, gritou Felipe.

- É uma cadelinha, respondeu Hélio.

- Que linda! exclamou Raquel.

- Nossa, coitadinha, deixaram aí, disse a mãe, espantada.

- Vamos ficar com ela, disse Raquel, por favor, mãe!

- Não temos condições, ela precisa de muitos cuidados.

- Nós vamos cuidar bem, deixa, mãe, ela é tão pequena, implorou Raquel.

- Veja! ela está com fome, falou Felipe, até está abrindo a boca.

O entusiasmo das crianças era tão grande que a mãe, dona Norma, não teve coragem de dizer não.

- Está bem, concordou.

- Obrigada, mamãe, por deixar a gente ficar com a cachorrinha.

E os três filhos correram para abraçar a mãe, de tanta felicidade.

As crianças estão felizes porque a mãe deixou elas ficarem com cachorra.

- Mãe, disse o Hélio, eu, o Felipe e a Raquel demos o nome de Violeta para ela. O que você acha?

- É um nome muito bonito, ela é tão graciosa como as flores da violeta.

E assim Violeta foi crescendo linda e formosa com seus longos pelos marrom claro e uma mancha de pelos brancos nas costas, que a deixava mais bonita. Era cuidada com todo carinho e amor, era a alegria da casa.

Passado um ano, Violeta estava bem crescida, forte e saudável.

Era primavera novamente, e a família estava reunida na varanda quando recebeu a visita do irmão da dona Norma, o tio Vidigal.

Apareceu num carro luxuoso, ostentando riqueza.

- Que surpresa, disse dona Norma, quanto tempo que não aparece!

- Faz muito tempo mesmo que eu não venho até aqui.

Mal cumprimentou os sobrinhos e foi logo falando para a mãe das crianças.

- Precisamos conversar a sós.

Dona Norma já ficou preocupada.

- Vim até aqui porque recebi várias reclamações sobre o cachorro, e eu sou o dono desta casa, e o meu bom nome não pode ser abalado, sou um homem muito rico e prestigiado e, além do mais, esse cachorro dá muitas despesas e você me paga muito pouco pelo aluguel, vou ter que levar o cão embora.

- Não, por favor, disse dona Norma, o que vou dizer aos meus filhos, eles adoram esse cãozinho.

- Não tem jeito, disse o tio Vidigal, que falou de maneira seca e ríspida, se você for ficar com o cachorro, procura outra casa para morar imediatamente.

Não adiantou nada a súplica de sua irmã, o tio Vidigal não deu a mínima importância para seus apelos, esperou as crianças dormirem, pegou a Violeta nos braços, para levá-la embora.

Tio Vidigal com Violeta nos braços.

A irmã suplicou mais uma vez:

- Por favor, não faça isso!

Mas foi tudo em vão. Despediu da irmã levando Violeta, e ao sair disse friamente:

- Se as crianças perguntarem pela cachorra, diga que ela fugiu.

E lá foi a Violeta para seu destino sem rumo.

A noite estava escura e com uma cerração muito forte, o carro em que estava Violeta ia muito rápido pela estrada, rodava, rodava, rodava muitos quilômetros e muitos quilômetros e cada vez mais Violeta ficava mais e mais longe de casa.

Já estava amanhecendo, ainda o carro rodava e em certo momento o carro parou, o tio Vidigal desceu do carro, pegou a Violeta e a deixou no meio da estrada, abandonando-a à sua própria sorte, numa paisagem inóspita e solitária.

Violeta sozinha e abandonada na estrada.

Violeta ainda correu atrás do carro, mas o carro avançou rapidamente, deixando a cachorrinha para trás.

A coitadinha andava de um lado para o outro, estava desorientada e assustada, e foi se esconder num matinho que ali havia por perto e de tanto medo dormiu.

Neste momento, lá na casa da viúva amanhecia. Violeta sempre acordava as crianças com suas lambidelas.

