Pode se dizer que o disco
(CD) “Rebelião Adolescente” da banda Fecaloma é um marco na história do punk
nacional, já que foi o primeiro, com uma tiragem de mil cópias, a trazer estampado
o preço na capa – R$ 3,00 reais, o que equivalia, na época, a um dólar. Ademais,
no encarte, a banda inusitadamente fazia uma prestação de contas, discriminando
os custos de gravação, arte, prensagem etc., e que demonstrava o quanto era
barato a produção de um CD independente – que era vendido pelo preço de 10 a 20
reais. (Bandas do mainstream chegavam a vender por 40 reais ou mais).
Embora incomum no Brasil, a
prática surgiu nos anos 80 como uma reação à campanha antipirataria encampada
pela indústria fonográfica, que, àquela altura, mirava suas munições contra a
fita cassete, através da declaração de guerra: “A gravação caseira está
acabando com a música – e é ilegal”. Muitas bandas e fanzines parodiaram o
slogan. A banda anarcopunk holandesa The Ex acrescentou na advertência das
gravadoras o sugestivo: “já não era sem tempo!”. A versão em cassete do EP In
God We Trust, Inc, de 1981, do lendário Dead Kennedys, deixava virgem o lado B
da fita, que vinha com a seguinte inscrição: “A gravação caseira está acabando
com os lucros da indústria de discos!”, portanto, “deixamos um lado virgem para
você fazer a sua parte”. Estampas de camiseta da banda punk californiana Rocket
from the Crypt também alertavam, em tom sarcástico: “A gravação caseira está
acabando com a indústria musical – e daí?!!!”. Porém, ainda mais emblemático
foi o álbum Workers Playtime, de 1988, do compositor inglês de folk music e
punk rock, Billy Bragg, que, além da mensagem “o capitalismo está acabando com
a música”, fixava na capa o preço do disco em £ 4,99 e, logo abaixo, “não pague
mais”.
Curiosamente, a iniciativa
do Fecaloma não foi muito bem recebida na cena punk brasileira, sendo,
inclusive, objeto de crítica. Um país pobre como o Brasil, vai entender...
Em homenagem aos 20 anos do
lançamento do CD “Rebelião adolescente”, transcrevemos aqui integralmente o
texto impresso na sua contracapa:
Rebelião
adolescente
Não
fiz 18 anos, não sou maior de idade, não fiz 21 anos, não alcancei a maioridade
civil, deixem-me envelhecer dignamente. O que esperam de mim, que
arrume um emprego, que passe 10 horas numa firma, saia para almoçar num
restaurante self-service com um bando de chatos, entre numa faculdade, repita
como um papagaio estúpido palavras do tipo mercado de trabalho, campo profissional,
capacitação, (...), vista roupas sociais, beba cerveja com os amigos, fume um
baseado, comprei um carro, um celular, tenha no bolso mil cartões de créditos,
de banco, seguro de vida? Não mesmo! Não vou me corromper. Querem que eu faça
parte da Ordem, que renuncie
todas as minhas aspirações, esperanças, sonhos e utopias. Nunca! Não vou me
render, desistir dos planos de rebelião da minha adolescência. Odeio arrogância
do mundo adulto, a sua seriedade e má-fé. Odeio a frieza e a indiferença dos
adultos, seu calculismo e desrespeito. Onde está aquele mundo de fantasia que
me prometeram? Não existe. Só que eu acreditei. Por que me ocultar na verdade?
Quando eu era criança nem a verdade podia destruir a minha felicidade, então
porque não me disseram tudo? Não sou de guardar ressentimentos, mas não me
obriguem a fazer parte do sistema. A minha adolescência é eterna, e a essência da
minha revolta e crença na liberdade, a minha recusa ao mundo adulto. Conclamo a
todos os adolescentes, à rebelião! À rebelião!
Não tenho medo das
autoridades que me vigiam o tempo todo e me tratam como suspeito. Sou suspeito,
sim, sou inimigo da sociedade, que é conivente a toda injustiça e crimes
praticados pela ordem estabelecida. A hipocrisia das autoridades não me engana,
sou seu eterno inimigo. Estou armado com ideias mais explosivas que mil
dinamites juntas. Querem que eu faça 18 anos logo, para que assim eu possa
responder penalmente, e justificarem com o meu “consentimento” uma eventual
prisão. Mas não sou um criminoso comum, sou um revolucionário. Meu inimigo não
são as pessoas humildes, estes são os das autoridades; meu inimigo é a ordem.
Tenho espírito adolescente, a confusão não me é estranha, o tumulto é
divertido, a esperança é um sonho.À
rebelião, adolescentes! À rebelião!
Sou inconformado com este
mundo corrupto, se envelhecer é corromper-se, então eu não quero envelhecer.
Não vou fazer 21 anos, conquistar minha Independência civil e oficializar a
desonestidade. Jamais! Não quero sentir vergonha do passado, e quando eu
estiver maduro arrepender-me de qualquer ato de covardia. Sou um
revolucionário, não concordo com a indignidade e traição dos adultos que se
entregam sem a menor resistência ao sistema. Entregam-se ao mercado de
trabalho, ao campo profissional, à capacitação, à hipocrisia, sem sequer se
importarem com o destino sombrio das milhares de pessoas excluídas da ordem.
