segunda-feira, 3 de julho de 2017

Schopenhauer por Thomas Mann - parte (1)


Arthur Schopenhauer foi um filósofo romântico da primeira metade do século XIX, autor de Mundo como Vontade e Representação (1818) e Parerga e Paralipomena (1851), entre outros. Discípulo de Kant, para Schopenhauer o mundo é representação, isto é, apreensão subjetiva do objeto que pode ser intuitiva, conceitual e ideal; mas discorda do mestre quanto a incognoscibilidade da coisa-em-si, que pode ser intuída e conhecida como Vontade, princípio irracional e metafísico fundamental da realidade que aparece sob a forma de fenômenos que não são mais do que ilusões da consciência (transvestida por uma racionalidade). A Vontade, cega e irracional, não tem qualquer finalidade, sendo motivo de grande sofrimento, pois jamais poder satisfazer seu apetite voraz de querer-viver. Influenciado pela filosofia oriental, Schopenhauer aceita o princípio budista de que tudo neste mundo de aparência é dor e que só pode ser mitigada pelo não querer. Assim, a superação de todo sofrimento só é possível pela renúncia quietista às tentações do mundo e pela contemplação da obra de arte, principalmente, a música.

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SCHOPENHAUER

Por Thomas Mann

Nossa alegria diante de um sistema metafísico, nossa satisfação em presença de uma construção do pensamento, em que a organização espiritual do mundo se mostra num conjunto lógico, coerente a harmônico, sempre dependem eminentemente da estética; têm a mesma origem que o prazer, que a alta satisfação, sempre serena afinal, que a atividade artística nos proporciona quando cria a ordem e a forma a nos permite abranger com a vista o caos da vida, dando-lhe transparência.

A verdade e a beleza devem ser postas em relação; tomadas em si mesmas, sem o apoio que mutuamente se prestam, são valores muito instáveis.     A beleza que não se fundasse na verdade, que não pudesse apelar para ela, que não nascesse dela, não vivesse graças a ela, seria pura quimera - e "que é a verdade"? Tirados de um mundo de fenômenos, de uma visão do mundo submetida a múltiplas condições, nossos conceitos, como o discerne e o reconhece a filosofia crítica, não são para uso transcendente mas só imanente; esse material de nosso pensamento e, com maior razão, os juízos que nos permite construir, não são meios adequados para quem quer apreender a própria essência das coisas e a verdadeira conexão do mundo e da existência. Mesmo que, por uma experiência intimamente vivida, se determine mais convencida e mais convincentemente o que está na base dos fenômenos ainda não se terá trazido à luz a raiz das coisas. Só isto encoraja o espírito humano a tentar este ensaio, que se lhe impõe a isto e o justifica; é a hipótese necessária de que também o nosso próprio ser, o nosso mais profundo Eu, é um elemento desse "substractum" do mundo, que aí deve ter raízes e que, por conseguinte, dele talvez se tirem alguns dados que permitam esclarecer a ligação do mundo dos fenômenos a da essência verdadeira das coisas.

A história do pensamento de Schopenhauer faz-nos remontar à fonte do conhecimento em que se abeberou o Ocidente, onde o espírito científico tanto quanto o senso artístico da Europa tem origem aonde se encontram ainda unidos: ela conduz a Platão. As coisas do mundo, ensinava o pensador grego, não têm existência verdadeira; sempre em "devenir", jamais são. Não valem como objetos do verdadeiro conhecimento, pois só existe conhecimento que é em si, por si e sem mudança; ora, em sua multiplicidade , na relatividade de seu ser de empréstimo, que bem se poderia chamar um não-ser, jamais podem ser senão o objeto de uma opinião provocada por uma sensação. São sombras. O que só é verdadeiramente, o que não cessa de ser, sem jamais se transformar nem se perder, são os arquétipos, realidades a que essas sombras correspondem, são as Ideias eternas, os protótipos de todas as coisas. Ignoram estes a multiplicidade, porque, por essência, cada um deles é único, é precisa- mente o original, cujas cópias ou sombras não são mais que coisas ostentando o mesmo nome que ele, coisas isoladas, perecíveis e semelhantes. As ideias não poderiam nascer nem desaparecer com eles, porque são intemporais e verdadeiramente "existentes". Para elas não há "devenir" nem aniquilamento, como para suas cópias caducas. Só delas, pois, há um conhecimento verdadeiro, como do que é, em todos os tempos e de todos os pontos de vista.

