A leitura de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, é, antes de tudo, uma experiência linguística. Muito mais do que narrar a história de Riobaldo, o romance se constrói e se reinventa na própria tessitura da palavra. Rosa não utiliza a linguagem apenas como um veículo para descrever o sertão; ele a transforma, a molda, a estende e a comprime, fazendo dela um personagem tão vivo quanto qualquer jagunço. A obra é uma revolução formal onde a linguagem como invenção e mundo emerge como a verdadeira protagonista, erguendo um universo único, ao mesmo tempo regional e universal.
A Língua que Desbrava e Revela: Introdução à Revolução Formal de Rosa
Publicado em 1956, Grande Sertão: Veredas rompeu com as convenções da prosa brasileira da época. A trama de Riobaldo, um ex-jagunço que narra suas memórias e dilemas existenciais a um "doutor" silencioso, é indissociável da forma como é contada. O leitor é imerso em um monólogo fluxo de consciência, onde a sintaxe é flexível, os neologismos brotam a cada esquina e o tempo se dobra e se desdobra ao sabor da memória.
A inovação de João Guimarães Rosa não foi meramente estilística; foi ontológica. Ele demonstrou que a linguagem não se limita a representar a realidade, mas possui a capacidade de criar realidades, de construir um mundo autônomo e profundo que existe primeiramente na palavra. Este artigo explorará como essa invenção linguística dá vida ao mundo-sertão de Riobaldo.
✒️ Neologismos e a Vitalidade do Português
Uma das marcas mais distintivas do estilo de Rosa é a profusão de neologismos. Estas novas palavras não são meros caprichos; elas servem para capturar nuances, ritmos e ideias que a língua formal não conseguiria expressar.
A Criação de Novas Palavras e Expressões
Rosa combina radicalmente elementos do português arcaico, regionalismos mineiros, termos eruditos e até palavras de origem tupi-guarani para forjar um léxico particular.
Exemplos:
"Desempenhar-se": Usado no sentido de "desocupar-se", "soltar-se".
"Travessia": Um termo já existente, mas elevado a um patamar filosófico, significando a jornada da vida e do autoconhecimento.
"Compadre-nosso": Uma fusão de "Compadre" (tratamento de respeito e familiaridade) e "Padre-Nosso", evocando uma relação quase sacra.
Esses neologismos não apenas enriquecem o vocabulário, mas também evocam uma sonoridade e um ritmo que mimetizam a fala do sertanejo, sua sabedoria popular e sua visão de mundo.
A Polissemia e o Sentido Ampliado
Muitas palavras em Rosa são polissêmicas, ou seja, adquirem múltiplos significados dependendo do contexto. O leitor é desafiado a ir além do sentido denotativo, mergulhando nas camadas de conotação e simbolismo.
Exemplo: "Vereda" não é apenas um caminho d'água; é um destino, uma escolha, um atalho para o desconhecido.
📖 Sintaxe Reinventada: O Ritmo da Fala e do Pensamento
A sintaxe de Rosa é outro pilar de sua revolução formal. Ele subverte a ordem direta da frase, alonga períodos, insere digressões e repetições, criando um fluxo verbal que se assemelha mais ao pensamento ou à oralidade do que à escrita convencional.
O Fluxo de Consciência e a Oralidade
O monólogo ininterrupto de Riobaldo é um dos maiores exemplos de fluxo de consciência na literatura brasileira. A fala é construída para imitar a maneira como a mente divaga, retorna, se questiona e se corrige.
Marcas da Oralidade: Uso de interjeições, pausas, repetições de palavras e frases ("o que eu conto é o que eu vivi e o que eu sei..."), e a constante interação com o "Doutor" ("Viu como é?").
Estrutura Circular: A narrativa não é linear. Riobaldo volta a temas já abordados, adiciona novas camadas de sentido, ou se contradiz, simulando o processo da memória e da reflexão.
A Pontuação como Expressão Musical
A pontuação em Rosa é atípica. Virgulas longas, excesso de pontos e vírgulas, e a ausência de parágrafos extensos contribuem para um ritmo lento, meditativo e, por vezes, angustiante. A escrita torna-se uma partitura, onde o leitor deve seguir as pausas e inflexões da voz de Riobaldo.
🌐 Do Regionalismo ao Universalismo: O Sertão como Metáfora
Ainda que profundamente enraizada na cultura e paisagem mineira, a linguagem como invenção e mundo de Rosa eleva o regional a um patamar universal. O sertão não é apenas um local no mapa; é uma metáfora para a alma humana, para a luta entre o bem e o mal, para a busca por sentido na vida.
