quarta-feira, 25 de março de 2020

Budismo - Série Religiões

Os fatos prodigiosos acerca do nascimento de Buda – como ter nascido do flanco direito de sua mãe, a rainha Maya, depois de ela ter sido visitada por um elefantinho branco descido do céu, e o recém-nascido ter dito: “eu sou o senhor do mundo” – são incertos. Aliás, toda a vida de Buda está envolta em mistérios e lendas. Não é à toa, pois constam 577 biografias de Buda referentes às suas reencarnações anteriores e posteriores ao século VI a.C., período no qual viveu Sidarta Gautama.


Sidarta nasceu por volta do ano 556 a.C., em Kapilavastu, capital de um pequeno reino próximo do Himalaia, território atualmente pertencente ao Nepal. Filho do rei Suddhodana, rico chefe do clã xátria da tribo Sakya, este foi aconselhado a manter o jovem Sidarta isolado do mundo, enclausurado no palácio, entre comodidades e luxo, e recebendo instrução aristocrática para governar. Alheio à vida exterior, sob o teto da casa paterna, se casou aos 19 anos com uma prima, e tendo com ela um filho, Rahula, o Desejado.

Desobedecendo as ordens do pai, Sidarta atravessa os muros do palácio e descobre estarrecido a pobreza em que os súditos vivem. O mundo estava muito longe do esplendor palaciano. Assim, pela primeira vez, fora de sua concha, teve contato com a dor. Mas até mesmo a opulência do palácio era enganadora, rodeado de bajuladores e, evidentemente, traidores, em que estava. Sidarta passa então a fazer considerações sobre a miséria humana e medita sobre a dor que acompanha o ser humano desde o seu nascimento num mundo de aparências. Desgostoso da vida, abandona a mulher e o filho para errar como um asceta mendigo pelo mundo a procura da salvação.

Seis anos depois, tido como santo pelo povo, vive enfurnado numa caverna, meditando na busca do Atman, o mar interior e eterno. Sidarta buscava atingir o êxtase, isto é, o estado de espírito em que, num momento de revelação, pode se contemplar a certeza absoluta, que não necessita de demonstração racional, de que o tempo, a variedade do mundo, o bem e o mal são ilusões, e que, por detrás das aparências, existe um mundo imutável e único. Sob orientação dos brâmanes, vivenciou um longo período de jejum e penitência, tendo a saúde bastante debilitada. Apesar disto, não conseguiu a desejada revelação sobre os problemas relativos à dor, pois o grande problema era como escapar do ciclo das reencarnações.

Entre 532 a 533, renunciou o ascetismo, abandonando o ioga, a penitencia do corpo e adotando uma dieta conveniente. O mundo religioso se mostrou para ele tão ilusório quanto o mundano. Diante disso, os cinco discípulos que o acompanhavam, escandalizados, o abandonaram.

Durante uma noite, Sidarta enfim obteve a iluminação (revelação), enquanto lutava com as ilusões que o demônio Mara produzia em seu espírito. Sua compreensão da natureza das coisas, o seu “despertar”, que o tornou Buda, o Iluminado, no entanto, não se deu através de um estado de êxtase, e, sim, através de seus próprios esforços filósofos.

Após meditar debaixo de uma figueira, procurou os cinco discípulos que o abandonaram e anunciou sua descoberta: é possível quebrar as novas reencarnações e escapar dos sofrimentos do mundo.

Buda formulou a sua doutrina, que é um conjunto religioso e filosófico, como um veículo que transporta os seus seguidores para a santidade e a libertação da dor. Libertação essa que se obtém eliminando de nós todos os desejos. Os desejos, de fato, são a fonte principal das preocupações e, portanto, da dor.

Quando os laços do desejo forem rompidos, será o fim da própria ilusão do eu. Haverá apenas o Nirvana, o verdadeiro conhecimento. Sidarta nunca explicou, no entanto, o que é o Nirvana. Dizia que era algo para ser experimentado e não podia ser expresso em palavras.

Aos monges que o ouviram, Buda resumiu as ideias em quatro pontos – “Quatro Nobres Verdades”:

1 – Tudo é dor;

2 – A dor nasce do desejo;

3 – A dor cessa com a extinção do desejo;

4 – Para obter o fim do desejo é preciso seguir o caminho dos Oito Passos.