Não, sou um adolescente, detesto o trabalho como odeio a escola, amo a
liberdade como adoro o recreio. Quero viver no futuro próximo, no mundo
igualitário e livre, sem governo sem patrão. Conclamo à revolta, adolescentes!
À rebelião!
Mais raro do que um verdadeiro amor é a verdadeira
amizade. Durante nossas vidas, muitas pessoas se aproximam de nós, quase
sempre, movidas por algum interesse. Na maioria das vezes, isso não é ruim,
sendo, a bem dizer, muito natural. Interesses comuns unem as pessoas e podem
ser dos mais variados, desde o gosto por literatura até culinária, cinema,
música, esporte etc. As falsas amizades, no entanto, nascem de interesses
dissimétricos. Explico: quando alguém se aproxima de outro visando tirar algum
benefício ou alguma vantagem, geralmente, em torno do dinheiro. Distinguir os
falsos amigos dos verdadeiros nem sempre é tarefa fácil, portanto. Certo é que
o convívio acaba necessariamente por desmascarar as amizades interesseiras. Todavia,
a verdade é que, passando os anos, a maioria das amizades se desfaz e os amigos
de ocasião seguem caminhos distintos, tornando-se pessoas distantes e, às
vezes, até estranhas. Somente aquelas amizades que resistem ao tempo e à
distância são propriamente amizades autênticas. Se acabarem, é porque não eram
verdadeiras e decorriam de circunstância muito específica, em que a amizade
surgiu como uma consequência. Por outro lado, a amizade é a toda hora posta à
prova e a mais decisiva delas aparece nos momentos de dificuldade. É nas horas
difíceis que se descobrem os verdadeiros amigos e que eles, lamento dizer, não
são muitos – talvez, em alguns casos, sequer existem. Mas, como diria o famoso
orador romano Cícero, não se vive sem
amizade. Por isso, separei alguns fragmentos da obra de Cícero Da Amizade para ajudar-nos a descobrir,
como critério de qualidade, se a pessoa que se diz seu amigo ou sua amiga sente
de fato por você uma amizade sincera:
“Também apelo para a autoridade daquele que o
oráculo de Apolo tinha julgado como ‘o mais sábio’. Não um sábio que ora afirma
uma coisa, ora nega, como, aliás, é encontradiço, mas o sábio que sempre afirma
que as almas dos seres humanos são divinas e, quando deixam o corpo, caminham
de retorno para o céu, onde os melhores e os mais justos são, de imediato,
transferidos.
“Quem deposita na virtude o sumo bem, age, sim, de
modo dignificante, uma vez que é a virtude mesma a produzir e a conservar a
amizade, de modo que, sem virtude, não há como existir amizade.
“Graças à amizade, os ausentes tornam-se presentes,
os carentes ficam saciados, os fracos, fortalecidos.
“Não existe, com efeito, maior peste contra a
amizade do que a cobiça de riqueza que afeta a maioria das pessoas. Entre os
melhores explode a concorrência aos postos de honra e glória. Daí advém, entre
pessoas ligadas até por estreita amizade, irreconciliáveis desavenças.
“Por conseguinte, não há como escusar um crime pelo
fato de ter sido praticado em favor do amigo.
“Não devemos dar ouvidos àqueles que fazem da
virtude algo duro e férreo. Na verdade, ela é, em muitas situações, quer na
amizade, quer em muitas outras propriedades de caráter, tanto tenra quanto
flexível de modo a difundir doçura sobre os amigos, enquanto ameniza qualquer
mal-estar.
“Portanto, não é a amizade que acompanha a
utilidade e, sim, a utilidade que segue a amizade.
“Quem iria amar uma pessoa que inspira medo? Tais
indivíduos são respeitados de modo dissimulado, só por algum tempo. Se ocorre a
queda do poder deles, como de fato acontece, então fica visível como eram
vazios de amizade.
“Eis porque a verdadeira amizade, dificilmente, é
encontrada naqueles que vivem das honras dos cargos públicos. Onde, entre eles,
encontrar quem anteponha a honra do amigo à sua própria? Para omitir o mais,
apenas acrescento: como é penoso e difícil para a maioria, partilhar das
desgraças do amigo!
“Ainda que Ênio, com razão, editasse: ‘Conhece-se o
amigo certo nas horas incertas’.
“Na amizade, um dos aspectos mais relevantes é que
o maior iguala-se ao menor.
“Assim amam os amigos tal como gado, já que sempre
esperam tirar algum proveito. (Falsa amizade)
“Cada qual se ama a si mesmo não porque retira
disso algum preço e, sim, porque cada um em si é caro para si mesmo.
“Ambos esses vocábulos (amor e amizade) derivam de
‘amar’. Amar, outra coisa não é senão estimar a quem se quer bem, sem cálculo e
interesse ou de vantagem.
“A vantagem, mesmo que não a procures, ela aflora,
espontaneamente, da amizade.
“Como as coisas humanas são frágeis e caducas,
devemos, sempre buscar a quem amamos e que nos ame porque, tirando da vida o
afeto e a benevolência, a vida perde todo o seu encanto.”