Ter espírito científico e preparar-se para a ciência é manifestamente subordinar à ideia a multiplicidade dos fenômenos, combinar somente com ela a verdade e a autêntica realidade e firmemente se ater à abstração contemplativa, à espiritualização do conhecimento. Por esta distinção de valor entre o fenômeno e a ideia, a matéria e o espírito, o mundo da aparência e o mundo da verdade, o temporal e o eterno, Platão representa um acontecimento prodigioso na história do espírito humano e, pois, na ordem da ciência e da moral.

Sentem todos que a esta elevação da ideia, realidade única, acima dos fenômenos e da sua efêmera multiplicidade, se liga uma ideia profundamente moral, a desvalorização do sensível em benefício do espiritual, do temporal em proveito do eterno, e isto está inteiramente no espírito do futuro cristianismo: porque, por assim dizer, o passageiro fenômeno e a afeição sensual que inspira, com isso se transportam para o domínio do pecado: - só aquele que se volta para o eterno encontra a salvação, a verdade. Vista sob esse aspecto, a filosofia de Platão mostra o parentesco e a aliança entre a ciência e o ascetismo moral.

Mas outro valor tem esta distinção: o valor artístico. De acordo com essa doutrina, com efeito, o tempo é simplesmente esta visão recortada e fragmentada que um ser individual pode ter Ideias, as quais, situadas fora do tempo, são eternas. "O tempo, segundo uma bela fórmula de Platão, é a imagem móvel da eternidade". Com isso, essa doutrina pré-cristã e já cristã apresenta-nos também, em sua ascética sabedoria, um atrativo, um encanto de sensualidade infinitamente artística. Com efeito, conceber o mundo como uma fantasmagoria, multicor e móbil de imagens que deixam transparecer a Ideia, o Espírito, é atitude eminentemente artística, que, por assim dizer, de pronto restitui o artista a si mesmo. Na verdade, é ele quem, pleno de alegria sensual e pecaminosa, pode sentir-se preso aos fenômenos do mundo, às imagens do mundo, pois sabe que pertence ao mesmo tempo ao mundo da Ideia e do Espírito, porque é o Mago, graças ao qual podem estes nos aparecer através dos fenômenos. Surge aqui a missão mediadora do artista, seu papel de mediador nas encantações herméticas entre o mundo do alto e o mundo de baixo, entre a Ideia e o fenômeno, o espírito e a sensualidade; porque tal é, de fato, a posição verdadeiramente cósmica da arte; sua estranha situação e a comprometida dignidade de sua ação no mundo não podem definir-se nem explicar-se de outra maneira. O símbolo da lua, este emblema cósmico de toda mediação, é próprio da arte.

Platão artista... Uma filosofia, não o esqueçamos, não age somente - e por vezes age muito pouco - por sua moral, pela doutrina que põe na sua interpretação e na sua experiência do mundo, mas também e sobretudo por esta própria experiência que, aliás, constitui a parte essencial, primeira e pessoal de uma filosofia - e que não é absolutamente um simples acréscimo intelectual e moral à doutrina de salvação e de verdade. Muito resta ainda quando se arrancou de um filósofo sua filosofia e grave seria se nada restasse. Nietzsche, o discípulo de Schopenhauer, que renegou seu mestre em espírito, escreveu sobre ele estes versos:

O que ele ensinou não mais existe,
O que ele viveu permanece de pé,
Contemplai-o, pois!
Nada pôde submetê-lo.

A doutrina de Schopenhauer, de que falaremos agora, e o dinamismo de sua verdade têm-se prestado a tantos abusos como a mensagem de Platão, a qual, não obstante seu ascetismo científico, pôde ser amoedada em valores de arte e especialmente ser explorada por um artista de colossal talento, Ricardo Wagner (de quem talvez tratemos mais tarde). Mas a culpa não cabe certamente ao outro mestre e iniciador de Schopenhauer, àquele que o ajudou a construir seu sistema de pensamento: Kant, puro espírito, cuja natureza tanto o afastava da arte quanto o dispunha à crítica.