Primeiro passo: a compreensão perfeita por meio do estudo da doutrina budista.

Segundo passo: a aspiração perfeita, que se deve obter na intenção de perseverar o caminho budista, e assim alcançar a iluminação espiritual.

Terceiro passo: a fala perfeita, na qual se deve falar de modo verdadeiro, educado, agradável e sereno.

Quarto passo: a conduta perfeita, ou seja, seguir os cinco mandamentos budistas: não matar, não roubar, não cometer adultério, não mentir e não consumir substâncias tóxicas.

Quinto passo: o meio perfeito de subsistência, que é uma conduta de vida que não provoque ofensa à doutrina budista.

Sexto passo: o esforço perfeito para melhorar a personalidade e comportamento conforme os ideais budistas.

Sétimo passo: a atenção perfeita do pensamento procurando verificar erros de conduta.

Oitavo passo: a contemplação perfeita sobre os ensinamentos do budismo.

Para chegar à libertação, existem dois caminhos:

O pequeno veículo liberta só uns poucos, que se dedicam a vida monástica.

O grande veículo diz respeito à salvação universal, em que todas as pessoas podem se tornar um Buda, isto é, iluminado, sem recorrer à vida monástica.

A doutrina budista compreende também um decálogo, fundamentado nos Oito Passos, que os monges devem observar integralmente e que os leigos podem seguir apenas os cinco primeiros:

1 – Não matar nenhum ser vivo;

2 – Não roubar;

3 – Não cometer adultério;

4 – Não mentir;

5 – Não beber substâncias alcoólicas;

6 – Não tomar qualquer alimento, além da refeição do meio-dia;

7 – Evitar os espetáculos mundanos;

8 – Não ornamentar nem perfumar o corpo;

9 – Evitar os leitos macios ou elevados do chão;

10 – Viver em constante pobreza.

Tal qual o hinduísmo, o budismo prega a reencarnação das almas de um ser vivo para outro até a purificação completa quando, depois da última reencarnação, o espírito passa para o Nirvana.

Inversamente ao hinduísmo, porém, nega a existência de um Deus Criador, porque, segundo a doutrina budista, o mundo surge e se desenvolve pela própria vontade (panteísmo), negando também o valor do culto sacrificial.

Restritos a apenas uma refeição por dia, os monges são obrigados à castidade total, à fuga dos prazeres e à pobreza absoluta. Devem apenas a se ocupar do estudo dos textos antigos e das orações, feitas à base de fórmulas, às vezes, mágicas, e das ladainhas.

domingo, 15 de março de 2020

Eddie Cochran: pioneiros do rock’n’roll

Caçula de cinco filhos, Eddie Cochram nasceu em Albert Lea, Minnesota. Aos doze anos de idade aprendeu a tocar violão. Em 1953, sua família mudou-se para Bell Gardens, Califórnia. Em 1955, Eddie formou parceria com um amigo chamado Hank Cochran, os Cochran Brothers. Curiosamente, apesar do nome do grupo e do sobrenome em comum, não havia qualquer relação de parentesco entre ambos.
Eddie Cochran
A maior parte das canções da dupla era do gênero country music, o que não impediu de gravarem rockabilly também. Mais tarde, Hank partiu para Nashville e se dedicou apenas à música country enquanto Eddie começou a escrever suas próprias músicas.

Em 1956, Eddie conheceu o compositor Jerry Capehart, marcando o início de uma amizade fecunda para o rock’n’roll. Dessa amizade, a carreira solo de Eddie ganha grande impulso, o que o leva a assinar com a Liberty Records.

O ano de 1957 marcou seu primeiro sucesso, "Sittin´ in the Balcony". Porém, somente em 1958, Eddie emplaca uma música nas paradas da Billboard, "Summertime Blues", escrita em parceria com Jerry.

Não é sem exagero que "Summertime Blues" não só consagraria o estilo de Eddie Cochran mas mudaria para sempre o futuro do rock, tanto no que diz respeito à composição da letra quanto da música, que apresenta uma nova concepção de rock’n’roll, cantado em voz estridente, a guitarra sonoramente metálica e batida de palmas.


domingo, 8 de março de 2020

Especial Dia da Mulher: Shakespeare


Por Jean Pires de A. Gonçalves

Nos dias atuais, Shakespeare poderia ser considerado politicamente incorreto, dados alguns aspectos de suas peças, no mínimo, para dizermos assim, “preconceituosos”. Falstaff sofre bullying por ser obeso e Aarão, o mouro, entre as muitas de suas qualidades negativas, de vilão, soma-se a pele escura.