(Cícero, Da
Amizade, tradução de Luiz Feracine, Editora Escala, 2006)
*****
Marco Túlio Cícero foi advogado, filósofo, orador,
retórico e político romano. Apesar da origem plebeia, da gens Túlia, sua família
era rica. Cícero fez fortuna ao defender numerosas causas que lhe deram prestígio
e o conduziram a altos cargos na República Romana. No ano de 76 a.C., foi
questor na Cicília; pretor, em 66; e cônsul em 62. Tornaram-se célebres seus
discursos, denominados Catilinárias, contra a conspiração tramada pelo senador Lúcio
Sérgio Catilina. Durante a guerra civil, entre os anos de 51 e 50, foi
governador da Cicília, tornando-se apoiador de Cneu Pompeu Magno, adversário de
Caio Júlio César. Após o atentado contra a vida de César, as desavenças com Marco
Antônio, partidário daquele, levaram ao assassinato de Cícero em Fórmica. Merecem
menção, entre outras, as suas obras “Do orador”, “Da República”, “Das Leis”, “Dos
deveres”, “Controvérsias Tusculanas”, “Sobre a Natureza dos Deuses”, “Da
Velhice”, “Da Adivinhação”, “Cartas” e “Da Amizade”.
Ike Turner nasceu em uma
família pobre e religiosa, na cidade Clarksdale, Mississippi, em 5 de novembro
de 1931. O racismo característico dos estados sulistas dos EUA propiciou um
acontecimento trágico em sua vida: seu pai foi espancado até a morte por uma
multidão de pessoas brancas.
Ike e Tina Turner
Apesar dos infortúnios da
condição de afrodescendente em uma sociedade conservadora e preconceituosa, ainda
criança revelou um talento excepcional para música, que lhe rendeu um emprego
de DJ numa rádio local. O garoto havia aprendido a tocar piano com o mestre do
boogie-woogie, Pinetop Perkins, e foi um autodidata com a guitarra, tornando-se
virtuose com o instrumento.
Na adolescência, montou a
sua própria banda, The Rhythm Kings, que o acompanhou por toda a sua carreira.
Em 1951, gravou “Rocket 88”, canção creditada a Jackie Brenston and His Delta
Cats e considerada o primeiro registro da história no gênero rock’n’roll.
Ike também trabalhou como caça-talentos.
Ajudou a “descobrir” astros da grandeza de BB King, Bobby “Blue” Bland, Roscoe
Gordon e Little Milton.
Antes mesmo de completar 25
anos, Ike chegou a se casar oito vezes, ou talvez mais. Quando Anna Mae Bullock,
sua terceira esposa e mais conhecida como Tina Turner, entrou para a banda e
assumiu o piano, Ike foi tocar guitarra, desenvolvendo um estilo próprio e
potente. Jimi Hendrix chegou a dizer que Ike era o melhor guitarrista de rhythm
and blues de todos os tempos.
Ike cruzou o país, fazendo
shows com sua banda. Ele se recusava a se apresentar para públicos segregados,
como era costume naquele tempo, e exigia, mesmo no sul, que o público fosse
misturado.
Mais tarde, Tina se
divorciou de Ike alegando que sofria espancamento e que o marido, além de
viciado em cocaína, era infiel no casamento. Mas, em que pese o insucesso no
casamento, Ike e Tina Turner foram incluídos no Rock and Roll Hall of Fame, em
1991.
A Revolução dos Cravos ou Revolução de 25 de Abril foi um movimento
militar ocorrido em 1974, que surgiu no contexto das guerras coloniais que
Portugal mantinha na África desde o início dos anos 60. O movimento, que
transcorreu praticamente sem violência, derrubou o regime ditatorial do Estado
Novo, instaurado por Antônio Salazar e continuado por Marcelo Caetano. A
revolução teve como protagonistas jovens oficiais, os chamados "capitães
de abril", que foram veteranos das campanhas na África. Durante os
acontecimentos, os soldados recebiam, como sinal de apoio, cravos vermelhos da
população. Segue trecho da obra de Saramago Levantado do chão: romanceque descreve o Primeiro de Maio durante a revolução e o poema de José Afonso Grândola, Vila Morena:
*****
Em Abril, falas mil. Nos
campos há grandes ajuntamentos noturnos, os homens mal veem as caras uns dos
outros, mas ouvem-se-lhes as vozes, abafadas se o local não é de suficiente segurança,
ou mais soltas e claras em deserto, em todos os casos com a proteção de vigias,
dispostos segundo a arte estratégica da prevenção, como quem defende um
acampamento. É, deste lado, uma guerra pacífica. Se pelo escuro da noite a
guarda se aproxima, e agora já não é a simples patrulha de dois homens dos
tempos correntes, vêm às dúzias e meias dúzias, e até onde os carreteiros
chegam transportam-se em jipe e jipão, se vindo assim se aproximam, depois em linha,
como quem levanta caça, recuam as sentinelas a avisar, e então de duas uma,
consoante, ou a guarda vai passar de largo e o silêncio é a melhor defesa,
todos os homens, sentados ou de pé, seguram a respiração e os pensamentos, são
direitas pedras, antas doutro tempo, ou a guarda vem mesmo ao direito da
reunião e a ordem é dispersar por caminhos de mau piso, por enquanto ainda a
guarda não tem cães, é o que vale. Na noite seguinte prosseguirá a conversa no
ponto em que foi deixada, naquele mesmo lugar ou noutro, que esta paciência é
infinita. E quando é possível encontram-se de dia, em grupos mais pequenos, ou