Emanuel Kant, crítico do conhecimento, que, do domínio da especulação, onde seu voo a extraviara, reconduziu a filosofia para o espírito humano, tomou-o por objeto de suas investigações e traçou limites à razão; Kant, na segunda metade do século XVIII, ensinava em Kõnigsberg, na Prússia, princípios muito semelhantes aos que dois milênios antes o pensador ateniense havia exposto. Toda a nossa experiência do mundo - dizia ele - está submetida a três leis e condições que são as "formas em que necessariamente se elabora todo o nosso conhecimento. Chamam-se tempo, espaço, causalidade. Mas não apreendem o mundo tal como ele pode ser em si e por si, independentemente de nosso esforço por percebê-lo, a "coisa em si"; atêm-se somente à sua aparência fenomenal, porque não são mais que as formas de nosso conhecimento. Nenhuma, multiplicidade, nenhuma aparição e desaparição é possível senão por elas três; elas são, pois, sustentadas unicamente pela aparência e absolutamente nada podem saber da "coisa em si", à qual não se poderia de maneira alguma aplicá-las. Isso se estende mesmo até ao nosso próprio Eu: conhecemo-lo somente como aparência, não em sua essência. Em outros termos: espaço, tempo, causalidade, são dispositivos de nossa inteligência, e a concepção das coisas que nos chega em imagem, condicionada por eles, se chama, pois imanente; transcendente seria a que poderíamos atingir se a razão, voltando-se sobre si mesma, se tornasse crítica da razão, depois de ter peneirado o caráter de meros modos de conhecimento que essas três formas interpostas têm''.
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Tal é a concepção fundamental de Kant. Vê-se que muito se aproxima da de Platão. Apresentam ambas o mundo visível como uma aparência, isto é, como uma parição inconsistente, que só adquire importância e alguma realidade pelo que nela transparece e se exprime. Para ambas, a verdadeira realidade se encontra acima, atrás, em resumo, "para além" de sua aparência e pouco importa, em suma, que se chame "Ideia" ou "Coisa em si".  Schopenhauer abrigava esses dois conceitos no mais profundo de seu pensamento.

Com predileção, cedo estudou Platão e Kant (em Gottingem 1809-1811). A todos os pensadores preferia esses dois, tão afastados no espaço e no tempo. Tomou-lhes emprestado o que podia ser-lhe útil e, para o seu temperamento tradicionalista, foi grande satisfação poder utilizá-lo tão perfeitamente; mas, transformou-o totalmente, conforme a sua própria natureza, que era inteiramente diferente, muito mais moderna, mais impetuosa e mais dolorosa.

Tomou as "Ideias" e a "Coisa em si". Mas, com esta, ousou temerária tentativa, quase interdita, cuja necessidade, porém, sentia, profundamente, com o ardor de possante convicção: definiu-a, chamou-a por seu nome, afirmou - posto que após Kant fosse impossível saber qualquer coisa a respeito - que sabia o que ela é: a Vontade. Seria a causa primeira e irredutível do ser, sua base mais profunda, a fonte de todos os fenômenos, a potência presente e operante em cada um deles, a criadora de todo o mundo visível e de toda a vida, porque seria o querer-viver. Ela o seria a ponto que dizer "vontade" seria falar precisamente da vontade de vida e servir-se da fórmula mais explícita, enunciar de fato um pleonasmo. Jamais a vontade quereria outra coisa senão a vida. E por que a quereria? Por que a achasse desejável? Por que tal era o resultado de alguma investigação objetiva sobre o valor da vida? Oh? Não! A esse querer, qualquer conhecimento continuaria a ser perfeitamente estranho; seria algo que não dependeria absolutamente dela, algo de primordial e de incondicionado, um impulso cego, um instinto absolutamente gratuito, de uma profundeza sem fundo e dependeria tampouco de quaisquer juízos sobre o valor da vida que, ao contrário, seriam estes juízos que dependeriam inteiramente do grau de potência do querer-viver.

A vontade, pois, este absoluto, exterior ao espaço, ao tempo e à causalidade, cegamente e sem razão, mas com o irresistível ardor de seu desejo e de sua alegria de existir, reclamaria a vida, a objetivação, e esta objetivação se realizaria de tal maneira que sua unidade primitiva se tornaria multiplicidade, o que caracteriza perfeitamente o princípio de individuação. Para saciar seu desejo, a vontade ávida de vida objetivar-se-ia segundo esse princípio, espalhando-se em miríades de parcelas que constituiriam o mundo dos fenômenos, o do espaço e do tempo e, entretanto, até no menor e no mais isolado desses fragmentos permaneceria inteiramente produto e expressão da vontade, sua objetivação no espaço e no tempo. Mas, além disso ainda: seria representação, minha representação, como a tua, a de todo indivíduo e a representação que cada qual faz de si para si - especialmente por meio da inteligência que conhece e que, nos graus superiores de sua objetivação, a vontade criou para torná-la para si - especialmente por meio da inteligência que produziria a vontade, mas, ao inverso, esta que engendraria aquela. Não seriam a inteligência, o espírito, a faculdade de conhecer, que constituiriam o elemento primeiro e dominador; seria a vontade, e a inteligência, sua serva. Seria possível o contrário, uma vez que a própria faculdade de conhecer se liga à objetivação da vontade nos graus superiores e que, sem ela, não teria nenhuma ocasião de se realizar? Num mundo que é inteiramente obra da vontade, do instinto de viver absoluto, gratuito, ignorando razões e juízos de valor, não poderia a inteligência necessariamente pretender senão segundo lugar. A sensibilidade, os nervos, o cérebro, tanto como outras partes do organismo - em particular da mesma maneira que o oposto do cérebro, órgão de conhecimento, seu polo contrário - o aparelho reprodutor - seriam a expressão da vontade num dado momento de sua objetivação e a representação resultante, igualmente destinada a seu serviço, não teria mais seu fim em si, mas constituiria um simples meio, um instrumento, que permitiria à vontade atender a seus fins, exatamente como esses outros órgãos. Essas relações da inteligência e da vontade, essa afirmação de Schopenhauer de que a primeira era apenas o dócil instrumento da segunda implicam muito de cômico e de humilhante angústia; determinam o conteúdo de todas as inclinações e aptidões do homem para se iludir e imaginar que sua vontade recebe instruções e dados da inteligência, ao passo que, segundo o nosso filósofo, é precisamente o contrário; a inteligência - independentemente de sua tarefa, que consiste em projetar um pouco de luz na vizinhança imediata da vontade e em ajudá-la em sua luta pela existência num grau mais elevado - tem por única missão servir de porta-voz à vontade, justificá-la, provê-la de motivos "morais", em suma, racionalizar nossos instintos.