As crianças assim que acordaram sentiram falta da cadelinha e os três foram procurá-la.

- Mãe, onde está a Violeta?

- Procuramos por toda parte.

A mãe contou a verdade:

- Seu tio Vidigal levou a Violeta.

- Mas por quê? disse Hélio.

- Disse que recebeu muitas reclamações sobre a cachorra, e, além disso, que Violeta dá muita despesa, e que eu pago muito mal o aluguel da casa, e que ele é um homem muito importante, cheio de prestígio e de grande influência, e não podia ficar mal falado, e que era para eu escolher ficar com o cachorro ou procurar imediatamente outro lugar para morar. Na hora fiquei confusa, eu pedi tanto para ficar com a Violeta mas ele não me deu ouvidos.

- Tá certo mãe, você realmente não teve escolha, ele queria que saíssemos da casa, isso foi um pretexto, uma maldade.

- O seu tio Vidigal ficou muito obcecado por dinheiro, tornou-se arrogante, pretensioso, vaidoso demais, e foi inflexível aos meus pedidos.

- Falou pelo menos para onde ele levaria a Violeta? perguntou Raquel.

- Não me disse nada, saiu às pressas levando a cachorra.

As crianças ficaram muito tristes, deprimidas e magoadas com o tio.

As crianças choram porque o tio Vidigal levou Violeta embora.

Enquanto isso, a Violeta ficou encolhida o dia inteiro sem sair daquele lugar, cansada, choramingava bastante, temerosa, não saía daquele cantinho de jeito nenhum, e acabou dormindo novamente até o dia seguinte.

Acordou com muita fome, pois até aquele momento não tinha comido nada, resolveu sair para procurar comida, sem encontrar nada, e só comeu algumas plantinhas, só isso, não sabia procurar o que comer.

Violeta então começou a farejar, farejar, farejar, e voltou para estrada onde foi deixada e começou a correr, correr, correr, queria voltar para casa, mal podia imaginar que o percurso era longo e difícil.

Violeta correndo à procura de casa

Passado algum tempo, o verão estava começando muito quente, a alta temperatura ardia, um calor intenso, aquele perfume agradável da primavera desapareceu, mas Violeta não desistia, queria voltar para casa, e corria quilômetros e mais quilômetros, exausta, parou para descansar, comeu algumas cascas secas e sementes de fruta e por sorte veio a chuva de verão formando poças de água pelo chão, onde Violeta bebeu até se fartar. Foi um alívio.

Já estava anoitecendo, uma escuridão terrível, Violeta ainda estava molhada da chuva, sentia-se insegura, tinha medo e choramingava de tristeza e solidão, mas acabou dormindo.

Na manhã seguinte, ao caminhar encontrou casualmente uma casinha abandonada no meio do mato, se aproximou devagarinho, mas não tinha ninguém, encontrou alguns restos de comida, e comeu avidamente, e ficou satisfeita, sentindo-se mais forte, e logo saiu para continuar sua jornada.

Assim passaram os dias, sempre andando, andando, andando, até que em certo ponto se deparou com um rio fundo, com uma forte correnteza, que a assustava, pois a velocidade da água era muito rápida e forte.

Violeta então parou, ficou observando indecisa, receosa, andava pra lá e pra cá, mas a saudade das crianças e a vontade de voltar para a casa era tão grande que resolveu enfrentar assim mesmo. Pulou na água.

Violeta se atira no rio e luta contra a correnteza para chegar na outra margem do rio.

A correnteza era tão forte que arrastou Violeta com muita rapidez nas águas volumosas do rio, às vezes, ela sumia na água, outras vezes, rolava para cima e para baixo.

Mas logo adiante num trecho, o rio ficou surpreendentemente estreito e pouco profundo. A sorte da Violeta é que surgiu uma grande abertura num lugar onde as águas desaparecem, um sumidouro, e aí o acesso à margem ficou fácil, já que quase não tinha água, e Violeta saiu com tranquilidade, conseguindo se salvar.