vão pelas casas, conversa de ao pé do lume, enquanto as mulheres lavam a louça
caladas e as crianças adormecem pelos cantos. E estando no eito um homem ao pé
doutro homem, a palavra dita e ouvida é como o bater do maço da cabrilha na
estaca, mais funda um pouco, e na hora de comer, com a panelinha ou a marmita
pousadas no chão, entre as pernas, enquanto a colher sobe e desce e a aragem
fria vai arrefecendo o corpo, tornam as palavras ao de cima, é um falar pausado
que diz, Vamos para as oito horas, basta de trabalhar de sol a sol, e então os
prudentes temem-se do futuro, Que será de nós se os patrões não quiserem dar
trabalho, mas as mulheres que estão a lavar a loiça da ceia, enquanto o lume
arde, têm vergonha de que tão prudente o seu homem seja e estão de acordo com o
amigo que lhes bateu à porta para dizer, Vamos para as oito horas, basta de
trabalhar de sol a sol, porque também elas assim trabalham, e mais ainda,
doridas, menstruadas, pejadas da barriga à boca, ou, quando já não, com os
seios a derramar o leite que devia ter sido mamado, é uma sorte, não se lhes
secou, muito se engana pois quem julgue que basta levantar uma bandeira e
dizer, Vamos. É preciso que Abril seja um mês de palavras mil, porque mesmo os
certos e convencidos têm seus momentos de dúvida, suas agonias e desânimos, lá
está a guarda, lá estão os dragões da pide, e a negra sombra que alastra pelo
latifúndio, que nunca o abandona, não há trabalho, e vamos nós, por nossas
mãos, acordar a besta que dorme, sacudi-la e dizer, Amanhã, só trabalharei oito
horas, isto não é o primeiro de Maio, o primeiro de Maio é o menos, ninguém
pode obrigar-me a ir trabalhar, mas se eu disser, Oito horas, só isto e nada
mais, é como açular o cão raivoso. E o amigo diz, aqui sentado no cortiço, ou
ao meu lado no eito, ou no meio de uma noite tão escura que nem posso ver-lhe a
cara, Não se trata só das oito horas, vamos também reclamar quarenta escudos de
salário, se não quisermos morrer de canseira e de fome, são boas coisas de
pedir e de fazer, o difícil é tê-las. O que vale é que sendo as falas muitas,
muitas são as vozes, e do ajuntamento levanta-se uma, não é simples modo de
dizer, é verdade, há vozes que se põem de pé, Que vida tem sido a nossa, em
dois anos morreram-me dois filhos da doença da fome, e aquele que me resta,
irei criá-lo para besta de carga, respondam-me, se nem eu quero continuar a ser
a besta de carga que sou, são palavras que ferem os ouvidos delicados, mas aqui
não os há, ainda que ninguém, deste ajuntamento, goste de olhar para o espelho
e ver-se metido em varais de carroça ou com albarda e cangas, É assim desde que
nascemos.
(...)
E então começa-se a falar no
primeiro de Maio, é uma conversa que todos os anos se repete, mas agora é um
alvoroço público, lembrar-se a gente de que ainda o ano passado andava a
esconder-se por aí, para combinar, organizar, era preciso voltar constantemente
ao princípio, ligar os de confiança, animar os indecisos, tranquilizar os
temerosos, e mesmo agora ainda há quem não acredite que a festa do primeiro de
Maio possa ser às claras como dizem os jornais, quando a esmola é grande, o
pobre desconfia. Não é esmola nenhuma, declaram Sigismundo Canastro e Manuel
Espada, desdobra-se um jornal de Lisboa, Está aqui escrito que o primeiro de
Maio será festejado livremente, e dia feriado em todo o país, E então a guarda,
insistem os de boa memória, A guarda desta vez fica a ver-nos passar, quem
havia de dizer que uma coisa assim nos viria a acontecer um dia, a guarda
quieta e calada enquanto tu gritas viva o primeiro de Maio.
E como por cima daquilo que
nos permitem temos sempre de pôr o que imaginamos, ou então não somos homens
merecedores de pão cozido, principiou a dizer-se que toda a gente devia
estender colchas à janela e pôr flores, como se fosse dia de sair o Senhor dos
Passos à praça, com um pouco mais se varriam as ruas e embarracavam as casas,
tão fáceis são de subir as escadas do contentamento. Porém, assim são os dramas
humanos, exagero foi chamar-lhes dramas, mas sem dúvida são perplexidades,
agora que vou eu fazer se em minha casa não há colchas nem tenho jardins de
cravos e rosas, quem terá sido o da ideia. Tem Maria Adelaide parte nesta
ansiedade, mas sendo nova e esperançosa diz à mãe que não poderão ficar em
pouco, que não havendo colcha fará uma toalha as vezes dela, branquíssimo pano
suspenso do postigo da porta, bandeira de paz no latifúndio, homem civil que
ali passasse haveria de descobrir-se com respeito, e sendo guarda ou militar em
sentido e continência prestar homenagem diante da porta de Manuel Espada, trabalhador
e bom homem. E não sejam as flores vosso cuidado, senhora mãe, que à fonte do
Amieiro irei colher das silvestres que neste tempo de Maio cobrem os vales e as
colinas, e estando as laranjeiras floridas ramos dela trarei e assim nosso
postigo será janela enfeitada como varanda de alcácer, menos do que os outros
não seremos, porque somos tanto.