Era uma apreciação notavelmente pessimista; e, de fato, todos os compêndios nos ensinam que Schopenhauer foi em primeiro lugar o filósofo da vontade e, em segundo lugar, o do pessimismo. Mas, não há primeiro nem segundo; as duas coisas não são mais que uma: ele foi a segunda, porque foi a outra e ao mesmo tempo; ele foi necessariamente pessimista, porque era o filósofo e o psicólogo da vontade. Se a encaramos como o oposto da satisfação beata, a vontade é em si mesma uma infelicidade fundamental: é insatisfação, esforço em vista de algo, inteligência, sede ardente, cobiça, desejo, sofrimento, e um mundo da vontade outra coisa não pode ser senão o mundo do sofrimento. Objetivando-se em tudo que existe, a vontade expia no mundo físico sua alegria metafísica e a expia no sentido próprio da palavra: "expia" da maneira mais terrível no mundo que ela criou e que, sendo o mundo do desejo e do tormento, se revela sinistro. É que, tornando-se mundo segundo o princípio de individuação, pela sua fragmentação na multiplicidade, a vontade esquece a unidade primitiva e, embora, não obstante todo o seu esmigalhamento, continue una, torna-se uma vontade que está milhões de vezes em luta consigo mesma, que se combate e se desconhece a si própria, que, em cada uma de suas manifestações, procura seu bem-estar, seu "lugar ao sol", a expensas de outra e, ainda mais, a expensas de todas as outras, não cessando, pois, de morder a própria carne, como aquele habitante do Tártaro que avidamente se devorava a si mesmo. É preciso compreender isso literalmente. As "Ideias" de Platão adquirem, em Schopenhauer, uma voracidade incurável, porque, graus atingidos pela vontade que se objetiva, disputam uma à outra a matéria, o espaço, o tempo. Deve o mundo vegetal servir de alimento ao mundo animal e cada animal, por sua vez, de presa e alimento a outro, e assim a vontade de vida não cessa de se devorar a si mesma. O homem, enfim, considera o todo como criado para seu uso e contribui por seu lado para assinalar com a mais espantosa evidência o horror do combate de todos contra todos, o auto-estraçalhamento da vontade, segundo a máxima "Homo hominis lupas".





quarta-feira, 21 de junho de 2017

Um apólogo - Machado de Assis

Machado de Assis

ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha:


— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu.
Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?


— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.

Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano.

Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:

— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!


FIM

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Kid Vinil: o único herói do Brasil

Não devemos falar das personalidades ligadas ao rock, ou a qualquer outro segmento social ou cultural, apenas quando elas se vão. Mas também não podemos nos esquecer de prestar homenagens quando isso ocorre.


Recentemente perdemos o “personagem”, de tão extravagante que era, Kid Vinil: alegre, marcante e inconfundível.

Talvez ele não tenha sido uma unanimidade, mas muitos o consideravam como um verdadeiro mestre, o "professor". Controvérsias à parte, o que não nos resta dúvidas é que ele amava incondicionalmente a música: falava, cantava e vivia rock’n’roll.

Esse amor fez com que ele fosse um divulgador desse gênero musical no Brasil, isso em uma época em que não existia a internet! Eram poucas, senão raras, as publicações de rock no país.

