sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Raça, Anarquia, Punk e a Consciência Negra

Por O. N. N.C.

Desde os protestos históricos contra a OMC, no final do último milênio, e do A-20, no começo deste, o anarquismo, como uma teoria revolucionária, tem despertado interesse em um número crescente de pessoas como nunca antes na memória recente. No entanto, permanece o fato inegável de que a composição do movimento anarquista nas duas últimas décadas tem sido bastante homogênea, isto é, predominantemente branca e de classe média. Ocorre também que a grande maioria das pessoas que se identificam com o anarquismo hoje está de alguma forma envolvida em movimentos de subculturas do rock, como o punk e gêneros afins.

Sendo eu negro e anarquista, com raízes no punk rock, ultimamente tenho estado muito preocupado com a quase ausência do debate sobre a identidade do negro e afrodescendente no movimento punk e anarquista. Curiosamente, embora haja muitos punks da raça negra no Brasil, a questão da negritude raramente é um tema importante no imaginário simbólico da cultura punk.

A de anarquia com punho sobreposto


Certa vez, numa conversa com um amigo, que já fora punk e hoje curte rap e recentemente defendeu uma dissertação de mestrado sobre a população negra nas periferias das grandes cidades, citei “a questão do negro no movimento punk e anarquista” como um tema importante. Meu interlocutor se demonstrou bastante cético e reagiu com profundo pessimismo: “as letras punks não falam do negro”. Retruquei, de imediato, e citei “Liberdade é negra!”, letra da Fecaloma, uma das minhas bandas punks prediletas (vídeo no final do texto). Ele me respondeu com sarcasmo: “Fecaloma não é punk; os punks não gostam de Fecaloma; Fecaloma é muito bom para ser punk”. Absurdo, repliquei, o Fecaloma nunca deixou de se reputar uma banda punk e os punks curtem Fecaloma, sim! Depois de manifestar indignação, para tentar refutar a afirmação do meu amigo, tentei me lembrar, sem êxito, de outras canções de outras bandas punks que tocassem a fundo na questão do negro. Não me veio à mente nada mais do que reminiscências aqui e ali de alguma ou outra letra que cantasse a união e igualdade entre negros e brancos, que é muito bonito no discurso, mas, sendo falsa na prática, bastante demagógico.

Peço perdão à minha memória musical se por acaso estiver cometendo alguma injustiça e, se assim for, peço para ser corrigido. Mas, pelo fato de ser negro e me lembrar de tão poucas menções ao negro no punk, eu me pego a perguntar como um movimento no início tão vibrante, que fez tanto barulho, assombrou e tremeu os alicerces da carcomida ordem burguesa e parecia que ia mudar o mundo, se tornou uma cena tão medíocre, tão insossa, de meros aficionados por um gênero musical? O que teria acontecido com a ousadia das primeiras bandas punks, com suas letras irreverentes, criativas e ao mesmo tempo provocantes, ácidas, questionadoras? Realmente, toda a potência crítica original do punk se esvaziou em clichês que são repetidos a exaustão, tornando a letra reles adereço da composição musical, que também copia antigas fórmulas.

Dos inúmeros slogans situacionistas que inspiravam as letras das primeiras bandas gringas à proliferação de bandas anarco-punk, como Crass e Conflict, no começo dos anos 80, o punk rock, como uma subcultura do rock, teve uma história singular na música pop ao estreitar laços com a ideologia anarquista e, por conseguinte, anticapitalista. Mas, a despeito da tão sonhada descentralização do poder e da crítica à hierarquia, somos forçados a admitir, nos termos de uma microfísica do poder de Michel Foucault, que sempre um ou mais indivíduos acabam por catalisar as expectativas do grupo, sendo essas verdadeiras ou falsas, e representar o movimento por meio de uma liderança personalista. No caso do anarquismo, a situação é ainda pior, pois, dado a maior complexidade do anarquismo enquanto teoria política e histórica, uma liderança se impõe pela necessidade de uma formação intelectual mais qualificada, o que implica num recorte de classe circunscrito a um perfil social majoritariamente constituído por brancos, do sexo masculino e oriundo da classe média – quando não da classe alta!