O Sertão-Mundo
Através da linguagem inventada, o sertão de Rosa se torna um universo filosófico onde as grandes questões da existência são encenadas. O Diabo, a vida e a morte, o amor e o ódio são elementos tão presentes quanto a caatinga e os rios.
Sertão Vasto: A vastidão geográfica é espelho da vastidão dos dilemas morais e existenciais de Riobaldo.
Homem-Sertão: O homem e a paisagem se fundem. As asperezas da terra refletem as asperezas do caráter, e as belezas secretas das veredas representam a beleza da alma.
Perguntas Comuns sobre a Linguagem em Grande Sertão: Veredas
É difícil ler Grande Sertão: Veredas por causa da linguagem?
Sim, a linguagem de Rosa pode ser desafiadora no início devido aos neologismos e à sintaxe não convencional. No entanto, muitos leitores relatam que, uma vez que se "entre" no ritmo da fala de Riobaldo, a experiência se torna imersiva e recompensadora.
Qual o papel dos neologismos na obra?
Os neologismos têm múltiplos papéis: enriquecer o léxico, criar uma sonoridade própria, mimetizar a fala regional, e, mais importante, expandir os limites da linguagem para expressar ideias e sentimentos complexos que as palavras existentes não conseguiriam abarcar.
Por que Guimarães Rosa usa a oralidade na escrita?
A oralidade no monólogo de Riobaldo serve para dar autenticidade à voz do personagem, criar um senso de intimidade com o "Doutor" (e, por extensão, com o leitor), e permitir que o pensamento flua de forma mais natural e menos estruturada, revelando as dúvidas e divagações do narrador.
Conclusão: A Palavra que Cria o Mundo
Grande Sertão: Veredas é, em última análise, um testamento ao poder da palavra. Guimarães Rosa nos mostra que a linguagem como invenção e mundo é a força motriz por trás da criação artística e da compreensão humana. Ao reinventar o português, ele não apenas narrou uma história, mas construiu um universo de "veredas" e "sertões" que continua a desafiar e a encantar, provando que a literatura pode ser, sim, uma forma de conhecer o mundo e a si mesmo, através da beleza e da complexidade da linguagem.
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A ilustração apresenta uma leitura simbólica e profundamente literária de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, condensando visualmente os grandes temas do romance: travessia, linguagem, ambiguidade, memória e metafísica do sertão.
No centro da composição, envolvida por uma moldura ornamental que lembra gravuras antigas e cordéis sertanejos, aparece a figura de um homem idoso sentado, claramente associado a Riobaldo narrador. Ele está em posição reflexiva, como quem conta ou rememora sua história, reforçando o caráter oral e confessional do romance. Seu olhar é dirigido ao vasto sertão, espaço que não é apenas geográfico, mas existencial e filosófico.
Cortando toda a cena, um rio sinuoso percorre a paisagem como uma verdadeira “vereda”. Ele simboliza a travessia da vida, o fluxo da memória e da narrativa, além da própria linguagem rosiana — tortuosa, inventiva, cheia de desvios e profundidade. Dentro desse rio surgem cenas fragmentadas: barcos, figuras humanas, animais, objetos e signos, sugerindo episódios da narrativa, lembranças dispersas e imagens mentais que se acumulam no relato de Riobaldo.
À direita, a figura de um jagunço a cavalo, armado, representa o mundo da guerra, da violência e da vida errante dos bandos do sertão. Ele encarna o destino jagunço, a lei do conflito e a ética ambígua que atravessa o romance. Próximas a ele, surgem duas figuras femininas, frequentemente interpretadas como diferentes faces de Diadorim — a dualidade entre o masculino e o feminino, o amor interdito, o segredo e a revelação. Essa duplicidade visual dialoga diretamente com o mistério central da obra e com a tensão entre aparência e essência.
O céu, com sol e lua coexistindo, reforça a ideia de ambiguidade e coexistência dos opostos: bem e mal, Deus e diabo, razão e instinto — questões centrais na reflexão de Riobaldo. Os cactos, o chão árido e as casas isoladas reafirmam o sertão como espaço mítico, onde o real e o sobrenatural se misturam continuamente.
Os dizeres presentes na moldura — “Grande Sertão: Veredas” e “A linguagem como invenção e mundo” — explicitam a chave interpretativa da imagem: o sertão de Guimarães Rosa não existe apenas como paisagem física, mas é criado pela palavra. A ilustração, assim, não representa uma cena específica do romance, mas traduz seu espírito: um mundo construído pela linguagem, onde narrar é existir, lembrar é atravessar, e o sertão é, acima de tudo, interior.









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