Sempre presente no cenário musical, organizou shows de rock alternativo, punk rock e pós-punk, destacando-se anos 80.

Aficionado por todas as fases do rock, não apenas divulgou o underground internacional e nacional, mas também foi seu protagonista, ao criar a banda Verminose. Incentivador das novidades e garimpeiro de raridades, Kid regravou, com sua banda Magazine, a irreverente “Adivinhão”, de George Feedman, lançada originalmente em 1961, na época da Jovem Guarda. 

Além disso, foi apresentador dos programas de televisão Som Pop e do memorável Boca Livre, que passava na TV Cultura. Tornou-se também VJ da MTV e escreveu um livro chamado “Almanaque do Rock”.

No entanto, a fama veio mesmo nos anos 1980, com a Magazine e seus hits “Tic tic nervoso” e “Sou Boy”, clássicos do rock brasileiro.

E foi no palco que Kid Vinil se despediu do mundo.

No mês de maio do corrente ano, excursionando pelo Brasil, com outros músicos dos anos 80, Kid Vinil passou mal durante uma apresentação em Minas Gerais, sendo então hospitalizado e, posteriormente, transferido para São Paulo, onde veio a falecer aos 62 anos.

Mas o palco sempre será seu, Kid Vinil, o Herói do Brasil. (Paula Vanessa)

domingo, 4 de junho de 2017

Odisseia - Canto 1: Telêmaco

Homero, Odisseia

Análise: Odisseia - Canto 1: Telêmaco

O tema escolhido para uma reflexão deste breve comentário é a posição de prestígio social de Telêmaco, conferido pela “fama”, em relação ao seu pai, Odisseu, tal como é sugerido no Canto 1 da Odisseia.

Zeus

Resumidamente, o referido canto inicia com os deuses reunidos em assembleia. Zeus é questionado pela queixa da deusa Palas Atena, por ter se esquecido de Odisseu. A deusa lembra que o herói perdera-se a caminho de casa, o reino de Ítaca, após a guerra de Troia. Odisseu furou o único olho do ciclope Polifemo, filho de Posêidon e a ninfa Tóosa. Como vingança, o colérico Posêidon mantém Odisseu longe da terra natal sem o destruir. Atena vai a Ítaca, onde encontra Telêmaco desolado, por desconhecer o paradeiro do pai e, pela ausência deste, não se sentir merecedor da fama dos heróis. A esposa de Odisseu, Penélope, é cortejada pelos pretendentes, aos quais a julgam viúva, procurando esposá-la. Estes vivem como parasitas no reino de Odisseu, jogando dados, embriagando-se e banqueteando.

É preciso salientar que, logo a partir do início do poema, Homero põe todas as cartas sobre a mesa, sem esconder nenhum trunfo na manga. Além do presente único, puro e perpétuo, onde tudo se passa em um primeiro plano, sem profundidade e perspectiva, de que nos fala Erich Auerbach, sobre o estilo homérico, outra característica apontada pelo teórico fica patente: a clareza. Portanto, nas palavras do autor de Mimesis, reconhece-se: “(...) representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as suas partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais. Não é diferente o que se dá com processos internos também deles nada deve ficar oculto ou inexprimido” (AUERBACH, 1976, p. 3). Esta célebre caracterização da poesia homérica, por Auerbach, tinha por contraponto o Velho Testamento, dada as raízes judaicas do teórico. Segundo o autor, o estilo parcimonioso do épico hebraico, que, tendo por pressuposto um Deus oculto, sem rosto, dá margem à perspectiva e profundidade dos fatos e da psicologia dos personagens, e contrasta frontalmente com a riqueza sintática, vocabular, geográfica etc., do estilo cristalino de Homero. Tal comparação ajuda-nos a compreender o estilo homérico. “De um lado, fenômenos acabados, uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, em interstícios, num primeiro plano; pensamentos e sentimentos exprimidos; acontecimentos que se desenvolvem com muito vagar e com pouca tensão. De outro lado, só é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa a meta da ação; o restante fica na escuridão” (Idem, p. 8 e 9).

Esta caracterização estilística merece algumas considerações referentes ao contexto sócio-cultural em que a tradição evidenciou. De modo inverso ao Velho Testamento, conforme Auerbach, a função da poesia homérica não é a de expor a verdade - histórica (arqueológica) - e, sim, o lazer, embora isso não destitua seu caráter religioso. No caso dos hebreus, a verdade do passado mítico tinha de ser real por causa da promessa de Deus, da Terra Prometida e do fim dos tempos. Essa necessidade de realização não era pertinente para a teologia helênica.