Isso também se deve em grande parte a uma identificação exclusiva do anarquismo e do movimento punk com suas raízes europeias. Identidade essa que se realiza, sobretudo, pelo consumo desbragado de enlatados da indústria do entretenimento e da cultura yankee. A classe média endinheirada, malhada nas escolinhas de inglês e viagens ao exterior nutre de verdadeira repulsa a tudo o que é brasileiro, povão (negros, índios e mestiços) ou “terceiro mundo”, buscando suas referências na cultura dos países desenvolvidos, principalmente, anglo-saxônicos.

Claro, nem tudo é tão alienado assim. Houve nos últimos tempos inovações muito bem-vindas e que revigoraram o movimento punk e anarquista, apesar de também terem sido importadas, como a introdução mais do que oportuna de temas do feminismo e veganismo. Porém, no dia a dia, de shows e ensaios, sempre ocorre alguns deslizes aqui e ali e o machismo latente aflora nos pequenos lapsos e recantos profundos do inconsciente. Ainda assim, a inclusão das pautas universais do feminismo e dos direitos dos animais já é uma contribuição por demais significativa. Mas quanto ao negro, infelizmente, ainda sequer lhe é reservado o pequeno espaço das famigeradas cotas.

Minha longa experiência com o movimento demonstrou que o assunto da negritude é um tabu entre os anarquistas e punks. É sempre uma questão menor, secundária. Sempre quando eu propunha um debate sério sobre o tema, recebia reações muito negativas ou, quando muito, alguém manifestava um complexo de culpa por não ter pedido para nascer “branco”. Outros, numa tentativa de diluir as diferenças, até enfatizavam uma origem pobre, de parentes ligados à classe operária italiana na São Paulo do início do século XX etc. Claro, e sempre há aquelas situações embaraçosas em que alguém solta frases do tipo: "eu sou seu amigo, logo, não sou racista; ou, eu já namorei uma mina negra" e coisas assim. O sentimento de uma pessoa negra diante de concessões absurdas como essas é altamente doloroso e só reforça mais o preconceito e a humilhação.

Eu também já listei, nas minhas discussões com anarquistas brancos, o argumento daqueles que insistem em que, como o conceito de raça é uma construção social, não se deve reconhecer identidades raciais, porque tais categorias no fundo não existem. Com certeza, deve ser muito conveniente para uma pessoa branca tomar a questão de raça como uma abstração metafísica e fingir que as diferenças não são reais de fato, algo que me lembra em muito as campanhas reacionárias de conteúdo meritocrático contra ações afirmativas, tão disseminadas em tempos recentes de redes sociais. Ironias à parte, numa sociedade em que é perversamente vantajoso ser acometido por um "daltonismo racial", é bastante cômodo acreditar em um mundo onde “as oportunidades são iguais para todos". Quem larga na frente, se não tropeçar, chegará provavelmente na frente. Admitir, porém, que a vitória não foi justa, é uma vergonha que não cabe no princípio em que os fins justificam os meios.

Na verdade, tal situação é muito boa para o ego inflado daqueles que, pelas circunstâncias sociais privilegiadas, não terão dificuldades em encontrar um bom emprego e manter seu estilo de vida caprichosamente alternativo dentro de seus condomínios fechados. No fundo, o que subjaz disso tudo é que o atual anarquismo se distanciou completamente de suas origens proletárias e não é à toa que, lamentavelmente, de uns vinte anos para cá surgiu um neologismo que é em si mesmo uma contradição entre termos: o anarcocapitalismo (sintomaticamente, a primeira sugestão de pesquisa do Google quando se digita “anarco”).