Depois desse desafio, cansada, esgotada, foi dormir.

Lá pelos lados de Americana, na casa da viúva, conversam na varanda as crianças e a mãe: lamentavam a falta da Violeta.

- Que saudades da Violeta, disse Raquel que, ao lembrar, vinham lágrimas nos seus olhos.

- Eu também sinto falta dela, gostaria de saber se ela está bem e feliz, disse Felipe.

- Eu daria tudo para saber onde está Violeta, o tio Vidigal foi maldoso, tirou ela de nós, foi embora e nem deixou a gente se despedir, sem dizer aonde levaria a Violeta, disse Hélio, lamentando-se.

Conversa vai, conversa vem, o Hélio se lembrou de uma coisa e falou:

- Mãe, vai ter um concurso na escola e o prêmio vai ser em dinheiro, vou me inscrever.

 - Que ótimo, meu filho, sobre qual seria o assunto?

- Vou lá amanhã para saber mais detalhes.

Violeta dormia profundamente depois de passar por um grave perigo.

Passaram dois meses, Violeta sempre andando, às vezes corria pelas estradinhas sinuosas.

O tempo foi passando, até que começou a queda gradativa da temperatura e pelo amarelar das folhas em queda das árvores indicava o início do outono.

Enquanto Violeta andava, andava, andava, avistou uma cidadezinha, e viu vários cachorros derrubando uma lata de lixo de um restaurante e todos começaram a comer.

Violeta avista outros cães abandonados.

Violeta estava com muita fome, se aproximou para comer também, mas ela não era do grupo.

Assim que ela chegou mais perto, um dos cachorros avançou com muita fúria, mordendo a pobre Violeta.

Um outro cachorro que estava lá defendeu Violeta, atacando ferozmente o outro cão.

Os dois cães rosnam um para o outro.

Os dois cachorros então se atracaram, começaram a brigar, mas o defensor da Violeta saiu ganhando do briguento.

Violeta saiu correndo, desajeitada, grunhindo, e o cachorro que a salvou foi atrás dela para fazer amizade. Ele era tão abandonado quanto ela.

Violeta foi mordida só de raspão, se tornou amiga do cachorro que a livrou e a defendeu de tamanho perigo. Os dois partilhavam o mesmo sofrimento: eram sozinhos.

Violeta e seu novo amigo tentam voltar para casa.

Ficaram muito amigos, e o cachorro que vivia só a seguia pela estrada e a cada quilômetro percorrido Violeta se sentia mais e mais perto de sua casa.

Os dias foram passando mais suaves para Violeta, agora tinha um amigo, mas não desistiria de voltar para sua casa.

Sempre andando, andando, andando, com seu amigo, não podia parar, tinha que chegar a qualquer custo.

Os meses foram passando, começaram a cair pequenas gotinhas de garoa durante a madrugada, uma chuva muito miúda formava poças de água no caminho, a temperatura baixava, anunciando o início do inverno.

Violeta e seu amigo se protegem do frio.

Violeta continuava o seu caminho, sempre perseverante, mesmo com o frio intenso, agora se sentia mais fraca, não tinha muita comida e o inverno estava um dos piores dos últimos anos, de tanto frio.

Violeta não estava acostumada com tanto frio, já não corria tanto, se sentia cansada, debilitada.

Graças a seu amigo, que trazia a pouca comida que encontrava, e sempre a estimulava a prosseguir em sua jornada, Violeta não desistia, seguia sempre em frente.

No entanto, lá na casa da viúva, Hélio chegou feliz da vida e gritou:

- Mãe, ganhei o concurso, agora temos o dinheiro para comprar uma casa.

Todos pularam de alegria.

- Agora teremos nossa própria casa, disse Hélio.

Sentiram uma certa tristeza, justamente agora Violeta não estava lá.