Se o lazer era o catalisador da poesia homérica, seria importante caracterizar o contexto da execução performática apropriado às configurações formais da épica de Homero. Para nós modernos, situados no limiar do século XXI e de uma possível “odisseia no espaço”, é muito difícil compreender o contexto cultural da épica na Grécia arcaica. Para isso, seria necessário um exercício imaginativo que se abstivesse de uma longa tradição da escrita e de recursos de comunicação de alta tecnologia e extremamente recentes, como o rádio, o cinema e a internet. Porque, para os antigos, da Idade do Bronze, essa realidade, obviamente, era inimaginável. Estes dispunham apenas da palavra, isto é, da oralidade, já que na época dos heróis, precedente a Homero, não havia escrita na sociedade helênica; nem por isso deixaram de criar um repertório cultural riquíssimo e sofisticado.

É neste contexto que a figura enigmática de Homero e seus poemas têm de ser inseridas. Algumas questões são bastante conhecidas, como a tradição aristotélica dos gêneros literários, que consagrou a épica à narrativa de homens superiores e feitos heroicos. Também os recursos da forma poética, em Homero, para transmissão oral, recentemente, foi muito estudada (Parry e Lord). Evidentemente, alguns aspectos técnicos da poesia oral devem ser levados em conta, até mesmo por questões de memorização e transmissão da extensa narrativa em versos que ganharam, por isso, a conotação, ainda hoje, de grandeza sugerido pelo adjetivo “homérico”. Algumas dessas fórmulas são muito conhecidas, como a métrica da composição em hexâmetros datílico, abundância de epítetos, repetições, estruturas circulares ou anelares etc.

Porém, estas questões passam ao largo da recepção da audiência durante a performance na execução da épica no universo sócio-cultural da Grécia arcaica. De um modo geral, o poema épico está ligado ao mito fundador formador de identidade de um povo grego. Por isso as questões de performance, isto é, em que ocasiões as canções eram recitadas, os registros de linguagem, os temas e as relações entre o poeta e o público (FORD, 1997), devem ser também consideradas para a caracterização formal do poema épico.

Sobre isso, o próprio texto homérico fornece indícios significativos. A performance não era executada numa situação estrita, bem marcada, como festas nacionais. Os poemas eram recitados ou cantados por aedos profissionais em “rituais específicos e ocasiões comunitárias” (idem), como casamentos, banquetes, simpósios, festivais religiosos etc., tendo por finalidade o entretenimento, que davam o tom de seu aspecto formal específico. Segundo Ford, os cantores apresentavam-se sozinhos, acompanhados por instrumentos musicais de corda. Porém, tais elementos não permitem conjecturas precisas. “Nem os contextos de performance, nem os seus requisitos formais, portanto, nos ajuda com mais do que uma definição geral da épica arcaica: podemos somente dizer que já em Homero era um tipo de  poesia tradicional não-mélica, que podia ser adaptada a muitas situações, mas não se identificava especialmente com nenhuma e, assim, sem um nome específico. O que mais obviamente distinguia a épica de outras formas não-mélicas em metros iâmbicos e trocaicos foram os temas de que tratava” (idem, p. 7).

O Canto 1 apresenta exemplo que bem poderia definir o contexto de performance associada à tradição épica.

Depois de se fartarem, os pretendentes dançam e Fêmio, o aedo, constrangido canta:

“ (...) Um serviçal
transfere a Fêmio a cítara pluribelíssima,
constrangido a cantar por quem tomara o paço.
(...) Calados, escutavam o cantor notável (...).
À câmara de cima chega a voz do aedo,
ouvida por Penélope, filha de Icário,
que desce da alta escadaria, não sozinha,
mas com as duas fâmulas sempre solícitas.
Diante dos pretendentes, a mulher divina
estanca rente ao botaréu do teto altíssimo,
encoberta por véu translúcido, dedáleo,
uma ancila postada à esquerda, a outra, à destra.
Pranteava ao se voltar para o cantor divino:
‘Fêmio, conheces muitos outros feitos de homens  
e de imortais que encantam as plateias, célebres.
Escolhe um deles, que, em silêncio, todos te ouvem
sorvendo o vinho: para o canto lutuoso
que dói no coração como um punhal bigúmeo;
o sofrimento incontornável me domina,
pois nunca deixo de rememorar o rosto de um herói,
cuja glória ecoa em Argos, na Hélade’.
(...) Voltaram-se ao deleite da poesia e dança,
à diversão que prenunciava o anoitecer,
e, enquanto divertiam-se, escurece a noite”.