Peça Otelo, de Shakespeare
Desdêmona, de Frederic Leighton
Na verdade, Shakespeare reproduz os preconceitos de seu tempo, o século XVII, um mundo muito mais inclemente que o nosso. O caso clássico é Shylock, o rico usurário judeu de O mercador de Veneza. Aparentemente, Shakespeare destila todo o seu veneno na construção do personagem, que é ultraestigmatizado, apesar do dramaturgo jamais ter conhecido um único judeu; pois os judeus haviam sido expulsos da Inglaterra quatro séculos antes.

Personagens caricatos, assim como hoje, despertavam todos os tipos de paixão e, claro, atendiam às expectativas catárticas do público da época. Mas Shakespeare não jogava para a plateia sem uma dose de dissenso. Na noite de amor de Otelo, o general mouro, e sua amada Desdêmona, Iago, em companhia de Rodrigo, denuncia a Brabâncio, senador e pai da moça, o encontro proibido, com as seguintes palavras:

“Meu senhor, pelas feridas de Cristo! O senhor foi roubado! Que humilhação! (...) Neste instante, agora, agorinha, um bode preto está cobrindo sua branca ovelhinha (...) Só porque nós viemos lhe fazer um favor e o senhor pensa que somos dois desordeiros, terá um cavalo berbere cobrindo sua filha; terá seus sobrinhos relinchando para o senhor; terá corcéis por primos e ginetes por parentes”.

Ao longo da peça, Shakespeare pinta o personagem Iago, branco e cristão, como um dos vilões mais desprezíveis e malignos da história da literatura, enquanto Otelo, o mouro, aparece surpreendentemente como um homem de caráter íntegro, digno e virtuoso. Essa inversão e humanização de um personagem que devia ser o avesso do tipo ideal da cristandade, tão poderosa naqueles tempos, é, no mínimo, bastante corajosa, para não dizer o óbvio, genial.

Tal esquema, no entanto, não foge à regra. Acuado, Shylock desabafa: “I am a Jew. Hath not a Jew eyes? hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions?” (Eu sou judeu. Por acaso, não teria olhos um judeu? Mãos, órgãos, corpo, sentidos, afetos, paixões?).

De fato, parece mesmo que o bardo paira sobre o seu tempo e, em doses homeopáticas, oferece um antídoto para o futuro, até mesmo para nós, que já atravessamos o limiar do século XXI e continuamos batendo cabeça!

Mas estamos no 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o que Shakespeare tem a dizer às mulheres? 

Infelizmente, Otelo, nosso herói, não poderá servir de exemplo. Levado até o extremo do ciúme pelas intrigas de Iago, o nobre mouro mata sua amada. “(...) Este que, de olhos baixos, apesar de não ser de seu feitio mostrar-se comovido, agora derrama lágrimas de maneira pródiga, como as árvores das Arábias derramam sua goma medicinal...” diz Otelo, para logo em seguida apunhalar-se de modo fatal, assim como a adolescente Julieta em seu último ato.


Tais desfechos trágicos não eram um problema para Shakespeare. Mas em tempos em que feminicídio é crime hediondo – e já não era sem tempo – não há mais espaço para a infame “legítima defesa da honra”.

Devemos achar em outro lugar, sem abandonar as peças de Shakespeare, já que são tão prodigiosas em personagens femininos marcantes, como Lady MacBeth, Julieta, Ofélia, Rosalinda, entre outras.


Qual seria o papel da mulher em suas peças, escritas em um universo onde a vontade patriarcal chegava às raias do poder absoluto?

Na peça, A comédia de erros temos um exemplo interessante de como Shakespeare não aceitava como dado o papel determinado socialmente à mulher. São bastante interessantes os diálogos travados entre duas irmãs, Adriana e Luciana, sobre a relação conjugal e o amor.