- Parabéns, meu filho, disse dona Norma, estou muito orgulhosa.

Todos abraçaram Hélio, felizes e contentes.

- Vamos hoje mesmo à imobiliária, disse a mãe.

E aí saíram todos alegres.

Chegando na imobiliária, o vendedor mostrou todas as casas que estavam à venda e, para a surpresa de todos, inclusive a casa em que eles estavam morando, a casa do tio Vidigal.

A casa do tio Vidigal está à venda.

Não acreditaram que a casa estava à venda, ficaram admirados, por que será que o tio Vidigal não nos avisou?

- Vamos comprar essa casa, não precisamos nem mudar, disse Raquel para a mãe, nós gostamos tanto dessa casa!

Compraram a casa e saíram alegres e satisfeitos.

Certa manhã, Violeta acordou com o chilrear dos passarinhos, viu umas florzinhas brotando. Eram violetas!

Sentiu o perfume das flores, um aroma agradável, o sol brilhava, e Violeta lembrou de sua casa, das flores que cobriam toda a varanda. Principiava a primavera.

Os dois cães conseguem voltar para a cidade onde mora a família da dona Norma.

Violeta estava enfraquecida, abatida, faltavam-lhe forças, mas sentiu que estava perto de sua casa.

Mais que depressa acordou seu amigo, latiu, latiu, latiu, e começou a correr, mesmo cansada, corria sem parar. Uma força de ânimo inexplicável renovou suas energias.

Sentia o cheiro das violetas cada vez mais perto.

Num belo domingo, o sol brilhava naquela manhã agradável de primavera, nuvens brancas vagavam macias e leves no céu azul, a viúva e seus filhos conversavam na varanda coberta por violetas, lembrando-se de quando na mesma época, a dois anos atrás, acharam a cadelinha Violeta.

A mãe perguntou ao Hélio:

- Qual foi mesmo o assunto que fez você ganhar o prêmio?

Quando o Hélio ia falar, ouviram vários latidos, estranharam e foram ver.

- Vejam essa cachorra latindo e abanando o rabo para nós, até parece a Violeta, disse Felipe.

- É a violeta, disse Raquel entusiasmada.

- Mas ela é diferente, é escura e não tem a mancha branca, disse a mãe.

- É sujeira, disse Hélio, olha como ela está feliz, até está chorando, é a Violeta!

- Vejam, tem outro cachorro, disse Raquel, veio com ela.

Os dois cães encontram a casa da família da dona Norma.

Violeta latia, latia, latia, queria entrar mas não queria deixar seu amigo que a salvou de tantos perigos, ela ia até seu amigo e latia, latia, latia, e olhava para eles, e latia, latia, latia.

- O que estão esperando, disse a mãe, vão dar um banho neles.

E aí os três levaram os dois cachorros para casa alegremente.

- É Violeta, não falei, olha a mancha branca. Nossa, que alegria!

- Por onde teria andado nesse ano todo para estar tão suja e fraca?

Deram um banho também no outro cachorro e se surpreenderam com a beleza dele.

- Como podem abandonar um cachorro tão lindo, disse Raquel.

Que grande alívio, Violeta voltou para casa!

Num domingo, a família estava reunida ao lado dos dois cachorros quando de repente chega o tio Vidigal.

Tio Vidigal mal vestido.

Estava sem o carro e mal vestido, ao avistar a Violeta ficou surpreso e assustado.

Quando Violeta viu o tio Vidigal saiu correndo, chorando, e foi se esconder.

Surpresa de ver o irmão, a dona Norma falou:

- O que veio fazer por estas redondezas?

- Vendi a casa. Aí interrompeu bruscamente a conversa e por um instante ficou pensativo.

Dona Norma estranhou a atitude dele.

 O tio Vidigal estava aflito e perturbado e perguntou:

- A cachorra que saiu correndo quando me viu é a Violeta?