(José
Saramago. Trecho de “Levantado do chão: romance”)
Este sou eu, Jean Fecaloma.
Há mais de um ano, estou vendo o sol nascer quadrado da janela do meu quarto.
Minha rotina se resume em lavar batata, tomar banho de sol (para
fotossintetizar vitamina D), lavar batata, traduzir um livro, lavar batata,
assistir televisão, lavar batata e dormir. Até com personagens de novela tenho
sonhado (assisto desde Malhação até a novela das nove), e pesadelos com o
William Bonner são constantes. Ensaiei os passos de Jerusalema e até álcool gel
em pão eu passei. Sou inocente. Fui condenado por um crime que não cometi. Os
verdadeiros culpados são pessoas, empresas e governos inescrupulosos, que,
interessados apenas em benefício próprio e no lucro pelo lucro, na riqueza sem
limites, têm devastado o meio ambiente, ateado fogo em florestas e áreas de
preservação, caçado animais selvagem, poluído rios e mares, saqueado minérios e
minerais, roubado o que sobrou das terras indígenas, causado pandemias e
destruído o planeta Terra. Toda a humanidade foi condenada pela ganância
irresponsável de quem não respeita a vida nem o futuro. Até quando vamos
aceitar?!!! (“Lembranças de agora de um cárcere privado”, Fecaloma).
O sol brilhava naquela manhã
agradável de primavera, as nuvens brancas vagavam macias e leves no céu azul.
A beleza das flores dava o
seu ar colorido, enfeitando a varanda da casa simples, onde vivia uma viúva e
seus três filhos pequenos, no interior de São Paulo, lá pelos lados de
Americana.
Era domingo, o dia amanhecia
com um brilho intenso e dourado, a viúva, dona Norma, e seus três filhos,
Hélio, Raquel e Felipe, estavam reunidos alegremente na pequena varanda que
dava para a frente da rua.
O muro da varanda estava
todo coberto por violetas, flores que ornamentavam todo o ambiente, dando uma
sensação agradável e prazerosa, onde a família se reunia para conversar, trocar
ideias e contar alguns causos. Ali, na varanda, era o lugar de lazer
deles, nos domingos, pois não possuíam nenhum recurso financeiro.
Enquanto conversavam
animadamente, ouviram um farfalhar de folhas no meio das violetas, um som
confuso, despertando a curiosidade das três crianças que imediatamente foram
ver o que era.
Surpresos encontraram um
cachorrinho que mal tinha acabado de nascer.
- Mãe, olha o que nós
encontramos, gritou Felipe.
- É uma cadelinha, respondeu
Hélio.
- Que linda! exclamou
Raquel.
- Nossa, coitadinha,
deixaram aí, disse a mãe, espantada.
- Vamos ficar com ela, disse
Raquel, por favor, mãe!
- Não temos condições, ela
precisa de muitos cuidados.
- Nós vamos cuidar bem,
deixa, mãe, ela é tão pequena, implorou Raquel.
- Veja! ela está com fome,
falou Felipe, até está abrindo a boca.
O entusiasmo das crianças
era tão grande que a mãe, dona Norma, não teve coragem de dizer não.
- Está bem, concordou.
- Obrigada, mamãe, por
deixar a gente ficar com a cachorrinha.
E os três filhos correram
para abraçar a mãe, de tanta felicidade.
- Mãe, disse o Hélio, eu, o
Felipe e a Raquel demos o nome de Violeta para ela. O que você acha?
- É um nome muito bonito,
ela é tão graciosa como as flores da violeta.
E assim Violeta foi
crescendo linda e formosa com seus longos pelos marrom claro e uma mancha de
pelos brancos nas costas, que a deixava mais bonita. Era cuidada com todo
carinho e amor, era a alegria da casa.
Passado um ano, Violeta
estava bem crescida, forte e saudável.
Era primavera novamente, e a
família estava reunida na varanda quando recebeu a visita do irmão da dona
Norma, o tio Vidigal.
Apareceu num carro luxuoso,
ostentando riqueza.
- Que surpresa, disse dona
Norma, quanto tempo que não aparece!
- Faz muito tempo mesmo que
eu não venho até aqui.
Mal cumprimentou os sobrinhos
e foi logo falando para a mãe das crianças.
- Precisamos conversar a
sós.
Dona Norma já ficou
preocupada.
- Vim até aqui porque recebi
várias reclamações sobre o cachorro, e eu sou o dono desta casa, e o meu bom
nome não pode ser abalado, sou um homem muito rico e prestigiado e, além do mais, esse cachorro dá muitas despesas e você me paga muito pouco pelo aluguel, vou
ter que levar o cão embora.
- Não, por favor, disse dona
Norma, o que vou dizer aos meus filhos, eles adoram esse cãozinho.
- Não tem jeito, disse o tio
Vidigal, que falou de maneira seca e ríspida, se você for ficar com o cachorro,
procura outra casa para morar imediatamente.
Não adiantou nada a súplica
de sua irmã, o tio Vidigal não deu a mínima importância para seus apelos, esperou as crianças
dormirem, pegou a Violeta nos braços, para levá-la embora.
A irmã suplicou mais uma
vez:
- Por favor, não faça isso!