Vejamos primeiro como a conformada Luciana encara a relação homem-mulher:

Luciana – E não pode acontecer de você ter esquecido por completo os seus deveres de marido? Não pode ser, Antífolo, que, em pleno florescer do amor, o seu afeto vai murchando ainda em botão? Será que o amor em construção já está apodrecendo na estrutura? Se desposou minha irmã pela riqueza, então, por amor a essa riqueza, trate-a com mais delicadeza. Se você gosta de outra, trate disso na surdina; mostre-se de olhar vendado, abafe o seu amor infiel, não deixe que minha irmã o enxergue com outros olhos. Não permita que sua própria boca seja o orador de seu pecado. Tenha para com minha irmã olhares ternos, palavras bonitas, encarne a deslealdade com elegância. Apresente o seu vício paramentado como se virtude fosse. Tenha uma presença límpida, embora o seu coração esteja manchado. Ensine ao pecado a postura de um mártir cristão. Seja falso em segredo; que precisão tem ela de saber? Se nem mesmo ladrão de galinha comenta seus atos corruptos! Seria maltratá-la duplamente: ignorar-lhe a cama e, quando estão à mesa, deixar que ela leia a traição em seus olhos. Quando bem manejada, a ação vergonhosa adquire fama peculiar, pois um mau passo sempre se pode confrontar com palavras bem postas. Ai de nós, pobres mulheres! Vocês só precisam fazer-nos acreditar (criaturas crédulas que somos) que vocês nos amam. Enquanto outras têm o seu braço, queremos que vocês nos mostrem a manga. Nós nos movimentamos em sua órbita, e vocês podem se mover. Assim, meu nobre irmão, volte lá para dentro, console minha irmã, anime-a, chame-a de esposa. É diversão saudável usar palavras em certa medida vazias quando o doce som de um elogio vence a discórdia.

Muitas mulheres nos dias de hoje, por incrível que pareça, podem achar um bom conselho as recomendações de Luciana para o marido de Adriana, Antífolo. Mas não é bem isso o que a principal interessada Adriana espera de seu esposo e do lugar da mulher no casamento, como podemos perceber neste diálogo:

Adriana – Meu marido ainda não voltou? E nem o escravo que com tanta pressa mandei que buscasse seu amo? Veja, Luciana, são duas horas.

Luciana – Talvez algum mercador tenha lhe feito um convite, e do mercado ele foi direto para um almoço em outro lugar. Minha boa irmã, vamos almoçar, e deixe de se queixar. Os homens são donos de sua liberdade. O tempo é mestre deles, e, quando têm tempo, eles podem ir e vir. Sendo assim, seja paciente, minha irmã.

Adriana – Por que deveria ser a liberdade deles superior à nossa?

Luciana – Porque a ocupação deles é fora de casa.

Adriana – Ele não gosta quando eu o trato do jeito que ele me trata.

Luciana – Saiba que ele segura as rédeas das tuas vontades.

Adriana – Só os jumentos é que se deixam levar por rédeas desse tipo.

Luciana – Ora, uma liberdade voluntariosa será chicoteada pelo desgosto. Nada existe sob a luz do firmamento que não esteja ligado à terra, ao mar, ao ar, e por eles limitado. Sejam bestas, peixes ou pássaros, as criaturas fêmeas servem aos machos, e estes as comandam. O homem, a mais divina das criaturas, o mestre de todos, senhor deste vasto mundo e das águas salgadas e selvagens, dotado de alma e de faculdades intelectuais, de maior proeminência que peixes e pássaros, ele é o amo e senhor de sua fêmea. Deixe, então, que as tuas vontades sigam o consentimento de teu esposo.

Adriana – Essa servitude é o que te impede de casar.

Luciana – Não, não isso, mas sim as incomodações do leito conjugal.

Adriana – Fosse você casada e teria voz ativa.

Luciana – Antes de aprender a amar, eu me exercitarei em obedecer.

Adriana – E se teu marido quiser pular a cerca?

Luciana – Enquanto ele estiver longe de casa, eu fico esperando.

Adriana – Paciente e impassível! Não é de admirar que ela tire tempo para reflexões; podem ser submissas, sim, as criaturas que não têm outra motivação. Já uma alma infeliz, machucada pela adversidade, a esta nós pedimos que se acalme, sempre que a ouvimos chorar. E, no entanto, estivéssemos nós oprimidos pelo peso de uma dor semelhante, estaríamos nos queixando também, e talvez mais ainda. Tu, que não tens parceiro indelicado que te deixe aborrecida, é exigindo de mim uma paciência inútil que me queres consolar. Mas, se tu viveres para ver-te destituída de teus direitos de esposa, vais deixar de lado essa paciência boba de lunática.