Mesmo nas circunstancias em que os anarquistas têm clareza de que o anarquismo é um movimento de esquerda surgido no seio do movimento socialista do século XIX, a ideologia anarquista tem atraído, como já se disse, principalmente rapazes brancos heterossexuais. Estes, imbuídos de um auto-sentimento divino e superior ante o resto do mundo, de vez em quando, e de fachada, abrem algumas concessões para as ditas “minorias”, principalmente, o movimento feminista e LGBT. Mas isso é o máximo a que eles se permitem.

Além disso, o movimento anarquista elencou uma série de reivindicações em torno de problemas da vida privada que podem ser classificados como um “luxo das classes privilegiadas”. Isso diz respeito, em contrapartida à inerente repugnância ao trabalho manual que é habitualmente manifesto, na melhor das hipóteses, a uma perspectiva de realização profissional dentro de uma carreira acadêmica. Neste espaço restrito, toda e qualquer militância se reduz a ideias e teorias na clausura da caverna, pelas quais se invoca como tarefa áurea resgatar a “grande” contribuição positivista do anarquismo para a ciência. Entretanto, esta produção acadêmica redunda, como não poderia deixa de ser, em pesquisas medíocres, que, limitadas teoricamente, não podem ir além de uma consciência ingênua, na busca de aprovação social, através do exemplo concreto das inúmeras e pequenas coletividades anarquistas, que, apesar de todas fracassadas, demonstraram a extrema bondade do ser humano, transformando assim sentimentalismo barato em um apelo moralista de pseudociência. Raramente, ou melhor, jamais uma aproximação com movimentos sociais ou mesmo com a classe trabalhadora é ao menos esboçada ou cogitada.

Esta elitização do movimento anarquista atual, que abandona escandalosamente a classe trabalhadora para se instalar nas bibliotecas universitárias, e a recusa dos punks em encarar frente a frente uma das questões mais cruciais da modernidade, o negro e a escravidão, é extremamente prejudicial para a consistência crítica tanto do movimento punk, enquanto jovens pobres e negros da periferia, como da própria ideologia anarquista, capitaneada por uma mentalidade burguesa. Sem dúvida, nos tornamos liberais, encerrados em nossa pequena concha, preocupados apenas com o estilo de vida de cada um e a liberdade dos gostos individuais.

Para o movimento anarquista atual, portanto, a agenda do negro não cabe no debate da emancipação humana porque esta, segundo a concepção reinante destes anarquistas, já inclui por tabela o negro. Na verdade, esta “emancipação humana”, longe de arrebentar os grilhões que prendem em diferentes níveis as categorias sociais em sua complexa diversidade, é extremamente mesquinha e reduzida ao plano das liberdades individuais, escamoteando, sorrateiramente, o princípio inaugural do anarquismo do século XIX para escanteio, a saber: “a propriedade é um roubo”.

Realmente, o atual movimento anarquista se afastou paulatinamente da classe trabalhadora porque suas aspirações não são as mesmas. No fundo, não faz sentido, para estes novos anarquistas, abrir mão da qualidade de proprietários que são para lutar pelo fim da única garantia que lhes confere privilégios, inclusive, o de se darem ao luxo de se dizerem anarquistas e libertários. Por isso, a falsa radicalidade de seu discurso vazio e cheio de frases de efeitos retóricos, pelo qual, por um lado, nunca se chega à essência da exploração humana, que revelaria a questão do negro, e, por outro, dissimula o profundo racismo deste anarquismo de gabinete. Desvelar o segredo do trabalho em toda a sua amplitude e exploração é reconhecer o papel do africano e afrodescendente na origem da acumulação primitiva capitalista e da instituição da propriedade privada moderna.

Não é coincidência, portanto, que os trabalhadores de baixa qualificação e mal remunerados reflitam a população afrodescendente, como mostram as estatísticas, pelas quais o negro aparece recebendo piores salários que mulheres brancas e a mulher negra, superexplorada, geralmente empregada doméstica ou babá de alguma perua branca que sequer empurra o carrinho de bebê, constitui a base da pirâmide, recebendo os piores salários de toda a sociedade.