Mas foi tudo em vão. Despediu
da irmã levando Violeta, e ao sair disse friamente:
- Se as crianças perguntarem
pela cachorra, diga que ela fugiu.
E lá foi a Violeta para seu
destino sem rumo.
A noite estava escura e com
uma cerração muito forte, o carro em que estava Violeta ia muito rápido pela
estrada, rodava, rodava, rodava muitos quilômetros e muitos quilômetros e cada
vez mais Violeta ficava mais e mais longe de casa.
Já estava amanhecendo, ainda
o carro rodava e em certo momento o carro parou, o tio Vidigal desceu do carro,
pegou a Violeta e a deixou no meio da estrada, abandonando-a à sua própria
sorte, numa paisagem inóspita e solitária.
Violeta ainda correu atrás
do carro, mas o carro avançou rapidamente, deixando a cachorrinha para trás.
A coitadinha andava de um lado
para o outro, estava desorientada e assustada, e foi se esconder num matinho
que ali havia por perto e de tanto medo dormiu.
Neste momento, lá na casa da
viúva amanhecia. Violeta sempre acordava as crianças com suas lambidelas.
As crianças assim que acordaram
sentiram falta da cadelinha e os três foram procurá-la.
- Mãe, onde está a Violeta?
- Procuramos por toda parte.
A mãe contou a verdade:
- Seu tio Vidigal levou a Violeta.
- Mas por quê? disse Hélio.
- Disse que recebeu muitas
reclamações sobre a cachorra, e, além disso, que Violeta dá muita despesa, e
que eu pago muito mal o aluguel da casa, e que ele é um homem muito importante,
cheio de prestígio e de grande influência, e não podia ficar mal falado, e que
era para eu escolher ficar com o cachorro ou procurar imediatamente outro lugar
para morar. Na hora fiquei confusa, eu pedi tanto para ficar com a Violeta mas
ele não me deu ouvidos.
- Tá certo mãe, você
realmente não teve escolha, ele queria que saíssemos da casa, isso foi um
pretexto, uma maldade.
- O seu tio Vidigal ficou muito obcecado por dinheiro, tornou-se arrogante, pretensioso, vaidoso demais, e
foi inflexível aos meus pedidos.
- Falou pelo menos para onde
ele levaria a Violeta? perguntou Raquel.
- Não me disse nada, saiu às
pressas levando a cachorra.
As crianças ficaram muito
tristes, deprimidas e magoadas com o tio.
Enquanto isso, a Violeta
ficou encolhida o dia inteiro sem sair daquele lugar, cansada, choramingava
bastante, temerosa, não saía daquele cantinho de jeito nenhum, e acabou dormindo
novamente até o dia seguinte.
Acordou com muita fome, pois
até aquele momento não tinha comido nada, resolveu sair para procurar comida, sem encontrar nada, e
só comeu algumas plantinhas, só isso, não sabia procurar o que comer.
Violeta então começou a
farejar, farejar, farejar, e voltou para estrada onde foi deixada e começou a
correr, correr, correr, queria voltar para casa, mal podia imaginar que o
percurso era longo e difícil.
Passado algum tempo, o verão
estava começando muito quente, a alta temperatura ardia, um calor intenso,
aquele perfume agradável da primavera desapareceu, mas Violeta não desistia,
queria voltar para casa, e corria quilômetros e mais quilômetros, exausta, parou
para descansar, comeu algumas cascas secas e sementes de fruta e por sorte veio
a chuva de verão formando poças de água pelo chão, onde Violeta bebeu até se fartar. Foi um
alívio.
Já estava anoitecendo, uma
escuridão terrível, Violeta ainda estava molhada da chuva, sentia-se insegura,
tinha medo e choramingava de tristeza e solidão, mas acabou dormindo.
Na manhã seguinte, ao
caminhar encontrou casualmente uma casinha abandonada no meio do mato, se
aproximou devagarinho, mas não tinha ninguém, encontrou alguns restos de
comida, e comeu avidamente, e ficou satisfeita, sentindo-se mais forte, e logo saiu
para continuar sua jornada.
Assim passaram os dias,
sempre andando, andando, andando, até que em certo ponto se deparou com um rio
fundo, com uma forte correnteza, que a assustava, pois a velocidade da água era
muito rápida e forte.
Violeta então parou, ficou
observando indecisa, receosa, andava pra lá e pra cá, mas a saudade das
crianças e a vontade de voltar para a casa era tão grande que resolveu enfrentar
assim mesmo. Pulou na água.
A correnteza era tão forte
que arrastou Violeta com muita rapidez nas águas volumosas do rio, às vezes, ela
sumia na água, outras vezes, rolava para cima e para baixo.
Mas logo adiante num trecho,
o rio ficou surpreendentemente estreito e pouco profundo. A sorte da Violeta é
que surgiu uma grande abertura num lugar onde as águas desaparecem, um
sumidouro, e aí o acesso à margem ficou fácil, já que quase não tinha água, e Violeta
saiu com tranquilidade, conseguindo se salvar.
Depois desse desafio,
cansada, esgotada, foi dormir.
Lá pelos lados de Americana,
na casa da viúva, conversam na varanda as crianças e a mãe: lamentavam a falta
da Violeta.
- Que saudades da Violeta,
disse Raquel que, ao lembrar, vinham lágrimas nos seus olhos.