 Nota-se que, neste caso, não há uma ocasião solene, de festividade nacional ou comemorativa de uma data histórica, mas apenas descreve uma situação em que os pretendentes, descontraídos, “passam o tempo” - sorvendo o vinho, jogando dados, dançando - no palácio de Odisseu. Penélope, ao entrar em cena, chora e lembra que o aedo Fêmio conhece um vasto repertório de temas épicos, tanto referentes a um deus como a de um herói que, entre tantos, poderia ser Aquiles ou mesmo Odisseu: “Fêmio, conheces muitos outros feitos de homens e de imortais que encantam as plateias, célebres. Escolhe um deles (...)”. A atitude da plateia é de atenção: calados, em silêncio, todos te ouvem. Aqui, parece caracterizar bem o contexto de performance da épica.

Nesta passagem, confirmando Ford, também pode se perceber que Fêmio é um aedo profissional, especializado no gênero épico, portanto, inspirado por uma Musa, “que celebra a fama dos homens de antanho” (Hesíodo, citado por Ford). O fato de ele conhecer muitos feitos de homens e de imortais demonstra uma espécie de “divisão de trabalho”, definida pelas Musas, entre os poetas e cantores, que também tocavam instrumentos musicais durante a apresentação. O cantor épico cantava a glória (kléos) dos grandes feitos e heróis do passado.


No que concerne ao fato aludido por Auerbach, em sua distinção entre o épico grego e o hebraico, de Homero ser um mentiroso - “As que nos contaram Hesíodo e Homero - esses dois e os restantes poetas. Efetivamente, são esses que fizeram para os homens essas fábulas falsas que contaram e continuam a contar”, diz Sócrates, em “A República”, de Platão - pode ser bastante relativizado. Se a promessa do Deus dos hebreus tornava imprescindível a veracidade factual dos heróis do passado, para o passado lendário, no caso da épica homérico essa não pode ter apenas um caráter de ficção, haja vista que Sócrates foi condenado por corromper a juventude. No entanto, não me sinto autorizado a entrar num terreno de tão difícil problemática, acerca das distinções teológica de culturas estranhas umas às outras. Mas Homero, quando invoca as Musas, simplesmente se deixa falar por elas, tal como uma revelação. O fato é que, segundo Ford, a invocação das Musas pelo aedo buscava conferir um sentido de “verdade” que marcadamente caracterizava a forma da poesia épica, porém, não só ela. A introdução do Canto 1 é bem significativa:

“O homem multiversátil, Musa, canta, as muitas
errâncias, destruída Tróia, urbe sacra,
as muitas cidadelas e homens cuja mente
escrutinou, as muitas dores que amargou
no mar a fim de preservar o próprio alento
e a volta aos sócios. Não os salva, desejoso
embora: a insensatez – pueris! – os vitimou,
pois Hélios hiperônio lhes recusa a luz
da volta, morto o gado seu que eles comeram.
Começa desse ponto o canto, musa olímpica!”


Para resumir, o lugar e a relação formal da épica com a realidade sócio-cultural subjacente a ela, Ford escreve que a “épica grega arcaica deve ser, portanto, definida por termos formais, temáticos e retóricos. Consistia numa longa canção executada por um solista em uma recitação rítmica; e narrava com autoridade das Musas os feitos dos deuses e dos heróis antigos. Os temas tratados na épica, os “caminhos” que poderia tomar, eram extensos, mas categoricamente circunscritos numa concepção mítica de uma idade de ouro há muito perdida. As histórias eram apresentadas dramaticamente e sem pistas explícitas sobre como aplicá-las à vida do público” (Ford, p. 17).

Estas considerações, em que a glória (kléos) estruturava a narrativa dos feitos heróicos, ensejam uma reflexão sobre o personagem central do Canto 1, o jovem Telêmaco. Telêmaco é objeto de polêmica entre os estudiosos de Homero, por ser um adolescente. Mais especificamente sobre Telêmaco, “a caracterização dessa figura tem suscitado uma série de discussões, pela sua condição de jovem prestes a entrar na idade adulta: Telêmaco, ao contrário dos outros heróis homéricos que desempenham papéis de destaque, não é um homem feito” (MALTA).