Por isso, tais defensivas, por parte daqueles anarquistas e, muitas vezes, punks, indicam, no mínimo, o quão pouco sabem do que é sentir na pele o preconceito racial, já que necessariamente suas consciências operam numa zona de conforto inerente à sua própria condição social. O que eles não conseguem perceber, entretanto, é o tratamento desigual dispensado ao negro em todos os âmbitos sociais. Por exemplo, entre muitas outras coisas, é muito diferente quando um negro vai a um shopping center e um branco, mesmo este sendo pobre. Aqui o exemplo não é fortuito, já que o conceito de liberdade moderna esta subordinado ao consumo de mercadoria. Mesmo detendo de poder aquisitivo, o negro sempre carregará o estigma de suspeito e atrairá os olhos da vigilância, tendo assim sua liberdade restringida.

É claro que nem todos os anarquistas brancos ignoram as relações raciais e de classe. Certa vez, um amigo branco, punk e anarquista, me fez uma confissão comovente: “Somos sem querer herdeiros da ordem mundial capitalista, patriarcal e branca, detentora do poder político e econômico. Nós, brancos, somos os representantes involuntários do colonialismo, ocupamos por si só uma posição privilegiada. Mas, como punks, temos a obrigação e o dever de rejeitar nossas posições herdadas de raça ou classe, e, se não tocarmos nas questões fundamentais, como a do negro, tudo não será mais que hipocrisia”. No entanto, não importa o quão bem-intencionado algumas pessoas possam ser. Na prática, se este tipo de mea culpa não ultrapassar os gestos simbólicos de uma solidariedade artificial, tais como visitar a sede de algum grupo revolucionário negro e ficar tempo suficiente para tirar selfies com o punho fechado apontado para o ar, seu efeito é nulo.

Sem dúvida, nestes moldes, o máximo de atuação possível de uma militância anarquista hoje é justamente o ápice de sua decadência. Dentre outras coisas, daí sua fragilidade teórica e completa inexpressividade social, restrita aos pequenos espaços reservados ao comércio de livros ou lanches vegetarianos, como feirinhas alternativas. Absorvidos completamente pela lógica fetichista do lucro, os mercadores anarquistas negociam grandes ideais a vil metal. Nada poderia ser mais abjeto! O que diria Mikail Bakunin a estes vendilhões do templo? Quanta diferença do anarquismo combativo dos anos de 1930! Diante de tão abominável baixeza, só me resta lembrar, como objeto de consolo, uma passagem da obra de Abel Paz Povos em Armas, em que Buenaventura Durruti e Francisco Ascaso se vingam do capataz que torturava trabalhadores quase escravizados no pelourinho de um latifúndio nas Antilhas, durante a passagem épica e vingadora dos dois anarquistas pelas Américas – se me lembro bem, esse episódio se deu em Cuba. Vingavam trabalhadores negros!

Claro está que o problema da falta de representatividade de raça-classe proletária dentro do movimento anarquista existirá enquanto este permanecer dentro dos limites eurocêntricos das raízes do anarquismo e do punk e não realizar uma autocrítica devastadora sobre suas atuais bases. Portanto, seria extremamente importante reconhecer como as potências da cultura dominante, colonialista e escravagista puderam alienar tão poderosamente aqueles que se contrapuseram, no início e em seus fundamentos originais, às injustiças e desigualdade produzidas por este mesmo sistema de dominação. Só assim, o anarquismo desceria para as suas verdadeiras bases: o proletariado explorado.

Ao mesmo tempo, relegar as demandas das ditas minorias para um segundo plano em nome da luta de classes, da soberania ou outras pautas da esquerda proletária é reproduzir as desigualdades em benefício da luta revolucionária que será conduzida necessariamente por uma vanguarda composta invariavelmente por brancos bem nascidos, que tiveram uma boa educação, curso superior etc. Um bom exemplo disso é o Partido dos Trabalhadores. Com exceção do nome da legenda do partido, do Lula e do Vicentinho, nenhum político do PT se parece com o povão trabalhador, negro ou nordestino, que entopem como judeus a caminho da câmara de gás o transporte público das metrópoles quando, de madrugada, saem para a labuta. É só olhar os Haddad, os Suplicy, os Paulo Pimenta, as Gleisi Hoffman, os Ruy Pimenta, os José Dirceu, os Paulo Teixeira e muitos outros dirigentes do partido. Todos ricos e brancos.