- Eu também sinto falta dela,
gostaria de saber se ela está bem e feliz, disse Felipe.
- Eu daria tudo para saber
onde está Violeta, o tio Vidigal foi maldoso, tirou ela de nós, foi embora e
nem deixou a gente se despedir, sem dizer aonde levaria a Violeta, disse Hélio,
lamentando-se.
Conversa vai, conversa vem,
o Hélio se lembrou de uma coisa e falou:
- Mãe, vai ter um concurso
na escola e o prêmio vai ser em dinheiro, vou me inscrever.
- Que ótimo, meu filho, sobre qual seria o assunto?
- Vou lá amanhã para saber
mais detalhes.
Violeta dormia profundamente
depois de passar por um grave perigo.
Passaram dois meses, Violeta
sempre andando, às vezes corria pelas estradinhas sinuosas.
O tempo foi passando, até
que começou a queda gradativa da temperatura e pelo amarelar das folhas em
queda das árvores indicava o início do outono.
Enquanto Violeta andava, andava,
andava, avistou uma cidadezinha, e viu vários cachorros derrubando uma lata de
lixo de um restaurante e todos começaram a comer.
Violeta estava com muita
fome, se aproximou para comer também, mas ela não era do grupo.
Assim que ela chegou mais
perto, um dos cachorros avançou com muita fúria, mordendo a pobre Violeta.
Um outro cachorro que estava lá
defendeu Violeta, atacando ferozmente o outro cão.
Os dois cachorros então se
atracaram, começaram a brigar, mas o defensor da Violeta saiu ganhando do
briguento.
Violeta saiu correndo,
desajeitada, grunhindo, e o cachorro que a salvou foi atrás dela para fazer
amizade. Ele era tão abandonado quanto ela.
Violeta foi mordida só de
raspão, se tornou amiga do cachorro que a livrou e a defendeu de tamanho
perigo. Os dois partilhavam o mesmo sofrimento: eram sozinhos.
Ficaram muito amigos, e o
cachorro que vivia só a seguia pela estrada e a cada quilômetro percorrido
Violeta se sentia mais e mais perto de sua casa.
Os dias foram passando mais
suaves para Violeta, agora tinha um amigo, mas não desistiria de voltar para
sua casa.
Sempre andando, andando,
andando, com seu amigo, não podia parar, tinha que chegar a qualquer custo.
Os meses foram passando,
começaram a cair pequenas gotinhas de garoa durante a madrugada, uma chuva
muito miúda formava poças de água no caminho, a temperatura baixava, anunciando o
início do inverno.
Violeta continuava o seu
caminho, sempre perseverante, mesmo com o frio intenso, agora se sentia mais
fraca, não tinha muita comida e o inverno estava um dos piores dos últimos
anos, de tanto frio.
Violeta não estava
acostumada com tanto frio, já não corria tanto, se sentia cansada, debilitada.
Graças a seu amigo, que
trazia a pouca comida que encontrava, e sempre a estimulava a prosseguir em sua
jornada, Violeta não desistia, seguia sempre em frente.
No entanto, lá na casa da
viúva, Hélio chegou feliz da vida e gritou:
- Mãe, ganhei o concurso,
agora temos o dinheiro para comprar uma casa.
Todos pularam de alegria.
- Agora teremos nossa
própria casa, disse Hélio.
Sentiram uma certa tristeza,
justamente agora Violeta não estava lá.
- Parabéns, meu filho, disse dona Norma, estou muito orgulhosa.
Todos abraçaram Hélio,
felizes e contentes.
- Vamos hoje mesmo à
imobiliária, disse a mãe.
E aí saíram todos alegres.
Chegando na imobiliária, o
vendedor mostrou todas as casas que estavam à venda e, para a surpresa de
todos, inclusive a casa em que eles estavam morando, a casa do tio Vidigal.
Não acreditaram que a casa
estava à venda, ficaram admirados, por que será que o tio Vidigal não nos
avisou?
- Vamos comprar essa casa,
não precisamos nem mudar, disse Raquel para a mãe, nós gostamos tanto dessa
casa!
Compraram a casa e saíram
alegres e satisfeitos.
Certa manhã, Violeta acordou
com o chilrear dos passarinhos, viu umas florzinhas brotando. Eram violetas!
Sentiu o perfume das flores,
um aroma agradável, o sol brilhava, e Violeta lembrou de sua casa, das flores
que cobriam toda a varanda. Principiava a primavera.
Violeta estava enfraquecida,
abatida, faltavam-lhe forças, mas sentiu que estava perto de sua casa.
Mais que depressa acordou
seu amigo, latiu, latiu, latiu, e começou a correr, mesmo cansada, corria sem
parar. Uma força de ânimo inexplicável renovou suas energias.
Sentia o cheiro das violetas
cada vez mais perto.
Num belo domingo, o sol
brilhava naquela manhã agradável de primavera, nuvens brancas vagavam macias e
leves no céu azul, a viúva e seus filhos conversavam na varanda coberta por
violetas, lembrando-se de quando na mesma época, a dois anos atrás, acharam a
cadelinha Violeta.
A mãe perguntou ao Hélio:
- Qual foi mesmo o assunto
que fez você ganhar o prêmio?
Quando o Hélio ia falar,
ouviram vários latidos, estranharam e foram ver.