Enfim, num mundo como o nosso, que parece andar para trás, de terra plana a mulheres que se orgulham em serem donas de casa submissas a um marido infiel, Shakespeare ainda tem muito a ensinar.

Que este 8 de março Shakespeare sirva de inspiração para que as mulheres optem por ser como Adriana e que tenham voz ativa ante a sociedade e as questões de gênero.

SHAKESPEARE, William, “Comédia de erros”, tradução de Beatriz Viégas-Faria – Porto Alegre: L&PM, 2004.

SHAKESPEARE, William, “Otelo”, tradução de Beatriz Viégas-Faria – Porto Alegre: L&PM, 2002.



quinta-feira, 5 de março de 2020

Filósofos naturalistas jônicos - parte 2 - Nonas Filosóficas

O terceiro dos jônicos, Anaxímenes (588-524) encontra no ar (quer dizer, no estado gasoso) o princípio original de tudo. A terra, a água e as nuvens são condensações; o fogo é dilatação do ar, o qual, por sua vez, é o suporte de toda a vida, a alma cósmica ativa. Admite, com Anaxágoras, que este mundo visível, com todas as coisas particulares que nele estão contidas, tendo nascido de uma matéria primitiva, há de acabar também por volver a ela, recomeçando então o processo universal (1). Não compartilha as ideias astronômicas, relativamente desenvolvidas, de Anaximandro. Crê que a Terra é um disco que flutua no oceano gasoso, e o céu uma abóbora hemisférica cristalina, na qual se encontram as estrelas fixas como cravos, e que gira ao redor da Terra, como “o chapéu ao redor da cabeça”. O Sol se move na região norte da Terra, de Oeste a Leste, e durante a noite fica oculto atrás de enormes montanhas.


Os pensamentos filosóficos desta filosofia da natureza dos jônicos se distinguem das anteriores especulações cosmogônicas em não personificarem a natureza e os seus elementos, nem os reduzirem a manifestações de fictícias divindades pessoais, nem os descreverem como ações destas, pois tentam encontrar o supra-histórico, o permanente na mudança dos fenômenos.

Então surge pela primeira vez o conceito de substância. Começa-se a observar que as variações, os acontecimentos, não podem ser pensados de uma maneira determinada, senão supondo algo de permanente, no qual se realizam. Mas enquanto para Tales e Anaxímenes, a substância é algo perceptível pelos sentidos (água, ar), Anaximandro supera, com o seu conceito de apeiron, a percepção sensível. Esta filosofia jônica possui ainda um certo caráter religioso-místico. Considera a matéria como algo divino, e o cosmos, com um conjunto dos seus fenômenos, aparece como uma evolução da substância divina.

Pode se ver nisto uma espécie de equação, entre Deus e o cosmos (isto é, panteísmo), que se confirma tendo em conta que a arché (a substância primordial) não pode se equiparar com o conceito científico moderno de matéria passiva (a “matéria”). Naturalmente, pensa o jônico que a matéria está dotada de força e inclusive de vida. Os fenômenos cósmicos aparecem assim como processos vitais, que se creem conhecidos quando se sabe qual a matéria que lhes serve de fundamento. Por isso, e por se encontrarem reunidos indistintamente na arché os conceitos de matéria, força e vida, se chamou à filosofia jônica hilozoísmo (animação da matéria, de hylé, matéria, e zoon, vivente). Isso não obsta, naturalmente, a que em Anaxímenes se inicie a distinção entre a pura (passiva) matéria como tal e a matéria vivente, designada propriamente pelo ar. Além disso, a ideia de que há um princípio vital na base do mundo é a hipótese que acompanha toda a evolução da filosofia grega.

(1) Esta doutrina, em Anaximandro, tem ainda um caráter moral-religioso. A existência dos seres singulares é, de certo modo, considerada ilícita; estes seres expiam a sua injustiça por meio da sua perdição e aniquilamento.