Mas, por outro lado, não estou defendendo uma setorização dos movimentos em grupos identitários lutando cada um por si e por sua causa. Tampouco um movimento punk e anarquista constituído só por negros.

Pode parecer paradoxal, mas o que se reivindica aqui não é o “lugar de fala”, e, sim, a pluralidade na unidade. O lugar de fala, isto é, a suposição de que só o negro pode falar pelos negros, só a mulher, pelas mulheres, só o gay, pelos gays, só os pobres, pelos pobres etc., é um dos maiores erros táticos dos movimentos de ação afirmativa, porque nega o altruísmo, condição sine qua non para uma sociedade igualitária, solidária e justa. Não é através de um monólogo que se alcançará o entendimento, que só é possível pelo diálogo, pela troca de informação e experiência, pelo reconhecimento necessário, sensível e doloroso do outro.

O que se propõe aqui é a legitimidade da fala, isto é, a pertinência e validade procedente das teses defendidas num discurso irradiado de certo lugar definido por variáveis de elementos históricos, culturais, sociais, políticos, econômicos e, obviamente, raciais. O que implica em interlocução e que o outro se coloque no meu lugar.

O lugar de fala, inversamente, pressupõe o não ouvir, a ditadura do ditado, a interdição dos pontos de contato e, sobretudo, o que é mais escandaloso, a desconstrução da identidade, já que esta só se engendrada a partir de diferenças e semelhanças, numa palavra, a partir do outro. Recusar a réplica, a opinião contrária ou a refutação é, de antemão, censurar qualquer possibilidade de igualdade real por meio de um consenso. Amarrar mordaças, calar a boca, coibir vozes dissonantes, não é apenas autoritário e antidialético, é também criar barreiras, construir muros, fomentar um apartheid de ideias. E, o que é ainda pior, no limite, o lugar de fala não pode ir muito além da luta por inclusão, que não faz o menor sentido numa sociedade inerentemente excludente.

Realmente, um negro pode enriquecer, comprar um carro importado, uma mansão, se casar com uma loirinha de olhos azuis e justificar sua trajetória de vida pela meritocracia. Conheço um rapper, bastante atuante no movimento negro, de pele mais escura que a minha e um basto cabelo dreadlock, que se orgulha de sua infância pobre de catador de material reciclável e de ter conseguido passar numa boa universidade. Apesar dos constantes convites a cantoras negras para se apresentar com seu grupo, eu nunca vi esse camarada namorar uma mulher negra. É impressionante, mas o cara só pega branquinha, de classe média, tipo patricinha. No último show que eu fui do grupo dele, que devia ter umas cem pessoas, ele estava ficando com a mina mais branca do pico, tipo uma dessas alemãezinhas de Santa Catarina. Fiquei imaginando como ele encontrou um espécime tão ariano no meio do movimento negro! Será que a ela é vedado também o direito de falar?

Este assunto é bastante polêmico, e sei que vou receber críticas, todavia é preciso tocar nessa ferida também. Não tenho nada contra relacionamentos inter-raciais, confesso que eu mesmo já namorei pessoas de outra cor e sou de opinião que o amor verdadeiro supera todas as barreiras, inclusive e obviamente as raciais, mas a reincidência de negros bem-sucedidos que se casam com mulheres brancas me causa um embaraço constrangedor. Toda a questão da reafirmação do padrão de beleza da raça negra contra a tirania estética europeizante é complemente deslegitimada por este tipo de conduta obsessivamente reiterada pelos negros no Brasil.