- Sim, ela mesma, chegou muito magra, fraca, suja de poeira, de lama, estava irreconhecível.

O tio Vidigal ficou atônito, nervoso e confuso, então disse:

- Não é possível, vocês estão me enganando, levei a cachorra para muitos quilômetros daqui, muito longe, impossível ela ter voltado, deixei a cachorra numa estrada deserta, estreita e distante, e fui embora.

- Ela apareceu aqui depois de um ano, ficamos muito surpresos, não esperávamos, disse dona Norma.

O tio Vidigal ficou agitado, inquieto, abalado e começou a chorar.

- Quero que vocês me perdoem, fui cruel, arrogante, traiçoeiro, por isso fui castigado, perdi todo o dinheiro que eu tinha, fiquei na miséria, depois do que eu fiz nunca fiquei em paz, o remorso me acompanhou, por favor, me perdoem por ter feito tamanha crueldade.

A viúva e as crianças ficaram perplexas, nunca imaginavam que o tio largaria a Violeta na estrada.

O tio Vidigal se despediu da família de cabeça baixa, humilhado, saiu às pressas desorientado, com a roupa gasta pelo uso e a pé, nem terminou de contar sobre a venda da casa.

A mãe e as crianças tentaram impedir que ele fosse embora, queriam explicar que tinham comprado a casa. Em vão. Tio Vidigal deu as costas e partiu.

Perdoamos, disse dona Norma, mas não teve jeito, a vergonha dele foi muito grande.

Tio Vidigal nunca pensou que eles iriam descobrir sua atitude tão vil.

Assim que o tio saiu, Violeta voltou do esconderijo e latiu, latiu, latiu.

- Ninguém vai levar mais você, Violeta, disse Raquel, dando um beijo na cachorra.

Violeta latiu novamente e foi fazer carinho em cada um, feliz, abanando o rabo, e foi até seu amigo que estava dormindo tranquilo.

Os dois cachorros descansam tranquilos em frente da casa da dona Norma e família.

Alegria voltou naquela casa.

- Meu filho, disse a mãe para o Helio, ainda você não falou sobre o assunto que fez você ganhar o prêmio.

- Era para fazer uma história para uma revista importante, muito famosa, e eu fiz a história da Violeta que acaba de ser contada. Eles adoraram e vão fazer até um filme.

Então Raquel perguntou:

- Como você fez a história da Violeta se ela não estava aqui e terminou a história com ela voltando para casa.

- Mesmo quando a Violeta estava fora, eu sempre tive a esperança de que um dia ela voltaria.

- Mas e o outro cachorro, disse Felipe, você adivinhou?

- Sempre quis ter dois cachorros e meu sonho se realizou.

Hélio narra todos os osbtáculos que foram superados por Violeta.

A família estava reunida sossegada na varanda toda florida, coberta por violetas, pois ainda era primavera.

Violeta estava muito feliz, olhou para eles, foi fazer carinho, latiu, latiu, latiu, abanando o rabo, latindo novamente como se dissesse:

- Voltei para casa.

E os dois cachorros ficaram com eles felizes para sempre.

- E foi assim que eu terminei a história da Violeta, que se passou lá pelos anos de 1950.

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Autora: Nilza Monti Pires

Revisão: Nilza, Paula Vanessa e Jean

Ilustrações: Sabrina Paloma, Annina Ramona e Paula Vanessa

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“Não existe cachorro de rua, existe cachorro abandonado. Se você não puder resgatar um animal (gato ou cachorro), ajude oferecendo água e comida e entre em contato com uma entidade amiga dos animais. Ajude um protetor, compartilhe postagens de animais perdidos ou para serem adotados. Denuncie maus tratos aos animais e, se puder, colabore com uma ONG. Faça a sua parte para minimizar o abandono de animais. Um pouco já é muito”. Recado da Paula Vanessa Pires de Azevedo Gonçalves, professora de história que ama os animais.

Violeta na estrada.

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