(August MESSER, “História da Filosofia”, Editorial Inquérito: Lisboa, 1946. Obra em domínio público).




domingo, 1 de março de 2020

A Princesa Russa - um conto

“O Desenho”



Por Jean Pires de Azevedo Gonçalves

Numa época em que o amor havia se tornado anacrônico, K. era um verdadeiro D. Quixote. Assim como o cavaleiro da triste figura, K. passou a vida inteira lutando contra moinhos de vento. Por algum motivo que não nos convém perscrutar aqui, meteu na cabeça acreditar em histórias de amor com final e viveram felizes para sempre. Então, entre idas e vindas, se apaixonava perdidamente e fazia de casos corriqueiros verdadeiras tragédias dignas de um Romeu e Julieta. Foram inúmeras batalhas, aventuras pitorescas, guerras inglórias, fracassos retumbantes. Mas, ao contrário do hidalgo de La Mancha, faltava a K. uma consciência, lúcida, sensata, um Sancho Pança, que, na qualidade de ego freudiano, vez ou outra, o trouxesse para a dura realidade em que vivemos. Por isso, K. não tinha freios, alguém para dizer que “isso não vai dar certo”. Em toda a sua vida, nunca ouviu uma história ou leu um romance em que os caminhos de um amor de verdade transcorressem sem obstáculos. O amor era sempre uma causa que valia a pena.


K. era um estudante de letras, sua segunda graduação. Antes, estudara geografia; mas, convencido de que a terra precisa mais de poesia do que economia, decidiu aprender a arte da métrica e da rima. Naquele semestre, se matriculou no curso de Introdução à Literatura Russa depois de se tranquilizar ao saber que as aulas eram ministradas em língua portuguesa e não em russo.

O primeiro dia de aula é sempre muito conturbado; a sala estava abarrotada e os alunos disputavam lugar. Porém, K. já tinha encontrado seu cantinho no fundo da sala e assistia em silêncio o vai e vem dos estudantes, que conversavam entusiasmados. O professor entrou na sala e imediatamente todos emudeceram. Após breve apresentação do curso, o professor passou a arguir sobre aqueles maravilhosos escritores russos: Pushkin, Gogol, Dostoievski, Tolstoi, Tchekhov... Mas, muito embora a aula estivesse bem interessante, K. era irremediável sonhador e, após observar bem todos os presentes, mergulhou em seu mundo interior que se revelava no estranho hábito de desenhar no caderno caricaturas de algumas figuras marcantes da sala de aula. Em seguida, essas figuras se tornavam personagens, como bruxos, feiticeiras, duendes, aranhas, cossacos... Cossacos! Sim, a sala estava repleta de cossacos sanguinários. Neste instante, K. constatou alarmado que o professor já não falava mais português e, sim, russo. “É uma cilada!”, pensou. Então a porta da sala se abriu. Alguns instantes de silêncio e o suspense gerado pela expectativa foi quebrado pela presença de uma moça de longos cabelos negros e que mais parecia uma bonequinha de porcelana. Ela entrou na sala carregando uma cadeira, pois todas estavam ocupadas. Desafiando as leis da física, a estudante descobriu um espaço no meio daqueles corpos, ajeitou a cadeira, sentou e, muita compenetrada, passou a assistir a aula. K. olhou para ela e teve uma certeza: “Uma princesa, uma linda princesa russa! Será uma Romanov? Anastásia perdida? Não, é muito nova para a infeliz Nastenka. Provavelmente ela é de uma linhagem mais nobre e antiga. Talvez, da casa dos Kroprotkin. Sim, uma princesa Kroprotkin, aqui! Mas o que uma princesa russa faria nesse antro? Seja como for, é preciso salvá-la”.

Pronto, o quiprocó estava armado. Era preciso tirá-la dali rapidamente. Mas como? O que fazer? K. estava embriagado demais pela beleza de sua “princesa russa” para entrar em ação. Além disso, pululavam perigos naquele ambiente infestado por criaturas maléficas. Num dos cantos da sala, um dos cossacos parecia querer defenestrá-lo do castelo. Num outro, um sinistro Rasputin preparava uma poção venenosa, provavelmente, para dar de beber à princesa indefesa. Aflito, K. olhou bem para o amor da sua vida, tentou ler sua mente, percebeu que ela estava sempre muito séria e conclui: “Ela está triste e enfeitiçada, sabe que estes abomináveis vilões preparam uma emboscada para sequestrá-la e levá-la para a vampira ruiva. Se eu conseguir fazer ela sorrir, vou quebrar o encanto que a enfeitiçou e, então, fugiremos daqui”.