Quando questionados, já me alegaram que o ativismo em um movimento independe da vida intima de cada um. Este tipo de distinção, entre a vida pública, na qual, em teoria, devemos ser incorruptíveis, e a vida privada, de onde, se deduz, por oposição, tudo é permitido, não passa de uma falácia monumental da moral burguesa. Na prática é uma ficção. Vide o trabalho hercúleo dos tribunais para varrer para debaixo do tapete a sujeira dos poderosos envolvidos em todo tipo de corrupção na vida pública. Oprimir uma mulher, humilhá-la, agredi-la, trai-lá com amantes, porque a vida privada não é de interesse público, é algo monstruoso e indigno de um revolucionário. Aceitar esse tipo de premissa, para justificar atitudes incoerentes, é reproduzir todos os vícios que estão na raiz de tudo aquilo que se diz combater.

Sem dúvida, é sempre muito fácil apontar o dedo para o outro. Só com agente é sempre diferente, não é: somos perfeitos! Sempre tem uma desculpa, uma justificativa, uma racionalização. Certa vez conheci um anarco-punk muito influente (sim, com todas as letras, o cara era um líder) que tinha um histórico de violência contra a mulher. Quando certa vez um grupo minoritário, inclusive eu, se revoltou contra os constantes hematomas que a namorada carregava no rosto, a maioria tomou partido em defesa dele dizendo que ele podia bater nela porque os “direitos eram iguais”, ou seja, ela podia reagir ou agredir ele também. Pode parecer bizarro, mas isso aconteceu de verdade, e é só um, dos muitos exemplos, de como o nosso idiossincrasismo pode ser muito pior do que o alvo pelo qual dirigimos o nosso ódio.

Diante de tudo isto, do que expus, eu poderia ter simplesmente saído do movimento punk e anarquista e procurado, como fez o meu amigo do início do texto, um outro movimento, com maior representatividade do negro, como o rap, por exemplo. Todavia, não acredito no monopólio do discurso, numa guerra de todos contra todos, mônadas isoladas no mundo ou, como diz a música, cada um no seu quadrado.

Hoje a sociedade parece estar dividida em incontáveis fãs clubes; existem fãs clubes para tudo, em todos os níveis e instituições: na universidade, na igreja, nos partidos, no movimento negro, feminista, LGBT, anarquista, punk, sertanejo, pagode etc. Tudo é fã clube, com o seu culto cego a dogmas invioláveis, indiscutíveis, e ídolos sagrados.

Uma fragmentação de tal tipo é negação de toda e qualquer sociabilidade que só se efetiva de fato por meio da troca de mercadorias. Isto é, o fetiche ou a reificação, única relação social possível: a das coisas.

É a destituição absoluta, a implosão total, a aniquilação de tudo aquilo que torna a todos iguais – mulheres, LGBTs, negros, índios, brancos, mestiços, amarelos, idosos, crianças, deficientes físicos – enfim: a humanidade.

A comunicação é um fato humano, um dos mais essenciais, miná-la é desumanizar ainda mais o ser humano, já tão coisificado. Através da comunicação é possível compreender os limites intransponíveis e insuperáveis de realidades distintas, mas, ao mesmo tempo, construir laços possíveis e inquebráveis de solidariedade perante as diferenças. Somente pelo debate, pelo bate-boca, pela discussão acalorada, pela briga de botequim, por lavar roupa suja, pelo acirramento, pelo conflito franco, aberto e direto, que será possível recolocar a questão do negro numa perspectiva transformadora e, ao mesmo tempo, conciliadora, por meio da justiça social. Somente assim, pelo reconhecimento da diversidade, poderemos sonhar com uma sociedade com igualdade de condições que vai além da perversa igualdade jurídica.


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Um comentário:

  1. Acabo de procurar saber mais sobre a cultura punk e por só ver pessoas brancas me senti deslocado, como se não fizesse parte disso, fico feliz que estava errado e descobri varias bandas novas com letras ótimas aqui, era simplesmente incrível e muito bem escrito nem acredito que fui o primeiro a comentar

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