Para alguns, o filho de Odisseu é um personagem sui generis no panorama de personagens estáticos da poesia homérica, pois apresenta uma evolução. Para outros, ao contrário, o desenvolvimento em Telêmaco já estava pressuposto em sua caracterização, não diferindo em essência dos demais personagens. Malta questiona a estaticidade dos principais personagens homéricos e sugere um meio termo entre essas duas posições. No caso de Telêmaco, o autor argumenta uma transição da infância para a idade adulta, suscitada pela visita de Atena. “Podemos afirmar então que a intervenção de Atena tem dois propósitos principais: estimular, através do furor e da reflexão incutidos, que Telêmaco abandone a passividade e se torne um realizador de atos e palavras; e fazer com que essa sua nova postura resulte na obtenção de seu kléos pessoal, que é uma confirmação do seu kléos familiar. Essa transformação, por sua vez (em curso na “Telemaqueia” e consolidada na segunda metade do poema), confunde-se com a sua passagem da infância para a idade adulta, com o estabelecimento de novas exigências e expectativas” (idem, p. 90). A idade adulta deve ser consagrada, para Telêmaco, pela fama que deve igualar ou superar a fama paterna.

O mote central se desenvolve numa cena típica de recepção. A deusa Atena disfarçada no estrangeiro Mentes, rei dos táfios, é recebida no palácio por Telêmaco, que realiza toda a etiqueta de hospedagem. Nisso, Atena relembra, a Telêmaco, Odisseu, afirmando que este vive, e que seu retorno significaria a vingança dos pretendentes de Penélope, que, como autênticos parasitas, desonram o lar do herói de Troia. Para mostrar familiaridade, a deusa conta o episódio das flechas envenenadas envolvendo Anquíalo, pai de Mentes, e Odisseu. A princípio, Telêmaco titubeia, talvez pela sua imaturidade, e chega a pôr em dúvida até mesmo sua filiação consanguínea a Odisseu quando indagado por Atena. Sua lembrança do pai não é física mas de seus feitos, de sua coragem. A deusa, por outro lado, retruca que o jovem assemelha-se muito, fisicamente, a Odisseu, e que não é da vontade dos deuses que linhagem deste caia em esquecimento. A incerteza mediante ao paradeiro de Odisseu impele Telêmaco a acreditar que ele não é merecedor de sua glória, mas, antes, da dor como legado de seu pai. Atena, então, para lhe incutir coragem, cita o exemplo de Orestes e o instrui Telêmaco a buscar notícias de Odisseu em Pilo e Esparta para, a partir disso, também conquistar sua própria fama. Ao partir, Atena manifesta sua divindade ao voar como uma pomba. O limitado leque de opções de Telêmaco, em relação aos pretendentes, resultam em apenas uma saída: matá-los, porque é exatamente este fim que lhe será reservado se por acaso um pretendente casar com sua mãe.


Fragmento do discurso de Atena:

“(...) O jovem deve obter na Pilo multiareada
e Esparta alguma informação do pai que volta.
Que a expedição o afame entre os mortais de estirpe!”
(...)
Se ouvires que ele vive e que retorna a Ítaca,
suporta a dura espera, mesmo se de um ano,
mas se ouvires que já morreu, erige um túmulo
tão logo chegues, ricas oferendas fúnebres,
muitíssimas, concede, e um novo esposo à mãe!
Quando não mais houver questão pendente, indaga
a ti mesmo, rumina o coração e a mente
sobre o modo melhor de eliminar em casa
a corja de chupins, se à bruta ou se iludindo-os.
Deixa de criancices que não és criança!
Ignoras que o divino Orestes se afamou
em toda Grécia ao trucidar o algoz do pai,
Egisto, homem ladino, matador do herói?
Pois te equiparas a ele em porte e vigor físico:
hão de louvar os pósteros o teu rompante!
os pósteros irão louvar o teu rompante!”
           

De fato, há mudança nítida de postura em Telêmaco. O filho de Odisseu era inseguro e taciturno perante os pretendentes. No final, discursa destemido, surpreendendo até mesmo sua mãe. Sabe-se que não é mais uma criança e que, para se tornar adulto e digno de sua ascendência nobre, deve buscar sua própria fama. A visita de Atena é este ponto de inflexão, ao lembrar-lhe da estirpe de Odisseu.


BIBLIOGRAFIA


AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1976.


FORD, A. Epic as genre. In: MORRIS, I.; POWELL, B. (Org.) A new companion to Homer. Leiden: Brill, 1997, p. 396-414.


HOMERO, Odisseia, (Tradução: Trajano Vieira). São Paulo: Editora 34, 2014.



MALTA, A. A linguagem fora de controle: o discurso de Agamênon no Canto 2 da Ilíada. Ordia Prima, v. 8, p. 25-49, 2011. 

segunda-feira, 1 de maio de 2017

"O gestor" - Fecaloma

O barulho das máquinas
São gritos de ordens
Que impõe a submissão
De milhares de homens

A voz rouca da razão
Por justiça implora
Mas abafada pelo desinteresse
Ecoa apenas revolta

Humilhados e sujos
Entregam suas vidas
A quem não sabe distinguir
O suor das lágrimas