Eis a questão. Como fazer sua princesa sorrir se, de fato, aquilo tudo nada mais era do que uma aula sobre literatura russa em que todos prestavam atenção muito circunspectos! Mas K. estava profundamente imerso em seus loucos devaneios para sair de si e aceitar a ordem natural das coisas. Sabia que por palavras seria impossível se comunicar com a tal princesa, já que palavras eram proibidas dentro da faculdade de letras. Então, teve a seguinte ideia: “Talvez, se eu desenhasse um retrato dela, ela entenderia que ela não está sozinha e que eu, seu humilde servo, estou aqui para ajudar”. Imediatamente, K. se pôs a desenhar, mas sua caneta falhava e não saía tinta. “Minha vida por uma caneta!”, resmungou. Há algumas coisas na vida que parecem colaborar com alguns de nossos propósitos mais malucos. A realidade, ao invés de trabalhar para manter a sobriedade dos fatos objetivos, frequentemente instiga a doce fantasia contra a fria lógica do mundo. E foi exatamente isso o que aconteceu. Alguém deixou cair uma caneta no chão, que rolou como uma seta de cupido justamente para os pés daquele que, até mesmo por razões médicas (psiquiátricas), era o menos indicado a receber uma graça do acaso. Não tenhamos ilusões, compatriotas, nada de extraordinário, apenas um acontecimento fortuito, casual. Realmente, tudo puro fruto do acaso! Mas, para K., o Destino ordenava: “Aqui tens tua caneta!”

K. começou a desenhar, primeiro a forma do rosto – ficou parecido –, depois os olhos e a sobrancelhas – ficou parecido –, o nariz – ficou parecido –, os cabelos, negros, lisos e longos – ficou parecido –; faltava a boca, fez um risco, mas ela tinha lábios benfeitos e K., com medo de estragar o desenho, não se sentindo capaz de desenhar lábios tão perfeitos, resolver parar. Olhou para o retrato e disse para consigo mesmo: “Os olhos, acho que consegui captar a essência dos olhos. Não saiu assim uma Monalisa mas, dado o clamor das horas, acho que está bom assim”. Depois, desenhou sete Matrioshkas em baixo do rosto. Em cima, desenhou uma dessas catedrais orientais, com seis torres, de cúpulas coloridas. No alto, um céu estrelado com nove estrelas e uma lua crescente – crescente como os nossos sonhos. Pronto, estava terminado. Mas aquele desenho era, acima de tudo, uma declaração de amor, não podia faltar um coração. Então, K. desenhou um grande coração em volta do retrato de sua princesa idolatrada. E assim aconteceu.

Agora, era preciso que o desenho chegasse ao seu destino. O Cupido já havia feito a sua parte, K. teria de fazer o resto. Dobrou o desenho, como um bilhete, e pensou em pedir para os colegas repassarem até o alvo de seus sonhos. Mas, pensou: “E se ela repassar o bilhete para frente? Bom, poderia se extraviar ou chegar até o líder que fala a língua estrangeira. Esta última hipótese seria interessante, o líder abriria o papel e procuraria o destinatário e o remetente, e assim seria bom, porque era uma declaração pública de amor. Todos aplaudiam e tudo ficava bem!” Todavia, e se o professor achasse que o desenho era dela para ele professor?! “Malditos boiardos!” Não, teria de ser de outro jeito. K. ficou maquinando, maquinando, maquinando. Imaginou mil estratégias, mil planos mirabolantes. Nada parecia bom. Enfim, tarde demais, o professor encerrou a aula e todos se levantaram e saíram da sala. K. agiu automaticamente, apenas seguindo o fluxo. Avistou sua princesa russa, que ia à sua frente, ia embora. Foi atrás mas logo a perdeu de vista. Afinal, estava sozinho e fez o que sempre fez no final da aula: tomou o prumo de casa.