- Vejam essa cachorra
latindo e abanando o rabo para nós, até parece a Violeta, disse Felipe.
- É a violeta, disse Raquel entusiasmada.
- Mas ela é diferente, é
escura e não tem a mancha branca, disse a mãe.
- É sujeira, disse Hélio,
olha como ela está feliz, até está chorando, é a Violeta!
- Vejam, tem outro cachorro,
disse Raquel, veio com ela.
Violeta latia, latia, latia,
queria entrar mas não queria deixar seu amigo que a salvou de tantos perigos,
ela ia até seu amigo e latia, latia, latia, e olhava para eles, e latia, latia,
latia.
- O que estão esperando,
disse a mãe, vão dar um banho neles.
E aí os três levaram os dois
cachorros para casa alegremente.
- É Violeta, não falei, olha
a mancha branca. Nossa, que alegria!
- Por onde teria andado nesse ano todo para estar tão suja e fraca?
Deram um banho também no outro
cachorro e se surpreenderam com a beleza dele.
- Como podem abandonar um cachorro
tão lindo, disse Raquel.
Que grande alívio, Violeta
voltou para casa!
Num domingo, a família
estava reunida ao lado dos dois cachorros quando de repente chega o tio Vidigal.
Estava sem o carro e mal
vestido, ao avistar a Violeta ficou surpreso e assustado.
Quando Violeta viu o tio
Vidigal saiu correndo, chorando, e foi se esconder.
Surpresa de ver o irmão, a dona
Norma falou:
- O que veio fazer por estas
redondezas?
- Vendi a casa. Aí interrompeu
bruscamente a conversa e por um instante ficou pensativo.
Dona Norma estranhou a
atitude dele.
O tio Vidigal estava aflito e perturbado e
perguntou:
- A cachorra que saiu correndo
quando me viu é a Violeta?
- Sim, ela mesma, chegou muito
magra, fraca, suja de poeira, de lama, estava irreconhecível.
O tio Vidigal ficou atônito,
nervoso e confuso, então disse:
- Não é possível, vocês
estão me enganando, levei a cachorra para muitos quilômetros daqui, muito longe,
impossível ela ter voltado, deixei a cachorra numa estrada deserta, estreita e
distante, e fui embora.
- Ela apareceu aqui depois
de um ano, ficamos muito surpresos, não esperávamos, disse dona Norma.
O tio Vidigal ficou agitado,
inquieto, abalado e começou a chorar.
- Quero que vocês me
perdoem, fui cruel, arrogante, traiçoeiro, por isso fui castigado, perdi todo o
dinheiro que eu tinha, fiquei na miséria, depois do que eu fiz nunca fiquei em
paz, o remorso me acompanhou, por favor, me perdoem por ter feito tamanha
crueldade.
A viúva e as crianças
ficaram perplexas, nunca imaginavam que o tio largaria a Violeta na estrada.
O tio Vidigal se despediu da
família de cabeça baixa, humilhado, saiu às pressas desorientado, com a roupa
gasta pelo uso e a pé, nem terminou de contar sobre a venda da casa.
A mãe e as crianças tentaram
impedir que ele fosse embora, queriam explicar que tinham comprado a casa. Em
vão. Tio Vidigal deu as costas e partiu.
Perdoamos, disse dona Norma,
mas não teve jeito, a vergonha dele foi muito grande.
Tio Vidigal nunca pensou que
eles iriam descobrir sua atitude tão vil.
Assim que o tio saiu,
Violeta voltou do esconderijo e latiu, latiu, latiu.
- Ninguém vai levar mais
você, Violeta, disse Raquel, dando um beijo na cachorra.
Violeta latiu novamente e
foi fazer carinho em cada um, feliz, abanando o rabo, e foi até seu amigo que
estava dormindo tranquilo.
Alegria voltou naquela casa.
- Meu filho, disse a mãe
para o Helio, ainda você não falou sobre o assunto que fez você ganhar o
prêmio.
- Era para fazer uma
história para uma revista importante, muito famosa, e eu fiz a história da
Violeta que acaba de ser contada. Eles adoraram e vão fazer até um filme.
Então Raquel perguntou:
- Como você fez a história da
Violeta se ela não estava aqui e terminou a história com ela voltando para
casa.
- Mesmo quando a Violeta
estava fora, eu sempre tive a esperança de que um dia ela voltaria.
- Mas e o outro cachorro, disse
Felipe, você adivinhou?
- Sempre quis ter dois
cachorros e meu sonho se realizou.
A família estava reunida
sossegada na varanda toda florida, coberta por violetas, pois ainda era
primavera.
Violeta estava muito feliz,
olhou para eles, foi fazer carinho, latiu, latiu, latiu, abanando o rabo, latindo
novamente como se dissesse:
- Voltei para casa.
E os dois cachorros ficaram com eles felizes para sempre.
- E foi assim que eu terminei
a história da Violeta, que se passou lá pelos anos de 1950.
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Autora: Nilza Monti Pires
Revisão: Nilza, Paula
Vanessa e Jean
Ilustrações: Sabrina Paloma,
Annina Ramona e Paula Vanessa
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Denuncie maus tratos aos animais e, se puder, colabore com uma ONG. Faça a sua parte para
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de Azevedo Gonçalves, professora de história que ama os animais.