No caminho, K. encontrou um colega e ambos se dirigiram para o ponto de ônibus. Mas olha só, quem estava lá, em meio a uma multidão de estudantes: a princesa russa! No alto da rua, surgiu um ônibus e seu amigo lhe disse: “O meu tá vindo aí”. Se despediram. K. ficou ali. Viu um banco vazio e sentou. Muitas pessoas entraram no ônibus, não a sua amada. O ônibus anda, não a sua amada. Esta ficou de pé, viu o banco vazio e se sentou ao lado do nosso D. Quixote das letras. Este viu o sonho de sua vida chegar muito perto de se realizar. Ensaiou várias vezes iniciar uma conversa, mas sua timidez não o permitia balbuciar palavra. Gesticulava os braços e as mãos, mas ela não percebia, porque escrevia alguma coisa no telefone celular. K., entretanto, não desistia. “Quando ela olhar pra cá, eu vou falar com ela”. E o tempo passava. De repente, um amigo da moça aparece e se aproxima. Ela se levanta e os dois começam a conversar bem na hora em que K., tomado de uma coragem súbita, decidira falar com ela! Lá vem vindo um ônibus. É o dela. É o de K. também! Ele se levanta. Muitas pessoas se aglomeram para entrar no ônibus. K. caminha, devagar, sem forças, atrás da sua venerada princesa. “Eu vou perdê-la pra sempre!”, suspira, desesperado. O desenho, K.! o desenho, entrega para ela, vamos, rápido, não deixa ela ir embora sem pegar o desenho!!! Nisso, K. movido por uma força sobrenatural cutuca o ombro da garota e entrega o desenho. Alea iacta est, impossível voltar atrás! Ela pega e olha com perplexidade: “O que é isso?” Não pergunta, nem ele sabe, têm coisas que não têm explicação (não é nada), apenas abra e olha (quando chegar em casa). Olha, o ônibus está lotado, logo logo vai sair; todos entraram, anda! Ela entra. K. sem conseguir acreditar no que fez fica paralisado sem conseguir dar um passo adiante. O ônibus fecha a porta e sai. K. fica onde está e então cai em si: “O dragão, o dragão engoliu ela!”

Ninguém pode sequer imaginar quantos tormentos e alegrias K. viveu durante aquela semana. Digamos assim, que este lunático viajou em frações de segundo entre o céu e o inferno, várias vezes, muitas vezes, infinitas vezes, e, nesse vai-e-vem, ficou completamente alienado do mundo que nos cerca. Ninguém melhor descreveu a sensação do amor que o poeta português Camões, que era caolho. Sim, caolho. No célebre soneto, o poeta diz que amar é um solitário andar por entre a gente. Quanta verdade em um simples decassílabo heroico! Quem poderia resolver esse paradoxo, o paradoxo do amor? Se alguém disser sim, não passa de um mentiroso, pois resolver o paradoxo é simplesmente decretar o fim do amor. No entanto, aqui não é o lugar para divagações filosóficas. Já está quase na hora de encerrar este conto, afinal, eu não ganhei um conto para escrever e, segundo as más línguas, tempo é dinheiro e, segundo as boas línguas, esta minha frase saiu deveras infeliz.

Na aula seguinte, K. foi mas sua princesa, não. E isso significa, em termos concretos ou da verdade dos fatos, o seguinte: um não real – como resposta. Mas na outra aula – seguinte a aula seguinte – K. estava entrando na sala de aula e logo viu sua princesa no fundo. K. olha para ela, resignado; entretanto, ela manda um sorriso para ele. K., então, surpreendido, devolve o sorriso com um sorriso tímido, que mal expressava um décimo da felicidade que sentia. O que aconteceu depois? Não interessa, o que aconteceu depois. Ao contrário do que se costuma pensar, o amor é uma carta de alforria, regido por uma única lei: a ninguém é dado o direito de, a pretexto de amar, dizer você é meu. As amarras que o atam é um consentimento incondicional; e novamente recorro à citação de um outro verso do grande poeta lusitano: é um querer estar preso por vontade. Mas num mundo em que todo o mundo o despreza, o amor é uma utopia, uma ilusão. Certa vez li em algum lugar que Dostoievski dizia que o D. Quixote é a história mais triste já escrita, porque é a história de uma desilusão. No final, o cavaleiro de La Mancha, num momento de lucidez, descobre que todas as suas aventuras não eram senão invencionices de sua cabeça perturbada. Ele não pode suportar a verdade... Amando-a ou não, portanto, pouco importa o que aconteceu depois. O que importa é o que aconteceu. Mas, apesar de tudo, quem diria que o nosso campeão de derrotas contra moinhos de vento venceria pelo menos uma batalha: K. conseguiu fazer a princesa russa sorrir e, assim, o feitiço se quebrou.

Jean também é autor de "Des-tino", "A saga de um andarilho pelas estrelas", "A greve dos planetas", disponíveis no link e-Books, entre outros textos publicados neste blog Verso, Prosa & Rock'n'Roll